ELYSIUM e o ato infracional: Aproximações entre a ficção e o real – Por Cristiano Rondinelli

 

A obra cinematográfica de ficção científica Elysium (2013), estrelada, entre outros, por Matt Damon, Wagner Moura e Alice Braga, descreve um cenário pós-apocalíptico em que o nosso planeta, afogado em conflitos e esgotado em seus recursos naturais, torna-se morada exclusiva dos pobres. Os ricos se mudam para uma estação espacial na órbita da Terra, chamada: Elysium. Nesse lugar tudo é belo e sua estrutura nos remete a um condomínio de alto padrão, com grandes casas, piscinas e majestosos jardins. Os avanços científicos curam diversas doenças, mantêm os corpos belos e joviais, além de prolongar a vida de seus habitantes. Água e alimento são profusos.

Ao avesso disso, a Terra torna-se um território mergulhado no caos. Os ricos instalaram suas fábricas no planeta e utilizam a mão de obra barata e abundante dos pobres que sobrevivem com muito pouco. A sina dos humanos da Terra se resume em trabalhar duramente nas fábricas e viver como podem com os míseros recursos que lhe são disponíveis. A segurança das fábricas e dos ricos que as visitam regularmente é feita por robôs, que assumem a função de polícia e não hesitam em agir com truculência contra qualquer ameaça de violação ao estado das coisas. A trama se desenrola nesse cenário, em que ricos e pobres, divididos por um abismo quase que insuperável, travam sua coexistência. Esse (des)equilíbrio é ameaçado quando um grupo de pessoas da Terra, não suportando mais a vida que levam, tenta acessar Elysium.

Tive a oportunidade de assistir esse filme tempos atrás, mas, recentemente, fui interpelado por suas cenas em meio a meus deslocamentos entre alguns Centros de Internação localizados nas zonas Oeste e Sul da cidade de São Paulo – onde ofereço atendimento psicoterapêutico aos adolescentes em conflito com a lei que cumprem Medidas Socioeducativas de Privação de Liberdade. Nesses percursos, entre bairros de alto padrão e comunidades, pude observar os dois mundos: Terra e Elysium, representados em um só. De um lado, suntuosas moradas, com ruas arborizadas e automóveis importados nas garagens. Seus habitantes detêm os meios de produção e de geração de renda da cidade.

Do outro, casas que se espremem e se sobrepõem em territórios de altíssima vulnerabilidade social. Empresto, aqui, a descrição de Gonçalves Filho (1998, p. 2), ao se referir a esses lugares como não sendo “bairros que o tempo veio corroer ou as guerras vieram abalar, são bairros que mal puderam nascer para o tempo e para a história”. A urgência de seus moradores pela sobrevivência trouxe formas e vidas a esses lugares a despeito das barreiras geográficas, sociais e políticas que tencionam a existência desses espaços. Os “direitos” de seus moradores os mantêm em estado de subserviência, impedidos de uma vida plena nos espaços da cidade, “a não ser como a presença de subalternos, a serviço dos que despendem dinheiro e ordens” (p. 14).

Em uma espécie de sociedade de castas, não aos moldes da cultura indiana que promove um apartheid com base em tradições culturais e religiosas, nossa segregação ocorre por meio de um acordo tácito, algo não transcrito nas leis do Direito ou em outras normas socioculturais, mas vivida e defendida por nosso modo de vida. Nossa organização enquanto seres humanos promove essa desigualdade social. Ora, tomemos como exemplo dois importantes pontos: as Leis e os meios de produção.

