“Arte e loucura se articulam em chave política” – Entrevista com Tania Rivera

“Arte e loucura se articulam em chave política” – Entrevista com Tania Rivera

Publicado originalmente em Subversos

Por Fatima Pinheiro*

Conheci Tania Rivera, psicanalista, ensaísta, professora da Universidade Federal Fluminense em um debate sobre Arte e Psicanálise, em 2005, na Universidade Federal Fluminense, e desde esse dia compartilhamos reviramentos na arte e na vida, nos tornamos amigas. Duas semanas atrás fui convidada por Tania para visitar a exposição Lugares do Delírio, ocasião que tive o prazer de presenciar o seu trabalho de curadoria que condensa a experiência de seu encontro com a arte e com a psicanálise, encontro fundamental que lhe possibilitou criar um lugar poético, de leitura e escrita, para o delírio. Sensível à leitura que ela realizou dos 150 trabalhos ali expostos no Museu de Arte do Rio [MAR], convidei-a a dar esta entrevista para a Subversos, convite que ela generosamente acolheu. O trabalho curatorial de Tania Rivera em os Lugares do Delírio, entretanto, não se resume somente na disposição para ler o delírio a partir de algo que escapa, a partir de uma fissura, onde o sentido vacila, como pude atestar – mas principalmente, pela maneira com que ela se deixou tocar pelo delírio, a isso também podemos chamar de arte. Convido-os a usufruírem desta entrevista e a visitarem Lugares do Delírio exposição aberta ao público no MAR [de terça a domingo, das 10h às 17h] até o dia 10 de setembro de 2017. Boa leitura a todos!

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Lugares do Delírio

1 – Fátima Pinheiro: O que me surpreendeu em primeiro lugar, antes de visitar a mostra, foi a escolha do nome- Lugares do Delírio. A articulação entre lugares e delírio é especialmente instigante porque você deixa o delírio no singular e pluraliza os lugares. Quais são os lugares do delírio?

Tania Rivera: Há dois anos e meio, quando Paulo Herkenhoff, então diretor cultural e artístico do MAR, me convidou para fazer esta curadoria, ele já tinha um título: Lugares da Loucura. O projeto fazia parte de um dos eixos curatoriais da instituição, Arte e Sociedade no Brasil, que visa debater questões fundamentais para a sociedade e já havia realizado uma exposição em torno do problema habitacional e outra sobre a questão da educação no país. Levantar na atualidade o tabu da loucura e retomar o debate em companhia da arte – que teve, como sabemos, papel fundamental para a Reforma Psiquiátrica – parecia-me importante e mesmo urgente (e essa necessidade ganha hoje novos contornos, diga-se de passagem, com a crise atingindo duramente os serviços de saúde mental e a tendência ultraconservadora do Congresso trazendo o risco de revisão de algumas conquistas básicas da luta antimanicomial no Brasil). Porém, eu não concordava com a ideia de tomar a “loucura” como tema, pois isso tenderia a reificá-la como patologia e a a nos fazer perder de vista sua complexa e multifacetada construção social.

Lembrei-me então da noção de delírio tal como Freud a concebe, como tentativa de cura. Essa concepção foi muito importante em minha formação e especialmente em minha Tese de Doutorado, que consistiu em um estudo sobre a noção de “perda de realidade” na obra de Freud. Esse estudo partia, é claro, da questão da psicose, mas levou-me à arte, através da ideia freudiana de que todos perdemos ‘realidade’ e de que trata-se de transformar a realidade, em alguma medida – como faz o artista em suas obras. O delírio psicótico parece-me capaz de denunciar nosso “pouco de realidade” (na expressão do poeta e artista André Breton que tanto interessou a Lacan) e mostrar nosso poder de transformá-la. Substituir “loucura” por “delírio” significava, nessa linha de pensamento, um gesto político-teórico de afirmação do campo da psicose como potência transformadora e de recusa de sua delimitação patológica em termos deficitários.

Por outro lado, o campo da produção artística pode ser rigorosamente tomado como terreno cultural de construção de realidade. Na arte, delira-se – ou seja, o pensamento sai dos trilhos habituais, dos eixos imaginários que fixam a realidade “comum” na qual nos alienamos. A arte ensaia modelos de mundo e nos convida a revirar os eixos imaginários prevalentes, seguindo a estrutura moebiana da subversão do sujeito.

