Sobre a política do golpe e seu avesso
Por: Daniel Lirio
Psicanalista, Mestre em Psicologia Social pela USP. Autor do Livro Suspensão Corporal; novas facetas da alteridade na cultura contemporânea (Ed. Annablume) e de diversos artigos sobre psicanálise e cultura, muitos deles disponíveis no site www.daniellirio.com
No domingo, 4 de Setembro de 2016, participei da manifestação em que mais de 100 mil pessoas caminharam da Avenida Paulista até o Largo da Batata, em Pinheiros. Foi lindo e pacífico. Ao final, entrei na estação do metrô para voltar pra casa. Logo descobri que escapara por pouco, pois havia começado uma forte repressão, gratuita, por parte da Polícia Militar. Aliás, tanto as manifestações pró-Dilma, como as manifestações pelo fora Temer e novas eleições, tem em comum a dura repressão policial. O roteiro é conhecido: a manifestação segue pacífica, os policiais provocam o confronto, alguns manifestantes revidam, algumas pessoas – sabe-se lá se black blocs, pessoas comuns que se revoltaram ou mesmo policiais infiltrados, os chamados P2 – quebram vidraças ou depredam patrimônio e voilà: está pronta a reportagem para a grande mídia. Os manifestantes são taxados de vândalos e, portanto, os jovens de família ordeira não deveriam tomar parte nessa bagunça toda.
No domingo seguinte, dia 11, ocorreu a manifestação que, segundo as más línguas, levaria cerca de 50 mil pessoas da Av. Paulista até o parque do Ibirapuera. Estávamos eu, uma amiga e dois amigos. Desde o início, percebemos um fortíssimo esquema policial e, quando começamos a descer a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, o cheiro de emboscada estava no ar. Algumas transversais estavam bloqueadas pela polícia e, à cada rua que atravessávamos, cada bar ou mercado, mapeávamos possíveis rotas de fuga.
No meio do caminho, eu e minha amiga Mariana saímos da manifestação para usar o banheiro em uma padaria da esquina. Muitos outros manifestantes tiveram a mesma ideia e, como as leitoras podem imaginar, a fila do feminino era imensa. O masculino tinha dois mictórios e um reservado. Assim, comecei a organizar para que as mulheres pudessem usar o reservado. Tudo corria conforme o esperado quando, lá pelas tantas, uma surpresa: saídos de suas viaturas que acompanhavam a manifestação, chegou uma dúzia de policiais com o mesmo propósito que o nosso. As mulheres ficaram visivelmente constrangidas, mas a necessidade falou mais alto. Eu mantive o meu posto e me tornei uma espécie de São Pedro, guardando as portas de um paraíso terrestre e decidindo quem e quando entrar.
É justamente essa cena que quero trabalhar: a breve harmonia entre as jovens valentes e os policiais a quem tanto repudiávamos. Curiosamente, eles não chegaram com aquela cara malvada que conhecíamos até então, pareciam tranquilos e relaxados. Com algum esforço imaginativo, seria possível trocar as terríveis fardas por uniformes de futebol, eram como um time que, após um jogo de várzea, vai a uma padaria comemorar a vitória.
A partir das dezenas de imagens de brutalidade policial que circulam na mídia alternativa, podemos supor que o sentimento típico do policial para com os manifestantes é de ódio e desprezo. Com base nos gritos de ordem entoados pelos manifestantes, misto de crítica, provocação e gozo, é possível supor que os sentimentos mais comuns para com os policiais são ódio, desprezo, rancor e, claro, medo. Os gritos mais comuns aos chamados “coxinhas” são: “não acabou, tem que acabar/eu quero o fim da polícia militar”, “ei, soldado, cê tá do lado errado” e a minha preferida: “chega de chacina/eu digo fora, PM assassina”. Passar por um batalhão cantando essa música em uníssono é certamente uma experiência interessante, misto de medo e júbilo.
A cena do banheiro me remeteu a um ponto que, de tão óbvio, acabamos por esquecer: o nosso inimigo não é o policial, mas os atores políticos interessados nessa oposição. Alguns atores ganham com a violência porque ela é instrumento de repressão, mas sobretudo porque ela é geradora de violência e nada agrada tanto o eleitor médio paulista como o candidato que se apresenta como possuidor da “firmeza” necessária para combater a bandidagem e a desordem. O gesto do punho cerrado apontando pra baixo, tantas vezes feito por Maluf, tantas vezes repetido por Alckmin, leva a torcida ao delírio.
No domingo seguinte, dia 18, o show de horror ficou por conta da brutalidade com que os PMs tomaram (roubaram?) a mercadoria dos ambulantes que vendiam bebidas na manifestação da Av. Paulista, bem como pela truculência com que agrediram o candidato a vereador Eduardo Suplicy – inclusive com spray de pimenta. Se policiais agem dessa forma com um ex-parlamentar nacionalmente reconhecido por sua honestidade e pacifismo, homem branco, rico e idoso; se fazem isso na avenida mais tradicional da cidade, à luz do dia, sob o olhar de milhares de testemunhas, o que não fariam a um jovem anônimo, negro e pobre em uma periferia, longe de holofotes e testemunhas?
