Ensaio visual —————- 16 12 2017
Título: Deslocamentos e desenhos: a ação de desenhar como resistência
Palavras-chave: desenho, deslocamento e resistência.
Resumo: Deslocar-se de um local para outro e novos apalpamentos de se colocar nesses locais, tanto daquele que deixamos quanto daquele a que chegamos.
O seminário “Agulhas para desativar bombas”, foi intenso. Em alguns momentos reveladores de consciência sobre algo que não havia parado para pensar e inconsciente sobre o que ainda não estou apto para tomada de consciência, talvez nunca esteja. Foram muitos disparadores, mas destaco dois que, como fagulhas para entendimento despertaram um tipo de reflexão que é difícil de se perder. Os quais foram, quando se falou do ócio como utopia e entendo como resistência frente ao caos da sociedade do desempenho que Byung-Chul Han fala, sobre o indivíduo que necessita ter o melhor desempenho para sua satisfação, sendo assim internaliza-se a cobrança em uma sociedade que o trabalho é prezado como um troféu. Destaco esse ponto pois vem diretamente de encontro com questões de mudanças, de trânsitos, de retornar a uma instituição. E outro momento foi na última aula quando o professor Edson nos fez ouvir e ver uma música de Itamar Assumpção. Era dia 20 de novembro.
Apresento um ensaio visual sobre desenho e suas tensões, assim como ambiguidades entre mudanças de cidades que perpassam tanto o sujeito caminhante quanto o que ele desenha. Os trabalhos apresentados são entendidos como um meio de dialogar sobre resistência e experiência, que são construídas no decorrer de um certo tempo. O trabalho manual é tido como meio para o desenho que encontra influências e se desdobra tanto na cidade quanto no ateliê como forma de insistência e resistência sobre o mesmo suporte, neste caso, o papel.
palete (convert-video-online.com)
O deslocamento é de Londrina-PR para Porto Alegre-RS e, no princípio, de rotina em uma cidade maior que a anterior. Quando a mudança já está certa e próxima de sua data definitiva, mesmo o definitivo tendo suas variações, como a espera por algo longínquo e certeiro, percebi que ocorreu uma nostalgia antecipatória – talvez um não pertencimento – do que não será mais presente como até o momento foi. Nesse intervalo, desenhos de observação de coisas da casa foram feitos, não semelhante a um inventário, mas uma forma de estar em contato, procurando experiências imediatas com coisas que sempre estavam por perto. Começo por objetos e plantas do jardim da frente, lugar onde foi construído certo refúgio e filtro do que vem da rua, a grade também como filtro que muito limita e protege, talvez uma falsa proteção, necessária a uma cidade que mais individualiza que integra. O jardim com várias plantas e um pé de romã muito antigo, assim como o pingo de ouro. Capim guiné e arruda não faltam.
Ao chegar ao novo local, várias mudanças para além do próprio deslocamento. Ocorreu de começar novas aproximações com o desconhecido e também a busca de relações entre o passado de um lugar que se tornou distante e novas formas de se relacionar com o processo de criação em um lugar novo. Casa, universidade, ateliê da instituição e a cidade. O desenho de observação de coisas necessárias e instantâneas para a sobrevivência foram as primeiras tentativas de apalpar o que sempre esteve presente em outro local; muda-se de casa, mas não se muda de si por completo. Ou não muda-se de si?
O sujeito que desenha transita entre locais, na resistência e insistência de seguir adiante. Mesmo que seja em estado de espera há providências sendo tomadas que acarretam a finalização do trabalho. O final do trabalho não é uma conclusão, mas sim um enunciado de uma determinada experiência. A afirmação do eu desfaz-se ou traduz-se no desenrolar dos trabalhos, pois o começo com a realização de autorretratos, antes do sentimento de não pertencimento, talvez afirme um local ainda desconhecido de como colocar-se no mundo. Todas essas ações são de colocar as mãos sobre o indeterminado. Ao mover-se talvez determinemos algo ou pelo menos há alguma ação. Com o olhar para objetos específicos, há a identificação do sujeito que se traduz para estar quase ausente de modo figurativo, mas ainda está presente a potência dele no que está representado. A escada vazia traz influências da cadeira vazia de Van Gogh e de Gauguin. Entendo a resistência como meio de desenho que se desdobra no decorrer dos dias, como enfrentamento e encontro com os materiais e ferramentas. Na ampliação do campo de experiências por parte do sujeito que cria, as chances de encontro com o inusitado, carregado de tensão, que gera interpretações variadas e talvez confusas, as quais vejo como potência, tornar-se mais propício. Talvez haja conexões entre o sujeito que desenha, os materiais, ferramentas utilizadas e objeto observado em que o trabalho manual e repetitivo poderá gerar dissonâncias numa frequência constante que parece invariável. A insistência como meio de trabalho, como se lançar ao inusitado pelo cansaço.
