HIATUS: A MEMÓRIA DA VIOLÊNCIA DITATORIAL NA AMÉRICA LATINA – Marcio Seligmann-Silva

HIATUS: A MEMÓRIA DA VIOLÊNCIA DITATORIAL NA AMÉRICA LATINA – Marcio Seligmann-Silva

 

 

 

“HIATUS: a Memória da Violência ditatorial na América Latina”

TEXTO DO CURADOR – Marcio Seligmann-Silva

 

“Hiato” é uma palavra derivada do latim “hiatus” que remete às noções de falta, lacuna, interrupção, abismo. Ao propor uma exposição voltada para a memória das ditaduras na América Latina, calcada nesse universo semântico, enfatizamos tanto o fato de que essas ditaduras representaram rupturas históricas, como também que elas constituem uma “falta”, um vazio dificilmente simbolizável. É verdade que países como Argentina, Chile, Uruguai e Brasil enfrentam os seus passados ditatoriais de diferentes modos, sendo o Brasil o que menos se dispôs a encarar até agora a tarefa de elaborar aquela época, seja de forma jurídica, política ou artística, em que pese o número de filmes sobre aquele período.

Se, durante o período ditatorial, alguns artistas brasileiros resistiram com muitas obras importantes, no tempo pós ditadura eles, com raras exceções, voltaram-se mais para poéticas formalistas ou com outras agendas temáticas. No entanto, desde 2013-2014 essa paisagem tem se modificado. Uma nova linhagem de produção (pós relatório da Comissão Nacional da Verdade) tem abraçado o desafio de inscrever o passado ditatorial hoje. Pois a memória é ato, ação que se dá no presente e se articula às políticas do agora. Essas obras se dão no “tempo de agora” de que Walter Benjamin falava e visam também um “escovar a história a contrapelo”. Essa nova arte da memória elegeu lutar contra uma política do esquecimento que faz parte de modo intrínseco de nossa tradição de apagamento da memória da violência, em especial das violências de classe, racial e de gênero.

Esses artistas da memória, que têm aparecido em algumas exposições nos últimos anos, têm promovido uma outra autoimagem do Brasil: na qual os protagonistas passam a ser os que lutam na resistência contra a violência estatal e das elites. Ao invés de objetos da representação, os excluídos se tornam agentes. O “hiato” ditatorial passa também a ser visto como um momento capaz de revelar o abismo que sempre existiu em nossa sociedade que insiste em reafirmar e em reproduzir sua mentalidade colonial. O “estado de exceção” revela-se regra.

Ao colocarmos, lado a lado, nesta exposição, artistas do Brasil, do Chile, da Alemanha e da Argentina, já com vastos currículos de obras dedicadas à memória do “mal”, nossa intenção é a de iluminar essa poderosa arte. Uma arte que vai muito além de “memorializar” a barbárie: ela faz-nos pensar nas políticas de inscrição e de apagamento da violência. Ao focar nos traumas sociais, a arte permite também uma visada crítica, multifacetada e empoderadora, que resignifica tanto o campo político como o artístico. Se Borges dizia que “Sólo una cosa no hay, el olvido” (“Só uma coisa não existe, o esquecimento”), devemos pensar que as memórias são construídas de diferentes formas: elas podem ser encobridoras da violência e das injustiças, ou podem ser reveladoras delas e se transforar em um ímpeto para mudanças e para uma outra cultura ética.

 

 

 

Projeto Hiatos: a (des)memória das ditaduras na América Latina Hoje

A PROPOSTA INICIAL DA EXPOSIÇÃO

 

Pressupostos de caráter histórico: a ditadura como hiato

 

A proposta dessa exposição, que acontecerá no Memorial de Resistência de São Paulo de 21/10/17 a 13/03/18, é refletir sobre a memória das ditaduras na América Latina, com destaque para o Brasil, a Argentina e o Chile. Um dos vetores a balizar essa exposição será o papel cumprido pelos relatórios das Comissões de Verdade nesse trabalho de recordação. Sociedades pós-ditatoriais são espaços de negociação e de conflitos entre memórias que se decantam e perfilam em função de questões privadas, comunitárias (pensemos nos grupos de ex-guerrilheiros, de parentes de desaparecidos etc.) sociais e até internacionais. Na América Latina essas memórias foram e são ainda negociadas de diferentes modos e em diferentes intensidades. Um país como a Argentina tem uma alta densidade e presença das marcas da ditadura em seu território e em sua paisagem política e histórica. Na outra ponta, no Brasil de um modo geral resiste-se muito mais a enfrentar a tarefa de elaborar essa memória, buscar a verdade e a justiça, estabelecer os marcos e marcas da recordação desse passado. Sua Comissão Nacional da Verdade demorou mais de um quarto de século para ser estabelecida em 2011. Todo ato de recordação se dá no presente e esse presente determina o que e como nos lembramos. Esse ponto será fundamental nesta exposição. Se na Argentina e no Chile as memórias das suas ditaduras se tornaram um elemento importante na autoimagem daqueles países e na produção de novas políticas, no Brasil o recalcamento da violência ditatorial se tornou mais um caso de memoricídio da violência que sempre caracterizou a nossa historia, desde seu período colonial.