Aqui retorno à cena do banheiro para pensar o que faz com que aqueles homens e mulheres, muitos pardos, negros, todos pobres, que bem poderiam estar retornando de uma partida de futebol, tenham se colocado no lugar de agentes da violência, mantendo com tanto esmero a triste tradição de capitães do mato?
Obviamente, trata-se aqui de tema bastante vasto, mas eu gostaria de recortar um elemento: a verticalização do poder. As ordens, com relação à “segurança pública”, seguem um caminho vertical do governador para o secretário de segurança, seguindo a hierarquia da polícia até chegar na ponta, nos soldados, onde não há qualquer espaço para a reflexão, discordância ou pensamento crítico. O soldado que agrediu o Suplicy, portanto, não era um agente público em relação com outro agente público, mas um mero braço que executava uma diretriz superior. É essa a lógica militar, e isso é questionado quando se propõe a desmilitarização da polícia.
No extremo oposto, temos a forma radicalmente horizontal com que se organizam os jovens nas manifestações, com assembleias e decisões em loco, sem representantes eleitos que concentram poder e tomam decisões individualmente. Em uma das vezes que a Av. Paulista foi ocupada, presenciei um processo de tomada de decisão por todos os presentes. Havia quem quisesse rumar para a FIESP, em confronto deliberado com a PM, mas a maioria felizmente decidiu por um outro caminho, descendo a rua Augusta – ainda que viesse a ser também brutalmente reprimida pela PM durante o trajeto. Essa forma de organização tornou-se mais conhecida durante as manifestações contra o aumento da tarifa de transporte, em 2013. Os integrantes do Movimento Passe Livre desconcertavam os jornalistas que procuravam entrevistar os “líderes”. Por tratar-se de um coletivo, contudo, não havia o líder, nem presidente ou algo parecido.
Em 2015, a belíssima mobilização do estudantes secundaristas de São Paulo, cujo estopim foi a proposta retrógrada e abusiva de reorganizar as escolas públicas, também foi marcada pela horizontalidade. Ao romper com a lógica vertical do ensino e ocupar a escola de forma verdadeiramente democrática, os estudantes se apropriaram do espaço escolar, puderam cuidar da escola e aprender sobre política, história, sociologia, educação etc. Conforme ouvi e li na época, foi uma experiência infinitamente mais rica do que nos tempos em que a escola funcionou tradicionalmente. Muitos estudantes se apropriaram de seu lugar político e agora participam da luta contra o golpe.
Obviamente, nessa luta, também participam instâncias cuja organização do poder é tradicional, como o MTST, a UNE, partidos políticos de esquerda, a CUT e demais sindicatos – os quais também não estão livres das acusações de cronificação e abuso de poder. Há, portanto, uma composição mista, mas penso que seu caráter mais subversivo está a cargo dos coletivos, sejam os vários coletivos organizados pela juventude, seja a Mídia Ninja, os Jornalistas Livres e tantos outros.
Coloca-se em questão, assim, como os modelos tradicionais de organização do poder podem ser atravessadas por formas coletivas e horizontais, bem como por outros modos de participação popular, como a eleição direta dos subprefeitos, os conselhos populares, os conselhos gestores paritários, os grêmios estudantis, as diversas formas de consulta popular etc.
Para a psicanálise, a questão do poder é eminentemente central. Freud diferencia a psicanálise da mera prática da sugestão, na qual o exercício de poder altera o comportamento do sujeito provisoriamente, sem qualquer transformação profunda. Posteriormente, Lacan vai tratar o discurso Psicanalítico como possibilidade de subverter os discurso do Mestre, do Universitário e do Capitalista, que se cronificam no exercício do poder e conduzem à mera repetição das relações, saberes, prazeres, consumo e formas de reconhecimento.
Essas contradições, contudo, jamais podem ser superadas de uma vez por todas. Prova disso é que, tanto instituições freudianas quanto lacanianas não estão imunes às críticas quanto a cronificação, repetição, dominação e, por conseguinte, de produzirem cegueiras ali onde querem lançar luz.
Finalmente, se entre os psicanalistas pode haver discordância quanto à escolha partidária, não poderia – ou não deveria – haver divergência quanto à forma mais profícua de organizar o poder: os coletivos, as organizações horizontais, a participação direta da população nas tomadas de poder. É esta forma, mesmo que combinada com a tradicional, que melhor pode fomentar o avanço de nossa política em direção à democracia, à inclusão social e ao desenvolvimento humano. Ainda que tenha havido o golpe, caracterizado pela brutalidade com que são exercidas as ações de interesse da plutocracia, é fundamental que possamos investir nesse tecido de horizontalidade subversiva que, não obstante, se fortalece em nossa sociedade.