Despedida. Por Edson Luiz André de Sousa.

Despedida. Por Edson Luiz André de Sousa.

DESPEDIDA

“Ficou tarde, meus caros;

Por isso não vou aceitar pão ou vinho de vocês,

Somente umas horas de silêncio

….

E uma cama para dormir sozinho.

Em troca, lhes deixarei versos nebbich como estes,

Feitos para serem lidos por cinco ou sete leitores:

Depois seguiremos, cada um por si,

Pois, como eu dizia, ficou tarde.

Primo Levi, em 28 de dezembro 1974 (Despedida)

 

QUAL A MATEMÁTICA DA MORTE?  Quando contamos a morte às dezenas, aos milhares, aos milhões perdemos a dimensão do que significa uma despedida. Leio hoje, comovido , sobre a morte de VALDEMAR GOMES, 47 anos,  em São Paulo, vítima do coronavirus  . Valdemar era professor da rede municipal de São Paulo, e um dos fundadores do cursinho popular para vestibulandos de baixa renda na PUC-SP.  Valdemar, professor de história, não apresentava comorbidades e, portanto não  se enquadrava no grupo de risco. Nascido em Miracema no Tocantins ele entrou na PUC em 1995 e logo começou a militar nos movimentos estudantil e negro na universidade. Em 1997, foi um dos fundadores do cursinho popular da PUC, ativo até hoje. Deu aula também no cursinho popular da ONG EDUCAFRO, nas redes estadual e municipal e participou do sindicato de professores.Em 1999, armou uma barraca em frente à reitoria da universidade para exigir a matrícula de alunos que, como ele, eram inadimplentes. A notícia se espalhou e outros estudantes se somaram ao acampamento, que durou cerca de dez dias e conquistou seu objetivo. Fez seu mestrado e doutorado  a partir de editoriais de jornais  no período da ditadura civil- militar (1964-1985). Concluiu no fim do ano passado seu doutorado na UFABC (Universidade Federal do ABC), mas não chegou a receber o certificado em função da pandemia, que será entregue à família.Deixa a mulher, Lidia , e os filhos Guilherme , 13 e Leticia, 17.

Ao ver uma imagem dele em sala de aula fico tentando imaginar sua voz, suas reflexões, sua aposta na transmissão de conhecimento e profundo espirito solidário que , imagino, conduzia sua vida. A morte precisa ser vista com nome e sobrenome, com a história que cada um pode construir na vida. É assustador ver as imagens das centenas de covas em cemitérios no Brasil e no mundo, esperando os corpos, que muitas vezes chegam praticamente sozinhos. Imediatamente ao ler a noticia comecei a escrever este breve texto como uma forma de homenagem a Valdemar e tantos outros que  já perdemos e que perderemos.

INDIGNADO, leio  ao lado da  noticia da morte de Valdemar ,  o “passeio” que o capitão reformado fez na manhã desta sexta feira em Brasília. Entrou em uma farmácia, mesmo estando em vigência o isolamento social no Distrito Federal, abraçou pessoas, tirou fotografias.  Neste gesto, que se repete diariamente, ele desautoriza todos os esforços que vem sendo feito para salvar vidas.  O mundo chegou a 100 mil mortes e o Brasil já chegou a 1057 . Para os ainda incrédulos que eventualmente lerem este post, atentem, por exemplo, para a situação de São Paulo. O índice de isolamento social no estado de São Paulo caiu 12,96% na ultima semana, segundo levantamento do governo em parceria com operadores de telefonia celular. No mesmo período, o número de mortes pela doença cresceu 152%.  Segundo o médico infectologista David Uip “”Os dados demonstram claramente que, conforme caem os índices de isolamento social, aumentam casos e mortes de forma vertiginosa. Por isso, reforçamos que a melhor vacina contra o coronavírus é ficar em casa.”

Para Valdemar, dedico estas horas de silêncio deste breve poema de Primo Levi, com o desejo que possamos continuar lutando pela vida. Nestas horas sabemos que uma palavra, um cuidado, um gesto pode salvar muitas vidas.