No cair da primeira tarde deste outono me emocionei ao escutar Edson de Sousa na Jornada da APPOA (Associação Psicanalítica de Porto Alegre). A partir do título “O que o poder não pode?- o inconsciente utópico” salienta em sua enunciação que “o poder não pode silenciar a força de um testemunho”. Encontro aqui o reconhecimento da vasta literatura de testemunho, gênero literário que nos deixa importantes rastros de experiências traumáticas vividas no período pós-guerra e em governos totalitários. Há também o reconhecimento de nosso fazer enquanto clínicos, quando testemunhamos a construção de percursos psicanalíticos em nossos consultórios. Percebi a emoção também nas manifestações de algumas pessoas pela tela de meu computador. Atentos, uns com olhos marejados, outros imóveis – como me disse uma amiga querida. Eu senti meu corpo tremer. Com pausas e a voz embargada em alguns momentos, o psicanalista nos lembra histórias tristes que temos vivido diariamente no país há um ano. As referências artísticas deram um tom poético à fala e possibilitaram bordear assuntos difíceis que conseguiram atravessar a tela e abrir Outra cena. Meu tremor sinalizava um corpo que percebia o resgate do vigor da palavra, da potência do coletivo e do sentimento de solidariedade frente às dores e perdas. Tania Rivera, em escrita para o PPD, escreveu que estamos diante do desafio de abrir fendas na tela, na busca de rasgá-la, encontrar “gestos que façam tropeçar o fluxo da fala, timbres que levem a gaguejar, frases melódicas dissonantes.” A fala de Edson fez furo na lisura plana da tela e no excesso de nitidez de imagens violentas que estamos expostos. Produziu uma fissura mínima no tecido duro da violência e permitiu avivar a palavra, pausada e entrecortada pelas emoções. Sobre violência e palavra, Lacan (1957-58/1999) nos adverte que a violência é exatamente o contrário da fala, destacando que atos violentos se mostram no fracasso da palavra.
No esforço de não silenciar as palavras, Edson recordou a história de Márcio Antônio que perdeu seu jovem filho Hugo (25 anos), vítima da covid-19. Esse pai foi filmado recolocando as cruzes de um protesto em homenagem aos mortos pelo vírus na praia de Copacabana, em junho do ano passado, após a manifestação de um grupo de invasores que tentou destruir o ato simbólico. Márcio, que tentava resgatar o que nos resta de dignidade humana, falou: “Gostaria, por favor, que as pessoas tivessem mais empatia e compaixão pelas pessoas, pelas vítimas, por todos nós.” Ele pedia respeito. Não seria o mínimo o que poderíamos oferecer a ele e a todos nós?
A palavra mínimo insistiu em mim ao final da Jornada. Associo ela ao trabalho de duas artistas brasileiras: Néle Azevedo e Laura Freitas.
Néle compôs um belo projeto de intervenção urbana intitulado Monumento Mínimo. Diversas cidades do Brasil e de outros países sediaram o projeto. Inúmeras esculturas de gelo com formato de figura humana e de vinte centímetros cada foram colocadas para derreter em espaços públicos diante dos olhos dos cidadãos que passavam pelas ruas. A ideia da autora do projeto é de subverter a noção de monumento historicamente associada aos heróis e figuras no exercício de poder para homenagear as vidas comuns, a vida nossa de cada dia. Néle trouxe o tom poético à intervenção a partir da escolha do gelo para construir as esculturas. Os monumentos mínimos são transitórios e feitos não para a lembrança, mas sim para o esquecimento. Entre a passagem das esculturas do estado sólido ao líquido há um tempo. É durante este intervalo que as pessoas pausam para ficar diante das imagens. Em 2005, na intervenção feita na Praça da Sé (São Paulo), inúmeras esculturas foram colocadas em degraus. Os monumentos chamam a atenção das muitas pessoas que cruzam por ali, capturadas pelo derreter das esculturas que quebram com o automatismo da repetição dos mesmos caminhos percorridos cotidianamente e abrem espaço para a construção de novos significantes a partir da cena ofertada. O ato artístico de Néle convida o cidadão que passa na rua a ocupar uma postura ativa diante do mundo. Suas esculturas convidam a abrir brechas para o que ainda não nos deixamos tocar, o que não pensamos e não imaginamos.
Fonte: https://www.neleazevedo.com.br/galeria-monumento-minimo
As figuras humanas que escorrem diante dos olhos dos observadores lembram algo que nos é tão caro: a finitude da vida. Finitude esta que nos assola neste momento em que perdemos mais de trezentas mil vidas para a covid-19. Isto é avassalador! Que imagens nos fazem parar e nos detém? Que encaminhamento damos ao que olhamos e escutamos?
Penso que, no mínimo, precisamos nomear, historicizar as vidas que perdemos, como a de Hugo, cujo pai que sofre não encontra palavras no dicionário para nomear essa perda. Mário Corso, em uma escrita intitulada Sem nome, escreve que “quando os pais perdem um filho não há palavra para o que eles sofrem. Não conseguimos denominar o estado civil da maior das dores. Ela é tão grande que o verbo não abarca, tão sem razão que a razão não lhe alcança um nome.” Em todas as línguas o nome é a única palavra que não se altera. Ao receber um nome, recebemos uma marca que porta uma suposição de sujeito e nos retira da condição de coisa. “Se números frios não tocam a gente/Espero que nomes possam tocar”, diz o poeta Bráulio Bessa em seu poema Inumeráveis, que ganhou melodia no talento ímpar do músico Chico César. As informações contidas no poema fazem parte do acervo do memorial Inumeráveis criado pelo artista Edson Pavoni. São esforços artísticos em favor do coletivo como estes que abrem espaço para celebrar as vidas, para resistir e sobreviver diante dos inapreensíveis números estatísticos diários e para tentar fazer algo em favor do respeito, da construção de memória, da reconstrução dos afetos e da possibilidade de imaginar futuros. Atos como estes mostram a potência das artes que nos convocam a não soltar o fio que minimamente nos civiliza.
Aproveito para falar de um trabalho da artista Laura Freitas chamado Quando recolhi os cacos pelo chão, que esteve em exposição no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (RJ). Laura recolhe cacos de vidros e porcelanas e os costura com um fio de tricô na tentativa de reuni-los, em vão. Ao costurar ela pode também se cortar. Então o faz com muita delicadeza e cuidado. O formato e o tamanho dos cacos dão a direção da costura ao ponto de criar um manto pesado e espesso. As qualidades do material levam a artista a tecer no chão e acolher, com linha e agulha, cada caco em seu colo.
Fonte: https://www.instagram.com/freitaslaurart/
A ação da arte proposta por Laura elucida algo que a psicanálise nos transmite: a vida como esse esforço, essa tentativa vã de reunir os cacos a partir das narrativas que nos constituem. Na impossibilidade de uni-los, podemos abrir espaço para novas formas de compor os cacos com a sustentação de costuras por um fio. Este fio do qual nos constituímos e vamos compondo é a palavra. É a partir dela e com ela que fazemos costuras mínimas que nos amarram com a vida. Esses tempos pandêmicos tem revelado esse tom do “por um fio” do qual somos feitos. São muitos os cacos durante esta pandemia. Alguns começamos a recolher; outros não avistamos que estão lá, outros ainda quiçá iremos ver. Saberemos somente a posteriori, como Freud nos lembra.
Por hora, concluo dizendo que esta escrita foi uma possibilidade de recolher alguns cacos que tem ficado pelo chão. Essa mínima costura a mais fez diferença.