Nossa legislação, inspirada na Declaração Internacional dos Direitos Humanos, posiciona-se ao contrário dessa segregação. No entanto, sua prática é usada para manter o estado das coisas: ricos e pobres em seus devidos lugares, como se o equilíbrio dessas posições fosse fundamental para a existência de nossa sociedade. Exemplos são facilmente vistos em nosso cotidiano: enquanto pobres são encarcerados diariamente por quaisquer motivos, mesmo que não se comprove a autoria da transgressão, ricos continuam em liberdade mesmo quando são deflagrados em atitudes ilícitas. Nesse sentido, basta consultar os noticiários para sermos assolados por uma avalanche de denúncias de corrupção envolvendo políticos e empresários. Mas, lembremos, essas discrepâncias ocorrem à luz do Direto. São inúmeros recursos, habeas corpus e tantas outras saídas que estão previstas legalmente, mas que somente podem ser acessadas com um bom (e caro) advogado. A compreensão da palavra escrita e falada do metié jurídico restringe-se somente àqueles que podem acessar e fazer circular essa linguagem.  Apesar do advocacês reger a vida de todos, pois, invariavelmente, estamos submetidos às leis do Direito, apresenta-se incompreensível, intraduzível e inacessível aos pobres.

O exemplo da conversão de pena (regime fechado para prisão domiciliar) da ex-primeira dama do Rio de Janeiro, Adriana Ancelmo, deixa esse raciocínio mais nítido. Quantas mulheres, mães de crianças pequenas, tal como o caso da ex-primeira dama, encontram-se encarceradas e não conhecem essa Lei? A quantas é oportunizado esse direito?

No que se refere aos meios de produção, eles são orientados pela geração de lucro, o qual não se resume ao atributo em si da coisa produzida, mas no valor da mão de obra do empregado que se dilui no resultado de seu trabalho. Ou seja, nos moldes do capitalismo moderno, o trabalhador passa a ser entendido como um fim em si mesmo (WEBER, 2008). Por exemplo, imaginemos que um atendente de telemarketing ganhe ao final do mês de trabalho um salário mínimo, plano de saúde, vale refeição e transporte. Esse sujeito deve custar ao empregador por volta de R$ 2.000,00/mês. Por intermédio desse trabalhador, de suas mãos, escuta e falas, provavelmente ocorreram negociações de produtos e serviços. Quanto esse atendente gerou de lucro para essa empresa? Provavelmente cifras muito acima daquela que lhe foram pagas. A esse atendente é ofertado apenas “migalhas” de um montante decorrente de seu trabalho. Esse fenômeno é descrito por Marx (1867) como mais-valia, sendo a apropriação do valor/lucro proveniente da força de trabalho do empregado pelos donos dos meios de produção. Assim, esse atendente, tal como outros trabalhadores, vive para sobreviver e gerar lucro. Como ascender a qualquer outro lugar se há certo determinismo para que as coisas permaneçam como e onde estão?

Nesse contexto, fazer parte de Elysium se apresenta como um ideal quase que inatingível, muito embora seja um objeto de desejo de muitos. Apesar dessa inacessibilidade concreta, alguns sujeitos tentam enquadrar-se a Elysium e enfrentam o sistema. Podemos falar aqui dos atos infracionais praticados por adolescentes.

É evidente que não podemos associar a prática do ato infracional exclusivamente à pobreza. A transgressão às regras é do humano e tem a ver com o que Freud (1930) discutiu sobre o Mal-estar na Civilização. De acordo com o escopo teórico psicanalítico, a vida social exige que o sujeito renuncie uma parcela da própria pulsão, sublimando-a em algo socialmente aceito, o que nem sempre (ou quase nunca) está em consonância com o desejo do sujeito. O suprimido (recalcado) retorna em forma de hostilidade e sofrimento psíquico, caracterizando os conflitos que engendram o mal-estar na civilização.

Isso quer dizer, então, que não somente os adolescentes pobres infracionam, mas que eles são, na grande maioria das vezes, os penalizados por seus atos. Um caso ou outro de envolvimento de adolescente de classe média acaba tomando a cena dos noticiários e, geralmente, não recebem Medidas mais severas, como, por exemplo, a de Internação. Sim, também nesse caso a Lei mantém os pobres encarcerados e os ricos a solta porque estes têm recursos que lhes proporcionam uma segurança jurídica, mantendo-os como intocáveis, enquanto o pobre se vê obrigado a aceitar os mandos, desmandos e toda a culpa que lhe é atribuída.

