“Breve consideração estética sobre Mario e o mágico, de Thomas Mann” – Por Alexandre Pandolfo

“Breve consideração estética sobre Mario e o mágico, de Thomas Mann” – Por Alexandre Pandolfo

De acordo com uma conhecida frase de Walter Benjamin tornou-se inteligível que a humanidade, a respeito da qual seria razoável vislumbrar os traços das linhas de continuidade tortuosa entre lírica e sociedade, essa humanidade que um dia ofereceu-se em espetáculo aos deuses olímpicos, atualmente (para nós outros, sobreviventes ao longo dos séculos XX e XXI) transformou-se ela própria em espetáculo para si mesma.[1] Entendo que esse movimento de transformação ou essa metamorfose propriamente dita transparece de forma ímpar e transita desde o âmago da novela de Thomas Mann, Mario e o mágico [Mario und der Zauberer], publicada pela primeira vez em 1930, e entendida hoje como uma obra tragicamente profética, em cuja substância, de modo profundo e dialético, estão imbricadas as condições psíquicas às condições sociais para expressar negativamente o advento do totalitarismo de viés fascista. A esse respeito tornaram-se já bastante conhecidas e debatidas em seus eixos basilares (principalmente entre os estudiosos da literatura e do pensamento de Thomas Mann) as análises que levam a cabo interpretações históricas visíveis nessa novela, eixos através dos quais perpassa a compreensão de que o movimento que tal obra promove envolve-se com a crítica à estetização da política. Ao meu juízo, o sumo dessas análises e reflexões tem o potencial de deixar em si expressar um curto-circuito entre tempo e linguagem, já expressado poeticamente na obra, e com isso abrir em seu próprio corpo textual um espaço para expor ainda uma ou outra nota acerca da investigação sobre o mal-estar na civilização, premente na era da máxima instrumentalidade científica da política.

O curto-circuito parece ser uma espécie de antevisão que chega sempre depois e por meio da qual, nessa novela de Thomas Mann, uma sucessão de características carregam interpolações concretas à história, tornando evidentes as condições de promover uma espécie de interrogação junto ao arcaísmo mítico que subjaz à lógica de funcionamento em geral dos estados modernos, a lógica do apaziguamento da consciência da debilidade, que se sustenta através de determinações políticas e de uma linguagem fundamental, por meio de togas, braceletes e aventais. Em Mario e o mágico, a prática da irracionalidade profunda para fins totalmente adaptados ao princípio de realidade, por assim dizer, encontra-se em perfeita harmonia com um estado de espírito desarmônico das coisas na cidade de Torre di Venere, Itália, local a respeito do qual um narrador estrangeiro fermenta a recordação de sua última passagem e escreve em tom confessional e testamentário o que se passou nas férias da sua família, no “Sul”. O narrador, procurando conversar diretamente com o leitor, olha para a sombra do seu passado iminente e aponta para uma atmosfera desagradável, assim vivenciada como um todo, atmosfera já evidente desde o início da sua estada e desde então corroborada por acontecimentos que envolveram com monstruosa claridade os traços de uma crise profunda dos indivíduos ali submergidos, inquestionavelmente entregues a uma instância coletiva nacionalista, hierárquica e moralista, mas que apenas ao final apresentou-se encarnada, literalmente incorporada na figura do terrível Cipolla, mágico hipnotizador, ilusionista prestidigitador, cujo espetáculo chegou anunciando para a cidade fenômenos de natureza misteriosa e desconcertante, e para o qual se dirigiram em grande número os habitantes da cidade.