O termo delírio poderia assim nomear uma espécie de interseção entre arte e psicose, e servir de motor para repensar hoje as relações – tão ricas, historicamente – entre esses campos, evitando a idealização do louco como “artista” e o lugar comum que aproxima o artista do “louco”.
Além disso, o termo “delírio” toma na língua corrente um sentido muito interessante de excesso, de prazer e transgressão. Os lugares do delírio são múltiplos, indefinidos e talvez infinitos. A aposta da exposição é a de que o delírio (e a arte) está em toda parte.

2 – F.P.: Você conseguiu reunir artistas diversos, alguns nomes bastante conhecidos, outros pouco conhecidos, entretanto o seu trabalho deixa à mostra a potência da obra de cada um deles. Nota-se um trabalho primoroso de curadoria. Conte-nos como organizou essa diversidade de linguagens.

T.R.: Recusamos a ideia de agrupar exclusivamente artistas ditos “loucos” e propostas oriundas de instituições de saúde mental, pois isso repetiria a exclusão centenária que devemos combater. Desde o início da pesquisa curatorial, nosso objetivo era misturar artistas oriundos de “lugares” diversos – do circuito da arte assim como de hospitais psiquiátricos –, e também colocar lado a lado artistas renomados e artistas desconhecidos, de origem diversa e com variada posição no mundo, porque acreditamos na arte como construção de um “comum” multifacetado e baseado no compartilhamento das diferenças, na singularidade.

Além disso, apostamos na possibilidade de a produção artística consistir ela mesma – de modo performativo – em uma reflexão sobre o sujeito (e o mundo). Podemos, portanto, buscar salientar sua potência de questionar a diferença entre razão e loucura, ao mesmo tempo em que ela recoloca (sempre) a questão do que é arte. A arte pensa – e tentamos nesta exposição mostrar que ela pensa e nos convida a pensar sobre o sujeito e seus excessos, seu sofrimento e sua alegria.

Multiplicar os “lugares” do delírio significa, assim, uma recusa de identificar algumas pessoas como “delirantes”, enquanto outros não o seriam. A psicose diz respeito a todos nós, como já mostrava Freud com seu “princípio do cristal”. Parecia-nos importante, portanto, recusar a delimitação da produção artística “dos loucos”, ou a chamada “arte bruta” (na denominação proposta pelo artista Jean Dubuffet na década de 1940). A partir do interesse que as vanguardas artísticas manifestaram, na década de 1920, pela arte realizada em ateliês de terapia ocupacional de hospitais psiquiátricos, formou-se uma espécie de categoria mercadológica, um subgrupo da arte popular ou da arte naif, que persiste a ponto de existirem até hoje, ao redor do mundo e no Brasil, galerias especializadas em “arte bruta”. Isso me parece problemático porque refaz, no domínio da arte, o gesto segregador do “louco” em relação ao “normal” – ainda que esse gesto esteja revestido de uma idealização do louco como “gênio”. Isso me parece anacrônico no contexto da produção artística contemporânea, que dinamita categorias e problematiza radicalmente a noção de gênio – e até mesmo a posição de “artista” e de sua técnica ou mestria. Analisada com mais cuidado, a delimitação da produção de psicóticos mostra-se tanto mais cruel quanto a categoria abarca principalmente sujeitos pobres (e no Brasil, em geral negros), enquanto artistas oriundos de classes sociais abastadas podem encontrar um lugar no circuito de arte independentemente de eventuais diagnósticos psiquiátricos.

A exposição tenta, portanto, operar atravessamentos e contaminações entre artistas e obras, de modo a questionar as fronteiras ainda vigentes, de modos variados. Parecia-me importante deslocar Arthur Bispo do Rosário do lugar de “arte bruta”, por exemplo, e sublinhar a sofisticada dimensão conceitual de sua obra. Tentei fazê-lo ao posicionar um de seus objetos recobertos com fio azul – um arco-e-flecha – ao lado da obra Razão/Loucura (1974/2017), de Cildo Meireles.

 

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Cildo Meireles, Razão/Loucura,1976/2017. Coleção do artista.

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Cildo Meireles, Razão/Loucura,1976/2017 (detalhe). Coleção do artista.

 

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Cildo Meireles, Razão/Loucura,1976/2017 (detalhe). Coleção do artista.