Em minha vivência empírica no trabalho com os adolescentes internados, observo que, embora a primeira justificativa que se dê ao ato infracional seja a busca pelo ganho material, ela é apenas a ponta do iceberg de uma questão maior e complexa. Quando observamos o sentido do ato infracional, percebemos uma relação com a busca pela imagem narcísica retaliada e ferida socialmente. Nesse aspecto, Carreteiro (2003) nos auxilia a pensar nesse movimento como uma reação frente à vivência de invalidação, ou seja, possibilidades de superar os sentimentos de inferioridade oferecidos pela sociedade e, de certa forma, buscar uma posição em que seja valorizado dentro do próprio grupo ou em um contexto maior.

O ato infracional pode estar relacionado a uma busca por pertencimento, valorização, reconhecimento e amor. Entrar para o tráfico, por exemplo, pode significar uma forma de ascensão social que, de outro modo, não seria possível. A posição que se ocupa no tráfico pode trazer prestígio, reconhecimento diante dos amigos e um lugar de poder diante da comunidade. Os ganhos materiais proporcionam o acesso desses adolescentes ao universo das marcas e da ostentação. Em um mundo em que para ser é preciso ter, ocupar esse lugar os coloca entre os admiráveis, mais próximos do que poderia ser Elysium.

O desejo por ser Elysium pode ensejar a possibilidade de uma esperança viva no adolescente, mesmo que ela se apresente pela via do ilícito. Mas esperança de que? Winnicott (2012) nos auxilia na compreensão desse fenômeno ao perceber o adolescente em conflito com a lei para além do ato infracional. O autor discute o conceito de deprivação, que remete à ideia de um desapossamento de algo que, na história da criança, era percebido como bom e lhe foi tirado. A esperança de novamente viver esse momento leva a criança ou o adolescente a buscar inconscientemente no social elementos que sinalizam a possibilidade de um retorno mítico a esse momento de satisfação, cuidado e proteção.

Questões da ordem do afeto podem, desse modo, se materializar no campo da consciência como a violência, roubo e o furto. A segurança e provisão ambiental, as quais poderiam trazer sustentação à criança em seu processo de amadurecimento emocional, perderam-se, levando a criança a um estado de desamparo. Esse conflito pode encontrar na transgressão a possibilidade de se resolver, desde que esse enigma possa ser decifrado – falamos aqui não apenas do papel do psicanalista, mas também de outros possíveis encontros significativos que sustentem a destrutividade do adolescente, como familiares e educadores. Caso contrário, se o adolescente não é ouvido em suas demandas, as retaliações da sociedade farão sua parte – encarceramento, estigmatização, perseguições jurídicas e policialescas – levando o sujeito a perder o elemento da esperança. Desse modo, o sujeito pode se identificar com a prática ilícita como única possibilidade de ser alguém no mundo.

Nosso trabalho e de tantos outros colegas têm buscado trabalhar com o adolescente sobre os significados de suas ações, de modo a problematizar as relações de poder existentes em sua vida, bem como auxiliar na busca por saídas singulares que resvalem em caminhos protetivos. Não se trata de um trabalho de (re)colocar o cabresto naqueles adolescentes desviantes do sistema, mas sim empoderá-los[1] para que possam criticamente perceber suas realidades e colaborar, mesmo que em estrutura micro,  para a desconstrução desse sistema.  Essa reflexão é essencial para o estabelecimento de uma luta por direitos, e se mostra protetiva diante do movimento aliciador do crime organizado. Ora, normalmente, são adultos que “seduzem” crianças e adolescentes para a entrada e permanência na prática ilícita. Os chamados “intrujões” – nome dado a essas pessoas pelos adolescentes atendidos – convocam meninos(as), prometendo-lhes retorno financeiro e visibilidade social. Emprestam-lhes armas e dinheiro. Fazem encomendas com garantia de compra.