Os gestos e falas traçados que nomeiam as ações dos indivíduos culminam num acontecimento de expressão fantástica. Até certo ponto fantástica. Eles ocupam o espaço dos corpos das personagens plenamente objetificadas, motivo pelo qual devemos entender que as suas figuras não aparecem como os sujeitos na obra propriamente ditos, ou como fazendo as vezes do sujeito na obra, que também não o é o mágico Cipolla, mas transparecem sim, ao contrário, como correspondentes do sujeito, daquilo que na obra eventualmente fala mas não se confunde com a linguagem corrente plenamente inteligível. De acordo com o seu movimento próprio, essa novela expressa uma estrutura racional que, ao desfraldar a bandeira da herança legítima da racionalidade ocidental liberal, angaria para si um solo arcaico e mítico junto ao cerne de determinadas forças presentes no estágio racional da civilização. Assim, bem de acordo com o curioso realismo de Thomas Mann, jorram das personagens, dos indivíduos, feixes de sombra textual. E por meio de uma atmosfera obnubilada deixa-se transparecer um vínculo mítico, cuja configuração de linguagem torna-se transitoriamente legível.

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Da tonalidade chiaroscuro do espetáculo conduzido por Cipolla, espetáculo que é o firmamento narrado na novela, transcorre o sumo das lembranças deixadas pelo acontecimento histórico, no qual o narrador, a sua família e os habitantes e Torre di Venere serviram-se como objetos. Precisamente nessa ocasião, corroborada pelas situações precedentes que confluem até o momento cabal, é possível encontrar delineadas as inquietantes forças psicológicas que vêm à tona de acordo com determinados dispositivos racionalmente empregados pelo mágico e que resultam de forma evidente naquilo que veio a ser catastroficamente reconhecido no século XX como a transformação dos indivíduos em massa. Mas não se trata aqui de traçar de modo estrito uma resenha dessa novela, explicitando minuciosamente todas as nuances que expressam a desarticulação de uma linguagem estruturada como um todo junto ao declínio do indivíduo na era do capitalismo tardio, assim como não parece ser necessário, nessa breve consideração, trazer à tona o rol das características apontadas por Sigmund Freud em seu muito conhecido texto Psicologia das massas e análise do eu, as quais se deixam transparecer na novela de Mann inclusive desde os seus pressupostos mais básicos. A esse respeito, contudo, é importante dizer apenas que um tipo de vínculo libidinal artificial foi com êxito criado e mantido por Cipolla, dominando todo o auditório anonimamente, e durante toda a sua performance nebulosamente expandido como uma espécie de princípio unificador ao mesmo tempo identificador, e que também por meio do encantamento, “o poder verdadeiramente mágico das palavras”[2], é possível ler a silenciosa cumplicidade com a qual uma pulsão de destruição intimamente se desenvolveu e irrompeu naquela ocasião, que culminou no vazio no qual a própria linguagem ali em desenvolvimento estava submersa.

Cipolla comandava todos os seus divertimentos às custas do seu público, jogou, brincou perversamente com as faculdades de cada um dos presentes em obedecer as suas vontades próprias, assim questionando os seus sentidos de liberdade e de vontade mesma, dominando de forma triunfal o ambiente como um todo e revelando publicamente o seu domínio sobre a natureza e sobre a realidade. Um espetáculo inacreditável e ignóbil, conforme apontou o narrador. O público era fantoche. Mas o desfecho do espetáculo que se mantinha por meio de uma perpetuação da dependência e da expropriação do inconsciente pelo controle social resumido à figura de um líder, por assim dizer, desfecho que talvez tivesse tardado em advir, chegou pela figura de Mario, um jovem garçom, bem conhecido pelo narrador e pelos seus filhos, os quais diariamente conviviam com Mario e agradeciam pelos serviços que este prestava a eles de modo sempre gentil. No espetáculo, após uma humilhação ao mesmo tempo severa e graciosa por parte do hipnotizador, que obrigara Mario a beijá-lo como se o hábil Cipolla encarnasse a figura da mulher amada de Mario, sob a consternação geral, aconteceu que este despertou e, num rápido gesto apontou uma arma e deu dois tiros no mágico. Nesse momento, então, em meio a uma grande comoção, de acordo com o narrador certamente não de todo onisciente na ocasião, o que restou de Cipolla, ou o que se pôde vislumbrar do que restou, foi uma espécie de “embaralhado pacote de roupas e ossos contorcidos”[3].