Passado, presente e futuro delimitam linhas tênues de aparecimento e desaparecimento. Por que, ao mudar de cidade, muda-se o sujeito? É uma pergunta que me faço ao estar em outra cidade, rememorando a nostalgia antecipatória ocorrida antes de sair de casa. Tento entender que, para os trabalhos, as linhas do tempo são virtuais e podem ressoar e atualizar a qualquer momento. Todavia, o que está ao redor influencia diretamente o meu processo de criação. Segundo John Dewey: “A carreira e o destino de um ser vivo estão ligados a seus intercâmbios com o meio, não externamente, mas sim de uma maneira mais íntima.” (DEWEY, 2010. p. 75). As trocas com o meio são de via dupla: tanto o sujeito se movimenta de modo incisivo sobre a realidade quanto a realidade e todas suas especificidades movimentam-se sobre o sujeito. São diálogos que transformam tanto o artista quanto o mínimo do que está ao seu redor.
A experiência do desenho é uma coisa que entendo como ver e escrever sobre o mundo, a partir do que posso me movimentar. O movimento do corpo é para os lados, em círculos crescentes e decrescentes e também de modo vertical, como subir e descer de uma árvore. Aliás, subir em uma árvore sempre me trouxe sentimentos de risco, de ultrapassar limites para além dos territórios, ultrapassar limites de si. O desenho como experiência é algo de se arriscar, talvez semelhante a esse modo de subir em árvores, assim como o texto que começa quando começamos a tentá-lo, sem a necessidade de conclusão.
Tentar é uma coisa pequena que pode chegar ao grande. Beckett, em seu romance Molloy, fala de insistências pequenas sobre coisas próximas e vulgares para se chegar ao que é maior; por exemplo, quando o personagem coloca a camisa de várias formas diferentes. “Ocupar-se das pequenas coisas é chegar às grandes, com o tempo” (BECKETT, 2014, p. 231). Entendo que o desenho e a escrita talvez sejam meios muito semelhantes de olhar, estar e incidir sobre o mundo; são meios que começam com a vontade de arriscar-se sobre determinado campo. A experiência como fazer que se acumula e se faz a partir do desgaste. Ao entrar em um rio para não voltar mais, a menos que haja a troca ou entendimento dos cargos, o personagem de ‘A terceira margem do rio’ de Guimarães Rosa, providencia-se no vai vem de um mesmo curso contínuo no mesmo local.
Os desenhos são carregados do passado, da vontade de tentar e do próprio fazer, começar um risco pode ser pela vontade de imagens, mas começar um risco no papel é entender que, a partir daquilo, não tem mais volta, sendo assim existem circular e retornar à mesma coisa. A repetição desses caminhos revela a diferença nos traços que se confundem como sendo a mesma coisa.
Caixas de cachorros são desenhos de vontades de guardar alguma coisa da casa que ficará para trás. Entendo como um sentimento de saudade antecipatória e a vontade de continuar onde se está, pois, quando se sabe da mudança, o sentimento de pertencimento começa a se esvair. Talvez semelhante a fumaça que desaparece ou o orvalho secando nas primeiras horas do dia. Algo como procurar o que ainda não existe, o futuro antecipado no presente. Ao desenhar, o que foi apreendido encontra-se em partes com o presente e o futuro que aponta vontades de ser e de guardar.
A mudança realmente existe. Realidade me faz pensar a diferença com existência. Entendo, de modo simples, a realidade como o que acontece e a existência como o que existe. O que acontece é sobre o existir, já este último pode estar isolado da realidade construída por aquilo que acreditamos acreditar. Mudar para outra cidade é um passo no precipício, é um risco de lápis 7H sobre um papel firme. A realidade sobre a existência, como forças opostas, nenhuma anulando a outra. Não há retorno sem marcas geradas pelos movimentos. Há riscos e apagamentos de resistência sobre um mesmo local. Mas a resistência que busco é sobre a existência, a partir do cansaço físico de repetições manuais, de traços sobre um papel firme colado em uma parede. Desenhar e apagar com outro desenho e outros traços são movimentos de repetição que se desdobram lentamente e que se diferenciam no gesto de parecer igual, pois a ação de resistir e insistir sobre quase o mesmo local são deslocamentos pela insistência.