Essa sedução impacta a criança e adolescente, não somente pela vulnerabilidade social e situação de risco normalmente vividas, mas também por uma imaturidade psíquica própria da idade, o que lhes impede ou dificulta de fazer uma análise crítica do todo. As benesses se mostram irresistíveis demais frente aos prejuízos possíveis e (in)certos. Normalmente, a ideia dos prejuízos é desconstruída pelo intrujão que os encoraja a seguir o caminho do corre[2] como forma de ascensão social. Essa motivação coaduna com as frustrações e desamparos já vividos pelo adolescente, além dos sentimentos que lhe atravessam relacionados ao impedimento ou limitação de suas possibilidades de ocupar outro lugar na cultura que não aquele de pobreza.

Portanto, nosso trabalho também é evidenciar a trama do aliciamento, e como ela coloca o adolescente na linha de frente de uma verdadeira guerra civil. Posição essa que o vitimiza por ambos os lados: de fácil manejo e substituição pelo crime organizado, e de fácil eliminação/aniquilação dispensados pelos aparatos do Estado.

Retornando à obra cinematográfica, parece-me que a trama de Elysium nos ensina como é impossível existir ali dentro e que a única possibilidade de alcançá-lo é estar fora. No entanto, mesmo estando fora, a única possibilidade de existir é se manter dentro. Terra e Elysium vivem em um tensionamento constante, que os mantêm em direções opostas, mas, ao mesmo tempo, conectados permanentemente. Um lugar é produção do outro, e só podem sobreviver nessa relação. No real, entre condomínios e comunidades, a busca por Elysium tenciona a todos, ricos e pobres, em uma constante e penosa marcha para o exílio (BAUMAN, 2001). Até quando?

 

Cristiano Rondinelli é psicólogo clínico de orientação psicanalítica. Especialista em Psicopatologia e Saúde Pública pela Faculdade de Saúde Pública (FSP-USP). Especializando em Políticas Públicas e Socioeducação pela Universidade de Brasília/Escola Nacional de Socioeducação (Unb/ENS). Possui mestrado em Ciências: Educação e Saúde na  Infância e na Adolescência pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).Trabalha como psicólogo na Fundação CASA, atendendo adolescentes privados de liberdade. E-mail: cris.rondinelli@gmail.com

 

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Z. Comunidade – A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CARRETEIRO, T. C. Sofrimentos Sociais em Debate: Dossiê – Fronteiras entre a Psicanálise e a Psicologia Social. Psicologia USP, 14 (3), 57-72, 2003.

ELYSIUM. Direção: Neill Blomkamp. Produção: Neill Blomkamp, Simon Kinberg, Bill Block, Sue Baden-Powell. Estados Unidos: TriStar Pictures, 2013. 1 DVD (109 min).

FREUD, S. (1930). O mal-estar na civilização. Em: FREUD, S. O Mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à Psicanálise e outros textos. (pp. 13-122). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

GONÇALVES FILHO, J. M. Humilhação social – um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11-67, 1998. Recuperado em 09 abril, 2018: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65641998000200 002&lng=pt&nrm=iso.

MARX, K. (1867). O Capital: Critica da Economia Política. São Paulo: Abril S.A. Cultural, 1985.

WEBER, M. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2008.

WINNICOTT, D. W. Privação e delinquência. São Paulo: WMF/Martins Fontes, 2012.

[1] Empoderar os adolescentes em conflito com a lei é oferecer-lhes a possibilidade de construir e vislumbrar saídas alternativas ao ilícito; encontrar esperanças de um lugar no mundo diferente daquele conferido pela conjuntura resultante da ausência do Estado e a presença do crime organizado.

[2] Nome dado pelos adolescentes atendidos ao percurso pelo ilícito.