Mesmo para quem conhece o pequenino teatro Àgora, onde são apresentados os monólogos de Celso Frateschi, sempre pode se surpreender ao ver esse ator extraordinário em cena. Sem patrocínios e sem leis Rouanets, como ele mesmo destacará ao final do espetáculo.
Sua maneira peculiar e única de conduzir um monólogo dramático. Conversando, matutando com o espectador textos complexos e revelando juntos – ator e espectador – o pensamento vivo que só o teatro é capaz de colocar em cena e em ação, um pensamento em estado de gênese. Nesse caso o envolvimento com texto magistral de Dostoiévski, que o ator Frateschi redobra em criação e inventividade interpretativa, retumba em contemporaneidade.
Desde a montagem de Sonho de um homem ridículo em que testemunhamos um sujeito qualquer, perdido em seus escuros subterrâneos, amargando os mais densos conflitos morais, ao mesmo tempo em que se ergue, empunhando a consciência de si, de seu estado pusilânime, contra seu próprio sintoma suicida, esperávamos que Frateschi nos brindasse com novos Dostoievskis.
Daí, desde março desse ano, tem início em São Paulo a temporada trilogia Dostoievski. Ela tece um fio entre um e outro aspecto dos textos extraídos de Sonhos de um homem ridículo, dos Irmãos Karamazov e de Memórias do subsolo. Fio que inventa um pensamento cativo de sua própria degradação, que gira em círculos e se soergue diante de sua infâmia, mas que reconhece – no auge de sua própria degeneração –, sua condição vil, decadente, deletéria e eloquente.
Esse reconhecimento, que não perturba e nem prepara qualquer mudança, gera um pensamento lúcido advindo das camadas baixas do homem dostoievskiano, que não ignora sua radical e perene imobilidade cativa.
Seria a glória se os imorais, ridículos e medíocres revelassem um debate moral à altura do que Dostoiévski pretendeu com seus personagens que infames, lutam, altercam contra sua própria infâmia produzindo um pensamento do subterrâneo, das profundezas de um saber-se e de um ignorar-se em estado de putrefação. Frateschi recoloca com inteligência dramática, diante de nós e em nós, os espectadores-protagonistas desse impasse, um imenso abismo.
Pois é em nós, ‘os camundongos de consciência apurada’, apequenados por pequenos ofícios, cativos e fascinados pela supremacia das lógicas ‘científicas e matemáticas’, servis diante do cadafalso que nos oferecem os rútilos homens que proclamam o fim de toda complexidade e dúvida, que o espetáculo ganha em sentido. Será para nós que se prepara a contabilidade de quantos pedaços de queijo serão distribuídos, para cada uma das ratoeiras espalhadas por todos os lugares, para os que só se ocupam em sobreviver as encontrem.
‘De que vale a liberdade se a obediência pode ser comprada com um pedaço de pão?’ (ou queijo), afirma peremptório o inquisidor. Para os camundongos, não importa a ratoeira, desde que se experimente o queijo entre os dentes, ainda que seja num átimo, antes do extermínio.
Recusar o queijo, que é colocado com esmero nas ratoeiras, é o único meio de recusar a sedução daquilo que se nos oferecem, gratuita e calculadamente. Recusar o queijo é abandonar um destino de ratos e, ao mesmo tempo, ter que reinventar o que nos poderá saciar.
Hoje prepara-se no Brasil uma distribuição de restos. Para denunciá-la, desmontá-la, implodi-la serão precisos homens, muitos, aqueles que abdicaram de sua condição de roedores.
Trilogia Dostoievski está em cartaz até o dia 04 de dezembro no teatro Àgora.
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