A realidade de resistir, de persistir, está no fazer e na aceitação de que algo acontece no embate com o material que se manifesta de algum modo, seja semelhante ou idêntico, mas estabelece relações e diálogos com o seu redor e também com o sujeito que pensa, talvez de modo ingênuo, sobre impor suas vontades. As potências estão nas coisas envolvidas, na pergunta sobre o que os envolvidos querem. Quem desenha são os materiais, as ferramentas usadas, o que está ao redor como influências diretas e a determinação do sujeito que direciona de acordo com esses elementos os traços no papel. O diálogo é estabelecer relações e concessões acerca das especificidades dos envolvidos.
Quando Benjamin diferencia a narrativa da informação, em seu texto O Narrador, ele situa a narrativa como um trabalho quase manual de articular as palavras e a experiência da vida nos entrelaçamentos entre as frases. Falar de si é partir de suas relações do que está por perto, pois o redor é o que me faz ser o que sou, arriscar-me no chão, assim como esperar, sempre esperar alguma coisa, como alguns personagens de Beckett. São meios de contatos que proporcionam o entendimento de um pequeno mundo que pode muito bem deslocar-se para fora do quintal de casa. Escolher insistir, mesmo que seja como espera ou mínimos movimentos, é um meio de se posicionar frente à fluidez da era da informação, que Benjamin define sem a necessidade de interpretação. A informação necessita de fechar-se em formas exatas, sem a possibilidade de expansão, ela não cria, mas apenas reproduz sem a necessidade de reflexão e criação. Já a narrativa aponta brechas para a interpretação. Sendo assim, entendo o desenho como um fazer narrativo. Não como contar uma história, mas um fazer que libere tensões ambíguas de entrecruzamentos. Apesar da espera ser uma insistência, escolho para esses trabalhos a resistência de retornar ao mesmo local e traçar sobre o papel preenchimentos, apagamentos sobre esse pequeno mundo de diálogos.
Subir em cadeiras desloca o corpo para cima do chão, desloca a função desse objeto tão certo para o descanso, tão certo para os privilégios de algumas profissões. Objetos em tamanhos reais, para deslocar o que está fora para dentro e o que está dentro, como potências de mudanças, para outros locais e outras interpretações. Sair do chão, procurar outras funções, ou mesmo função nenhuma, para objetos corriqueiros fazem parte da insistência sobre a mesma coisa que ocorre na repetição dos traços no desenho. Assim como empilhar bancos para ocupação do espaço, pois pode ser para guardá-los ou para sua disposição, como o simples empilhar para se chegar o mais alto possível. Suspender-se do chão, mesmo que seja somente um degrau a mais, semelhante a olhar o que está atrás do muro, pois assim ganha-se altura suficiente para o olhar ultrapassar o horizonte entre o muro e o céu. Pode ser a cadeira, o palete, a escada, eles, assim como os materiais e ferramentas de desenho, estão para o diálogo. A referência para essa passagem do homem olhar do outro lado associa-se a uma fotografia de Haruo Ohara, fotógrafo de Londrina. Nessa foto, vejo a vontade que há em saber o que está do outro do lado, o muro como barreira, como estímulo e também como divisor. Assim como falo que desenhar e escrever é a partir do movimento, de posicionamento, transpor esse muro também é um princípio de movimento.
Para o registro do processo, usei a fotografia, com disparos constantes, como meio para criar diálogos com interlocutores, tanto o sujeito que cria quanto o aparelho que registra, como também um suposto observador que seria a própria fotografia como um olhar, em diagonal, atrás do artista. Olhar para o processo de trabalho não é o registro imparcial dele, mas são posições tomadas que influenciarão o decorrer do processo. Não necessariamente sobre esse trabalho, mas apontamentos para outros olhares e desenhos.
Esse texto tentou movimentar-se em paralelo com as imagens e também como criador de imagens. Ele pretendeu indicar outros acontecimentos que fazem parte do processo de criação e que se fundam nas experiências calcadas dia após dia. Apresento esses trabalhos: imagens, vídeo e o texto como imagens em potências que tentam se relacionar em um campo horizontal de entrecruzamentos e transmutações.
Elias de Andrade é artista visual.
Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem , realizado em dezembro de 2017, pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte Política (LAPPAP/UFRGS) e PPG Psicanálise: Clínica e Cultura/UFRGS.
Referências
BECKETT, Samuel. Molloy. 2ªed – São Paulo: Editora Globo, 2014.
BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: _____ Magia e Técnica, Arte e Política – ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas, volume I, 2ª edição, São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.
DEWEY, John. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2ªed. Petrópolis, RJ: vozes, 2017.