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Entendo que essa imagem advém, pois, como alegoria da face hipocrática da história, no sentido em que, primeiramente Walter Benjamin e depois Theodor Adorno, abordaram essa expressão. No limite da evidência daquilo que se tornou evidente ou que deixou de sê-lo a respeito das obras de arte ao longo do catastrófico século XX e das suas decorrências no século XXI, a desarticulação estética de uma totalidade, enquanto desarticulação de uma estrutura de linguagem autorreferida já não logra materialmente esquivar-se a um esbarrão trágico em um corpo, ainda que essa desarticulação seja operada negativamente por meio do espectro deste que é um corpo de linguagem, hipervisível hoje em decorrência do curso do mundo. Enquanto obra de arte, essa novela de Thomas Mann desarticula, por meio da expressão, o encadeamento mítico que sustenta uma estrutura de linguagem tautológica plenamente visível nos totalitarismos de viés fascista. Não meramente representa tais totalitarismos. O espectro desse corpo-pacote de ossos contorcidos, circunscrito ao texto, no qual a aparência está produzida historicamente, irmanada à ideia que vem sendo desde sempre a ideia da identidade do eu consigo mesmo naturalizada e universalizada, deixa sobrevir uma inapaziguável angústia arcaica a respeito daquilo que se crê pleno de sentido, ainda que vazio, cuja estrutura-repetição mostra-se atualmente pronta para ser reanimada.

Bibliografia

ADORNO, Theodor, “La idea de historia natural”. In: La actualidad de la filosofia. Trad. José Tamayo. Barcelona: Paidós Ibérica, 1991, p. 103-135.

_________. “Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Trad. Verlaine Freitas. São Paulo: Unesp, 2015.

_________. “Sobre a relação entre sociologia e psicologia”. In: Ensaios sobre psicologia social e psicanálise. Trad. Verlaine Freitas. São Paulo: Unesp, 2015.

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte da era da sua reprodutibilidade técnica”. In: Obras escolhidas, I, Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 165-196.

_________. “Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (Erste Fassung)”, In Gesammelte Schriften I. 2. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1991,

_________. “Sobre o conceito de história”. In: Obras escolhidas, I, Magia e técnica, arte e política. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 222-234.

FREUD, Sigmund “O mal-estar na civilização”. In Obras completas, v 18, (1930-36). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das letras, 2010.

_________. “Psicologia das massas e análise do eu”. In: Obras completas, v. 15 (1920-23). Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

MANN, Thomas. Mario e o mágico. Trad. Claudio Leme. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.

_________. Mario und der Zauberer. Berlin: Reclam, 1964.

[1] BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica, Obras escolhidas I, 1994, p. 196. “Die Menschheit, die einst bei Homer ein Schauobjekt für die olympischen Götter war, ist es nun für sich selbst geworden. Ihre Selbstentfremdung hat jenen Grad erreicht, der sie ihre eigene Vernichtung als ästhetischen Genuß ersten Ranges erleben läßt. So steht es mit der Ästhetisierung der Politik, welche der Faschismus betreibt. Der Kommunismus antwortet ihm mit der Politisierung der Kunst.” BENJAMIN, W. Das Kunstwerk im Zeitalter seiner technischen Reproduzierbarkeit (Erste Fassung), [1935-36]. Gesammelte Schriften I. 2, 1991, p. 469.

[2] FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu, p. 29.

[3] MANN, Thomas. Mario e o mágico, p. 60. “…ein durcheinandergeworfenes Bündel Kleider und schiefer Knochen”. MANN, Thomas. Mario und der Zauberer, p. 74.

* Artigo publicado no Correio da APPOA, n.254, de abril/2016

Fotos: Alexandre Pandolfo