Era domingo, dia 06 de maio. Momentos finais da III feira da reforma agrária. O parque estava cheio ainda. Em todos os lugares esparramados, em todas as fileiras de barracas representando os estados brasileiros, nas arquibancadas e em frente ao palco, onde mais de 300 artistas se apresentavam continuamente, havia muita gente.
Na grande livraria, sobre a tenda de circo, erguida para a exposição de livros de diversas editoras havia agitação, cansaço e a longa fila do café. Mas não havia irritação, nem pressa, nem reclamações. Todos curtiam os últimos momentos de congraçamento e aguardavam o último show da noite, quando Martinho da Vila subiria ao palco encerrando essa festa cidadã, diversa e livre.
Todos sabiam da raridade de um espaço como esse no Brasil de hoje e-era visível nos gestos e nos sorrisos- todos o valorizavam. Assim como no ano passado, muitos imaginavam como seria se fosse sempre assim. Uma fantasia de harmonia se revela na experiência quando ocorre a justaposição do que sentimos, percebemos e desejamos. E as vezes isso acontece. Embora todos sabiam que se tratava de uma ilha sem agrotóxicos cercada por pesticidas e latifúndios por todos os lados. Não importava, era um descanso.
Sem medo, sem ódios, sem latifúndios, sem pesticidas, sem polícia, sem ditaduras e sem transgênicos. O espírito da reforma agrária em todo canto e a paisagem colorida de que ela é possível, factível e muito ansiada.
Já no final, assentados e camponeses vindos de longe preparavam suas coisas, guardavam as panelas e os produtos trazidos de seus assentamentos para, logo mais, retornarem aos seus estados em viagens que durariam dias.
Quatro dias intensíssimos porque a feira desse ano parecia maior que a do ano passado e mais organizada, talvez, com mais gente. Estima-se que 260000 pessoas passaram por lá. 90000 mais do que em 2017. Sim, por vezes era bem difícil andar entre a multidão nos corredores estreitos onde se servia comida caseira e orgânica; ou para se deslocar das barracas para a livraria; ou para sair da beirada do palco para chegar onde se podia encontrar artesanato nativo.
Mulheres de 3 coletivos de mulheres camponesas do Pará, cansadas, mais ainda dispostas a conversar observavam que toda feira tinha sido uma experiência excelente, porque congraçou os camponeses com o público que se alimenta da comida plantada pelas componesas e camponeses, e que eles (consumidores) não sabem quem são. E criava uma oportunidade única para que o consumidor conhecesse de perto quem põe a comida em sua mesa.
De fato, em que momento quem consome se vê frente a frente com aqueles que plantam e colhem? Quem são os camponeses para o homem comum urbano acostumados aos supermercados, sacolões e as notícias do jornal nacional e da revista Veja?
Teo Nunes, camponesa e ativista do MST, com de 66 anos de idade dizia que a feira além de divulgar o movimento dos sem terra é o momento em que a produção orgânica camponesa dialoga com a sociedade. Muitos pensam que os assentados e sem-terra são bandidos e vândalos, diz Teo, mas na feira o que a sociedade encontra são camponeses e camponesas trabalhadoras da terra oferecendo seus produtos. Teo diz que se sentiu acolhendo e acolhida pelo povo de São Paulo e que tudo, em seu conjunto, é um ato político. Contra a monocultura no campo, contra o uso indiscriminado de agrotóxicos que prejudicam e adoecem as pessoas. Diz Teo: “Nós podemos denunciar isso oferecendo uma alternativa”. Frase lapidar que indica os caminhos da esquerda, os caminhos do MST. Ocupar os latifúndios improdutivos e oferecer uma alternativa a eles.
Izabel Rodrigues Lopes Filha, também agricultora e ativista do MST, dizia que a feira representava a força do movimento e a força da esquerda brasileira. Mas é também um momento de diálogo com a sociedade brasileira através dos produtos concretos, palpáveis da reforma agrária. Efeito de lutas que se consolidam em sementes, frutos, alimento.
Izabel lembra ainda que nenhum assentamento foi feito de livre e espontânea vontade. Todos foram ocupados, foram conquistados. Lembra da importância e da oportunidade que elas tiveram para explicar a prática e o cultivo de sementes criolas, sementes tradicionais para criar alternativas para as sementes transgênicas.
Mas a feira-festa da reforma agrária não é apenas sobre a terra, mas sobre produzir cultura, poesia, literatura e o espírito de liberdade que planava sobre todos. A reforma agrária traz em seu bojo o plantio de uma nova sociedade, concordariam Teo e Izabel. Aquela que nasce comungada com a terra, com os saberes da terra e com a necessidade de criar as possibilidades para o enraizamento do homem no campo.
Um mundo acontecia na feira. Valores circulavam, utopias saiam do armário e respirava-se esperança, tal como nos primeiros Fóruns Sociais Mundiais em Porto Alegre. Uma paz benfazeja, serena e alegre em todo canto num final de domingo ensolarado encerrava essa festa. Boa para o descanso, para restaurar as memórias das lutas passadas e vindouras, para revelar um mundo sem dicotomias que logo mais encontraríamos ao cruzar os portões do parque com a festa encerrada.
O sol já se punha e as pequenas lâmpadas acesas indicavam o caminho para o palco. Abaixo a plateia lotava todos os espaços onde Martinho da Vila puxava o coro:
Canta, canta minha gente deixa a tristeza prá lá.
Canta alto, canta forte…
E a plateia:
Que a vida vai melhorá…
A vida vai melhorá…
A vida vai melhorá…
Ano que vem a festa que a feira trouxe retornará, provavelmente maior.
E tantos que lutam , cantam, tocam, plantam, escrevem e trabalham por uma vida e por um Brasil melhor se reunirão nela, enquanto ouvem as explicações atenciosas dos que cultivam sementes criolas, organizam a agricultura familiar, sustentam o plantio orgânico, ao mesmo tempo em que lutam pela distribuição de terra e renda para os que ainda não possuem seu pedaço de chão.
A feira da reforma agrária é um a festa. Ela é o retrato de uma conquista que não se perdeu e que se consolida e se manifesta com vigor na feira desde 2016. É o efeito e a consequência de lutas e princípios que vingaram e estão nos espíritos de muitos. É a prova de que há um Brasil se gestando todos os dias e ele está prestes, e muito perto, de reencontrar seu caminho.
Obrigado camponesas, camponeses e trabalhadores do Movimento dos Sem Terra por colorir com frutos, quitutes, música, literatura, dança e a simpatia de brasileiros vindos de todo país a, quase sempre acizentada, Pauliceia, agora mais esperançosa e desvairada!