Não sei se vocês já leram o clássico 1984, de George Orwell – publicado em 1949 –, ou se já assistiram às séries contemporâneas Black mirror ou The handmaid’s tale. São distopias, elas enunciam a virtualidade sombria de seu tempo. Por que o totalitarismo é um espectro que assombra as democracias modernas?
Quando, extinto o furor revolucionário de 1789, se consolida a democracia moderna, seu modelo é a democracia grega antiga. Parler, em francês, parlare, em italiano (falar, em português), dá origem a parlamento: a nova ágora, o lugar da palavra livre. Na democracia moderna, assim como na grega antiga, a condição da palavra livre é a expropriação da voz de outros. Lá, de mulheres, estrangeiros e escravos; aqui, de mulheres e pobres. No entanto, há uma diferença: a democracia ateniense era direta, enquanto a burguesa é representativa.
A partir da Comuna de Paris, em 1871, ocorre o que o historiador Eric Hobsbawm denomina “ingresso das massas na história”. A constituição de uma sociedade de massas coloca dificuldades intransponíveis para a democracia representativa burguesa. Trotsky já observava que a Iª Guerra Mundial foi determinada, entre outros fatores, pelo anseio das burguesias nacionais européias de que os trabalhadores matassem-se uns aos outros, aliviando, assim, as tensões sociais em seus respectivos países.
As turbulências do processo de difícil acomodação entre democracia representativa e sociedade de massas – o que se denomina “democracia de massas” – desembocaram em duas formas de experiência totalitária: uma, inicialmente revolucionária, sustentava-se em uma democracia dos conselhos (soviets) de trabalhadores, mas foi aparelhada pelo partido comunista – e sabemos como essa história termina; outra, contrarrevolucionária, deflagrou a IIª Guerra Mundial e realizou o Holocausto.
Na segunda metade do século XX, a instável democracia de massas equilibrou-se sobre um instrumento de controle fundamental, na sociedade de massas – a mídia: jornalismo e publicidade. Para compreender a influência do jornalismo já na primeira metade do século XX, assistam ao filme Cidadão Kane (1941), de Orson Welles. Para entender o papel da publicidade, ao longo do século XX, assistam ao documentário The century of the self (Youtube), à série Mad men (Netflix) e ao filme No (2012), de Pablo Larrín.
E o que dizer do tempo que nos concerne, regido por uma mídia muito mais democrática – a internet –, em que a fonte da informação deixa de ser exclusividade dos oligopólios midiáticos e em que a “notícia” propaga-se instantaneamente, ultrapassando as barreiras dos estados nacionais modernos? Que esse tempo foi sacudido por extraordinárias manifestações de massa, sem lideranças definidas e objetivos claros. Explosões de revolta contra a farsa da representação. É essa revolta que o recrudescimento das tendências totalitárias visa conter. Como?
Através de um sistema de vigilância insólito. Não apenas através das câmeras disseminadas pelo poder público e econômico: “sorria, você está sendo filmado!”. Cada um de nós se encarrega de adquirir, a um custo elevado, um dispositivo que capta – porque a ele docilmente entregamos – nossa voz, imagem e ideias. De tempos em tempos, o presidente de uma grande rede social vem a público se desculpar: “foi mal, galera! Vazou”.
Através de uma minuciosa regulamentação da vida cotidiana. Não me refiro apenas às grandes leis de estado, como a modificação da lei antiterrorismo, que tramita no congresso nacional e que visa suprimir o artigo que diferencia movimentos sociais e terrorismo. Me refiro à proliferação de estatutos, regimentos, convenções e outros regramentos que engessam a vida, asfixiam a criatividade e, sobretudo, visam constituir uma subjetividade padrão – trata-se da paixão pelo autômato, sobre a qual já escrevemos. No horizonte dessas práticas, encontra-se não apenas a patologização dos desvios à norma, mas também sua criminalização.
Que cada um de nós ajude a pôr em movimento a tendência de realização das virtualidades totalitárias de nossas sociedades não chega a surpreender. Foi nesse sentido que Marx utilizou o conceito alienação e que Freud cunhou o conceito inconsciente. Talvez seja o momento de retornar a outra obra clássica, o Discurso da servidão voluntária, de Étienne de La Boétie. Por que tecemos a camisa de força que nos enlouquece?
Amadeu Weinamnn: psicanalista e professor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS
Referências