 

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Também era necessário valorizar artistas que trabalham no limite entre arte e assistência em saúde mental, de modos diversos. Nesta linha, destaco o núcleo de trabalhos feitos por Lula Wanderley em colaboração com seus clientes do Espaço Aberto ao Tempo, instituição que faz parte do Instituto Nise da Silveira e completou 30 anos. Lula é um artista ímpar, que mantém desde os anos 1970 uma produção como artista visual, trabalhou com Nise da Silveira e Lygia Clark e tem uma proposta muito precisa e sofisticada de transmutar em trabalhos artísticos as queixas e as formações delirantes de seus colaboradores. Ele dá a esta prática o nome de “Psiquiatria Poética”.

Por fim, queria ainda mostrar a potência delirante – transformadora do mundo – da arte, através de obras que não têm imediata conexão com questões de saúde mental, como é o caso dos trabalhos de José Bechara, Carlos Bevilacqua, Ana Linnemann, Bernardo Damasceno, Wlademir Dias-Pino e Rodrigo Paglieri. No caso de Laura Lima, cujas obras são muito importantes na exposição, é curioso notar que ela relata como fundamental para sua decisão de se tornar artista, aos 18 anos, o fato de seu irmão ter entrado em um surto esquizofrênico.

 

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Bernardo Damasceno, O M.A.R. vai virar sertão, 2016. Barcos de madeira, miniatura de perfumes, filó, essência de alfazema. Coleção do artista.

 

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3 – F.P.: Verifica-se, também, na organização dessa exposição, que você realiza um trabalho cuidadoso de parceria com instituições psiquiátricas, de onde você selecionou muitos dos trabalhos para a mostra. Como se deu esse trabalho de parceria?

T.R.: É fundamental para a exposição a presença de obras do Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise da Silveira, assim como do Museu Bispo do Rosário. As duas instituições foram grandes parceiras neste projeto.

Ao lado de nomes que já gozam de grande reconhecimento, como Fernando Diniz, Rafael Domingues e Arthur Bispo do Rosário, tentamos garimpar artistas pouco conhecidos ou praticamente desconhecidos através de uma ampla pesquisa para a qual contribuiu decisivamente Caroline D’Avila, minha assistente de curadoria. Foi de grande auxílio o amplo material reunido pelo Edital de Premiação Loucos pela DiversidadeEdição Austregésilo Carrano, realizado em 2009 pela Secretaria da Identidade e da Diversidade Cultural (SID) do Ministério da Cultura e o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial (LAPS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz). O acesso a este material nos foi generosamente cedido por Paulo Amarante, idealizador do Prêmio.

Outra importante parceria foi feita com a Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre, à qual fui levada por Edson de Sousa. Do enorme acervo reunido por Bárbara Neubarth e sua equipe desde o final dos anos 1980, destacamos obras de Luis Guides em pintura a guache e Natália Leite com seus bordados.

Um importante achado de nossas pesquisas foi ainda o trabalho, praticamente desconhecido, de João Jordão da Silva, que participava do hoje extinto ateliê de pintura do Centro Psiquiátrico Cândido Ferreira, em Campinas, e criou uma extraordinária escrita pictórica.

 

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João Jordão da Silva, sem título, s/d. Caderno de desenho. Coleção Centro Cândido Ferreira.

 

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Por fim, queria ressaltar uma ação específica que a exposição realizou em parceria com o Ateliê Gaia: A “residência artística” efetuada por Solon Ribeiro, Lívia Flores e Gustavo Spiridião. Eles frequentaram por longos períodos o ateliê na Colônia Juliano Moreira, estabelecendo trocas diversas com os artistas de lá. Isso significa um deslocamento geográfico e simbólico: para outra região da cidade e para um local específico de “produção artística”, dentro de uma instituição psiquiátrica. Mas um deslocamento como este só efetiva se ele é de mão dupla, e para isso trouxemos também o pessoal do Gaia para o MAR, em uma reunião de trabalho em que aprendemos muito, com eles, sobre o que é arte.

4 – F.P.: O primeiro trabalho que vi no espaço expositivo foi o de Cildo Meireles, Razão/Loucura (1976/2017). Este trabalho pareceu-me desenrolar uma linha invisível que faz deslizar outros trabalhos da mostra. Esse trabalho de Cildo é o disparador da poética de os “Lugares do Delírio”?