O passado ditatorial pode ser percebido como um “hiato”, ou seja, uma “fenda”, uma “falta” ou “interrupção”, na medida em que percebemos nele uma excepcionalidade que o destaca da história e de sua continuidade. Ao propormos uma curadoria inspirada nesse termo partimos desse pressuposto: ou seja, devemos encarar esse elemento de exceção que marcou o momento da ditadura. Essa exceção era caraterizada pela existência de um Estado autoritário, que utilizou-se de táticas terroristas, suspendendo o estado de direito, perseguindo e eliminando a sua população. Aceitar essa excepcionalidade é importante para pensarmos também na excepcionalidade dessa memória do mal. Por outro lado, sobretudo na América Latina, essa excepcionalidade não pode ocultar o fato da referida tradição de violência no Brasil e que também existe em outros países desse continente. Trata-se de uma violência advinda do Estado e de seus representantes e que também caracteriza a relação ente os diversos grupos sociais. Ou seja, temos que tomar o cuidado de refletir sobre a excepcionalidade dos momentos de ditadura, mas sem com isso apagar os elementos de continuidade da violência, por exemplo, da prática de tortura e de desaparecimento de parte da população nas mãos do aparelho de Estado.

O “hiato”, portanto, não está rodeado de uma jardim edênico, ou seria um deserto no meio de uma frondosa floresta de direitos humanos, antes esse “hiato” é um momento de aprofundamento das tensões sociais que levaram ao acirramento da violência de Estado. Encarar desse modo essas ditaduras é importante para termos em mente que a memória desses “hiatos” deve servir de crítica a cada presente: todo ato de memória da ditadura deve ser também um tal momento de reflexão crítica. Temos que atentar para a excepcionalidade radical daqueles momentos, para suas características idiossincráticas, mas ao mesmo tempo permanecer atentos para o fato de que os conflitos sociais que estão na base daqueles momentos de crise não terem tido ainda uma resposta digna. O fascismo respondeu às demandas sociais com violência gerando as ditaduras; não aconteceu ainda uma resposta autêntica e à altura daquelas demandas, ou seja: não houve a verdadeira transformação social que permitiria uma verdadeira catarse da violência sofrida nos momentos de “hiato”.

A tradução curatorial dessa paisagem histórica

Diante da tarefa de repensar hoje os “hiatos” ditatoriais da América Latina, esta exposição promove o encontro de oito artistas que vêm se dedicando de modo original e expressivo ao tema da memória do mal nos séculos XX e XXI: Andreas Knitz, Clara Ianni, Fulvia Molina, Horst Hoheisel, Jaime Lauriano, Leila Danziger, Marcelo Brodsky e Rodrigo Yanes. O termo “hiato” que os une na curadoria pode ser pensado como um termo da medicina, onde hiato significa uma “fenda ou abertura no corpo humano”. Estaríamos aí no campo da memória como ferida: trauma. Mas hiato também pode ser entendido como “interrupção”, ou ainda, como “falta”, “intervalo”, “lacuna”. O dicionário Houaiss, de onde retiro essas definições, além de retomar o sentido fonético do termo, também recorda por último que hiato é uma palavra da geomorfologia que indica uma “lacuna estratigráfica”. Nada mais adequado para pensarmos a memória, já que as rochas são nada mais que camadas mnemônicas da Terra.

Márcio Seligmann-Silva

 

Exposição: “HIATUS: a Memória da Violência ditatorial na América Latina”

 

LOCAL: MEMORIAL DA RESISTÊNCIA/ PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

DATA: 21/10/17 A 13/03/18

 

CURADORIA: Márcio Seligmann-Silva

 

ARTISTAS PARTICIPANTES:

 

Andreas Knitz (Alemanha)

Clara Ianni (São Paulo)

Fúlvia Molina (São Paulo)

Horst Hoheisel (Alemanha)

Jaime Lauriano (São Paulo)

Leila Danziger (Rio de Janeiro)

Marcelo Brodsky (Argentina)

Rodrigo Yanes (Chile/Espanha)

 

Abertura da exposição: dia 21/10/17 às 11 horas. Mesa Sábado Resistente às 14 horas:

 

Projeto Hiatus visa construir um painel de reflexão sobre o papel das artes como inscrição da violência ditatorial no Brasil, no Chile, e na Argentina. No caso específico do Brasil, visa discutir uma lacuna histórica (hiato) na memória política recente desse país, ou seja, a lembrança da violência, da repressão, da tortura e dos mortos e desaparecidos durante o período da ditadura civil-militar (1964-1985). Oito artistas foram convidados para apresentarem obras que permitam uma reflexão crítica sobre o período da ditadura. Eles vão mostrar obras que inserem as ditaduras na América Latina como parte de políticas da memória. Cada país tem um modo distinto de lidar com o passado ditatorial. Se, por exemplo, na Argentina existem muitos memoriais e centros de recordação da violência ditatorial, no Brasil existe uma enorme repressão desse passado.

Não ocorreram processos jurídicos contra os torturadores e seus mandatários no Brasil, mas isso ocorreu na Argentina, no Uruguai e no Chile, por exemplo. As obras também vão refletir sobre o papel das Comissões de Verdade na elaboração daquele passado.

A proposta é reunir e confrontar as leituras de oito artistas que possuem um trabalho já amadurecido sobre o tema da continuidade da violência nesse continente, colocando assim em contato diferentes gerações e nacionalidades de artistas e fazendo um encontro entre o passado ditatorial da América Latina e o nosso presente, destacando a continuidade da violência e da exclusão social nesse continente.

 

 

LINKS RELACIONADOS:

https://www.facebook.com/events/154698541793751/

http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/default.aspx?mn=10&c=420&s=

http://www.iea.usp.br/eventos/hiatus-a-memoria-da-violencia

http://www.iea.usp.br/noticias/conferencia-respondera-questoes-sobre-a-arte-no-periodo-de-violencia-da-ditadura-militar