T.R.: Costumo dizer que esse trabalho – ao lado do Arco e flecha de Bispo – torna supérfluos os textos institucionais que o antecedem na entrada da exposição, porque constitui em si uma espécie de definição poética da “loucura” – e de sua relação com a arte. Ele foi, de fato, uma das primeiras obras a serem selecionadas, e a dificuldade de conseguir que colecionadores a emprestassem, devido à fragilidade das peças, me deixou apavorada. Muito generosamente, Cildo Meireles entendeu a importância que ela tinha para a mostra, e se prontificou a produzir dela um novo exemplar.

Ao se referir a este trabalho e à questão da loucura em geral, Cildo costuma citar um outro importante artista brasileiro, Raymundo Colares (1944/1946), que contava ser um grande tabu alguém se referir à loucura em sua cidade natal, no interior de Minas Gerais. Ninguém dizia “fulano ficou louco” ou “pirou”. Quando alguém tinha um surto, as pessoas diziam: “fulano se declarou”.

É pertinente e provocativo distinguir o “louco” do normal pelo fato de que aquele se “declararia” louco, enquanto este não o faria (ou ainda não o teria feito). Mas acho que esta anedota talvez deva ser levada mais longe: talvez o “louco” seja aquele que se declara… sujeito, simplesmente.

Razão/Loucura traz duas varas de bambu tensionadas em seu ponto máximo graças à ação de uma fina corrente de metal, no centro da qual há um cadeado fechado. A tensão é extrema, a ponto de Cildo e seus assistentes terem quebrado 24 varas até conseguirem realizar esse exemplar do trabalho. A primeira vara tem uma outra corrente que pende do ponto mais alto do arco e não chega, com a pequena chave que está em sua ponta, a tocar o peqeno cadeado. Nesta corrente vertical está acoplada uma pequena placa de metal na qual se lê a palavra “Razão”.

O segundo arco tem a mesma estrutura do primeiro, mas nele a corrente vertical se alonga cruzando o cadeado, com sua pequena chave pendendo alguns centímetros abaixo dele. Aqui, a tensão é virtualmente liberada – e a pequena placa de metal inscreve “Loucura”.

Gostaria que esse gesto de liberação, de quebra da estrutura, que o trabalho nos convida a realizarmos imaginariamente, contaminasse toda a sala, toda a exposição, pondo em movimento todas as obras nela presentes.

5 – F.P.: Entre o lúdico e o lírico – aspectos importantes da mostra – há uma escolha muito singular de sua curadoria – a das embarcações. Como se deu essa escolha?

T.R.: Os barcos são votados ao movimento – e particularmente à deriva, que é um tipo de impulsão muito interessante para se pensar o sujeito do inconsciente e a subversão do Eu (senhor de seu leme, de sua vela, de seu motor eventual).

Lacan diz em alguma parte que o inconsciente é um barquinho. Mas devo admitir que não havia pensado nisso ao escolher os barcos de Artur Bispo do Rosário, que acabaram me levando a outros barcos. Tampouco tinha em mente a “nau dos loucos”, tão bem descrita por Foucault em sua História da Loucura. Esses elementos mais “narrativos” não me guiaram explicitamente, mas acho que podemos dizer que estavam presentes e se revelaram abruptamente a mim apenas durante e após a montagem da mostra. Já a presença da “jangada” no pensamento de Fernand Deligny me veio um pouco mais cedo, durante o processo de curadoria de seus trabalhos, também posterior à escolha das embarcações de Bispo.

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Arthur Bispo do Rosário Vela Roxa, s/d Madeira, metal, fórmica, tecido e linha. Coleção Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

 

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Arthur Bispo do Rosário, Escaler Regata Bahia, s/d. Madeira, plástico, tecido, metal e linha. Coleção Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

 

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Arthur Bispo do Rosário, Alvo de Batalha, s/d. Madeira, plástico, tecido, metal, linha e papel. Coleção Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

 

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Tudo partiu do grande desafio de chegar a um recorte na imensa produção do grande artista que foi Bispo do Rosário. Creio que as exposições de sua obra criaram para ela, ao longo do tempo, um certo lugar comum que eu queria recolocar em questão. Um dia eu visitava o acervo na Colônia Juliano Moreira e me veio esta ideia de ter todos os trabalhos de ou com embarcações. Bispo foi marinheiro em sua juventude, antes de se instalar no Rio de Janeiro, e os barcos não poderiam faltar em seu incessante trabalho delirante (e simultaneamente artístico) de reconstrução do mundo.

A partir deste recorte, fiquei obcecada por barcos. Comentava com a equipe da exposição que no MAR… precisamos de barcos, brincando com a sigla do museu e o fato de que, como diz Freud, o psicótico toma a palavra como coisa (assim como faz o poeta, eu acrescentaria). A profusão de barcos havia se tornado, de alguma maneira, meu “delírio”. Fui encontrando outros barcos incríveis, como os de Maurício Flandeiro, do Cariri (que é usuário da rede de saúde mental), os de Arlindo Oliveira e Luiz Carlos Marques (do Ateliê Gaia, no Museu Bispo do Rosário) e os de Bernardo Damasceno.

6 – F.P.: Chamou a minha atenção as diversas maneiras que você convida o expectador a colocar o corpo em relação às obras. Ora o convite se dá para que se sente para ver de perto e de cima o trabalho, ora o tocando, ora não chegando perto dele, colocando obstáculos. O que você pode nos dizer sobre isso?

T.R.: Meu maior desafio nesta curadoria era transpor para o espaço da exposição, concretamente, o pensamento conceitual no qual ela se embasa. Como tornar efetivo, na experiência do espectador, o convite a transformar o mundo, com a loucura e a arte? Nunca temos garantias de que uma proposta deste tipo vai funcionar. A arte é imprevisível e talvez o gesto curatorial, à maneira daquele do artista, seja como lançar no mar uma garrafa com um bilhete de náufrago (com a diferença de que neste bilhete de papel é aquele que encontra a garrafa que deverá escrever algo).

Minha reflexão teve como ponto de partida a função da parede – e especialmente da parede falsa, do painel em uma sala de exposição. Esse elemento é quase invisível e no entanto estrutura o espaço tradicional da arte, separando as obras do mundo e uma obra de outra obra. Assim como o “pedestal” faz para a escultura, a parede erige o quadro em objeto único (e assim o fetichiza, em alguma medida). Transportando esse pensamento para além do campo da arte, podemos dizer que a parede, como a página em branco, é uma espécie de suporte da representação: uma superfície neutra que consistiria em uma espécie de grau zero do Simbólico. Ela torna possível a representação como campo que não se confunde com o campo das “coisas” nelas mesmas.

Ora, o delírio põe “palavra” e “coisa” no mesmo patamar e eventualmente as mescla, porque ele recusa tal suporte disjuntivo. No delírio há uma malha simbólico-imaginária que visa dar conta do Real, exatamente como ocorre na construção de nossa (precária) Realidade compartilhada, mas na malha do delírio a coisa e sua representação estão igualmente em jogo, em pé de igualdade. Não há “parede” fixa a recobrir o Real, ou melhor: há recobrimentos parciais, mas eles não estão firmemente organizados por uma amarra central (que a teoria busca cernir em várias noções como a de recalcamento primário, a do Nome do Pai ou ainda a de Ponto de Basta) e portanto os elementos estão neles em constante movimento.

A primeira decisão tinha que ser, portanto, a de recusar a presença de paredes falsas nas salas de exposição de Lugares do Delírio, em prol de uma contaminação entre os elementos da exposição – e também entre eles e o que está fora dali, através da abertura das venezianas das janelas de canto, para tornar visíveis fragmentos do mundo.

Em seguida, lembrei-me de uma questão central para o trabalho de Bispo do Rosário, para a qual me chamou a atenção a tese de doutorado defendida por Flávia Corpas sob a orientação de Marcus André Vieira: os trabalhos de Bispo estavam dispostos no espaço por ele ocupado na Colônia Juliano Moreira de forma móvel, em constante transmutação. Bispo os retomava e eventualmente acrescentava elementos, ou os transportava de modo a modificar a configuração de cada elemento por sua contaminação com os demais.

Eu gostaria de ter na primeira sala da mostra – a sala onde estão os barcos – um movimento constante entre as obras que fosse capaz de modificá-las constantemente, como se dava no espaço de Bispo. Mas essa era uma ideia louca: seria impossível ir mudando a disposição das obras ao longo da exposição, é claro, por razões museológicas e práticas. Eu podia, contudo, tentar realizar virtualmente tal contaminação transmutadora entre as obras, através da movimentação do espectador. Veio-me então a ideia de dispor as obras em mesas simples, de tamanho e altura variada, a estabelecer múltiplas plataformas horizontais. E de espalhar as mesas pela sala de exposição de modo a recusar a ideia de percursos previstos ou preferenciais. Cada pessoa deve inventar seu trajeto (ou sua deriva) por entre as obras, e a cada momento de seu caminhar são sempre várias obras que estão em seu campo de visão, de forma contaminada e instável.

Isso vale também para a segunda sala da mostra, mas nela a proposta não se apoia na horizontalidade múltipla, e sim na verticalidade – que é ali quebrada, posta em xeque pela suspensão dos elementos e convidada a um reviramento topológico, com o grande espelho inclinado que faz o “chão decolar”, na proposta de Laura Lima.

A exposição aposta, assim, na singularidade do olhar, a cada momento da experiência, a transformar as obras, de perto ou de longe, por cima ou por baixo e eventualmente dentro – como nos convidam a fazer os Novos Costumes de Laura Lima e a Camisa de Força de Lygia Clark. Afinal, o que a arte visa atingir é nossa posição no mundo.

7 – F.P.: Quais são os pontos de disjunção e conjunção entre arte e loucura?

T.R.: Seria redutor e simplista psicologizar a questão e fazer do “louco” alguém que seria um artista em potência, enquanto o artista, complementarmente, teria algo de “louco”.

Loucura e arte são formações sociais muito complexas e transpessoais: elas dizem respeito a todos nós. Ao compreender a loucura como uma potência “poética”, corremos o risco de recobrir sua dimensão de sofrimento intenso e de segregação histórica através de uma idealização superficial. De maneira complementar, o lugar comum que aproxima a produção artística de uma “louca” genialidade tende a obscurecer a dimensão conceitual e política da arte.

O interesse das vanguardas artísticas da primeira metade do século XX pela loucura nos mostra um ângulo mais adequado para pensar esta questão: o que elas buscavam nas obras dos pacientes que ficavam décadas internados em hospícios era uma nova linguagem, era a abertura para outras possibilidades de representação, diferentes dos parâmetros então vigentes. Ao lado dos povos ditos primitivos, das crianças e dos artistas naïfs (sem estudo formal de arte), os “loucos” eram vistos como testemunhas de outras facetas do humano, de outras lógicas de representação.

Desde então, a arte alargou e problematizou seu próprio campo a tal ponto que ela não pode mais ser delimitada por tradições ou formações específicas. Boa parte da prática artística atual se confunde com ações sociais ou políticas, abarcando coletividades, consistindo em proposições relacionais etc. Ela continua se interessando pelas diversas faces da experiência humana, mas sua relação com o campo da loucura, por sua vez tão complexo, não pode mais ser aquele do interesse por um terreno nítido e distinto. As pessoas que hoje vivem a experiência psicótica não estão condenadas a viver em uma situação de confinamento que as colocaria fora da cultura (e as faria capazes da “expressão pura” idealizada pela ideia de “arte bruta”).

As relações entre a produção artística contemporânea e o campo da psicose são múltiplas – e se realizam na singularidade, nas condições específicas de cada proposta. Lugares do Delírio tenta apresentar algumas de suas vias.

8 – F.P.: Para finalizar esta entrevista gostaria de fazer um pedido muito especial: no final da mostra você poderia oferecer uma visita guiada a todos aqueles que, assim como eu, foram tocados por essa maravilhosa exposição que de forma tão contundente enlaça loucura e arte?

T.R.: Será um prazer! Tenho feito várias visitas guiadas e a cada uma delas meu olhar se transforma, no jogo com o olhar das pessoas presentes – isso tem sido uma experiência incrível. Há poucas semanas aconteceu algo especial: fizemos uma visita guiada por Lula Wanderley e a equipe e clientes do Espaço Aberto ao Tempo. Foi muito bom ter outros “guias”, traçar outros percursos. Pretendo em breve convidar outros artistas da exposição – como o pessoal do Ateliê Gaia e André Abu-Merhy e seu grupo da Casa Verde – para compartilharem conosco seus olhares sobre os lugares do delírio.


*Fátima Pinheiro é psicanalista, membro da EBP/AMP, artista plástica e colunista do Blog da Subversos.