Este texto tem como objetivo apresentar reflexões breves e preliminares da Análise Prática Psicossocial – ferramenta de trabalho que tem como fundamento uma prática de escuta junto aos sujeitos em sofrimento, ancorada em uma leitura da Psicanálise e numa íntima conexão com a obra de Marx –, realizadas por meio da leitura da obra Critique des fondements de la psychologie [Crítica dos fundamentos da Psicologia] de Politzer (1994). Para este autor na estrutura teórica da Psicanálise, existe um antagonismo entre a psicologia abstrata e a psicologia concreta, isto é, as construções teóricas da Psicanálise, quando não afeitas à luta de classes, são incompatíveis com ela própria enquanto práxis.
No que diz respeito a sua orientação para uma prática materialista, do ponto de vista marxiano, a Psicanálise é concreta nas suas descobertas no momento em que dá importância ao drama humano e considera que há significado nas palavras do sujeito, logo, sendo interpretativa e não hipotética neste entendimento. Nestes termos, a psicologia concreta, invenção freudiana (nos dizeres de Politzer), concebe um “método” capaz de analisar, de acordo com as suas próprias exigências, a experiência traumática humana – campo por excelência historicamente coisificado pela psicologia em conteúdos abstratos. A psicologia concreta, portanto, é uma psicologia que representa os atos humanos.
Neste caso, mencionamos três textos de Hervé Hubert (2010; 2014; 2017; 2019) que se referem a Politzer, apropriando-se dos avanços teóricos deste último para a Análise Prática Psicossocial. Segundo Hubert (2019), se estamos atravessados, sobretudo, por Marx e Politzer na apropriação dos postulados de Freud e Lacan, a Psicanálise pode ter o caráter de uma prática revolucionária para escutar e intensificar a realidade social noutros graus de determinação – contraditórios aos do capital.
Listamos os referidos três textos de Hubert que se referem a Politzer (1994): “Psychanalyse concrète” [Psicanálise concreta (tradução independente)] (HUBERT, 2019); “Entre aporte y aporia de la critica marxista, retorno a la critica de Georges Politzer hecha al psicoanalisis. Perspectivas actuales” [Entre a contribuição e a aporia da crítica marxista: retorno sobre a crítica de Georges Politzer à Psicanálise. Perspectivas atuais (tradução independente)] (HUBERT, 2010); “Penser le défaut de civilisation capitaliste aujourd’hui avec Georges Politzer” [Pensar a falha da civilização capitalista hoje com Georges Politzer (tradução independente)] (HUBERT, 2014).
Por conseguinte, extraímos, respectivamente, três ideias centrais destes artigos, que são valiosas para a nossa práxis revolucionária: 1) O primeiro elemento de qualquer prática psicanalítica poderá ser a análise concreta das relações sociais, bem como o privilégio de viver em contradição com qualquer realidade viva; 2) Aproveitar o potencial subversivo e revolucionário da Psicanálise para intensificar as relações sociais, implica reconhecer que o primordial da vida humana é a relação social e, portanto, que a transferência é uma relação social; 3) A perspectiva que Marx desenvolve para a análise das relações sociais é essencial para uma prática psicanalítica verdadeiramente emancipatória. Assim, de acordo com Hubert, a Psicanálise é uma prática social e existe como um instrumento revolucionário. Neste sentido, é necessário não dissociar a Psicanálise da conjuntura social e econômica de sua época e sim considerá-la como um tipo de modo de produção da vida material em oposição ao modo de produção do capital.
Os limites de uma Psicanálise clássica
Em “La troisième” [A terceira], segundo Lacan (1975), o proletário é o sintoma social, cada indivíduo é realmente um proletário. Citamos Hubert (2014):
Un psychanalyste qui s’est inspiré de Georges Politzer, le nommé Jacques Lacan, en a tiré les conséquences. Il met Karl Marx comme responsable de l’invention du symptôme, avant Freud, mais aussi inventeur du fétichisme dans son rapport à la mystification, précurseur du stade du miroir, inventeur de la théorie révolutionnaire de la plus-value sur laquelle Lacan bâtira son concept de plus-de-jouir [Um psicanalista que se inspirou em Georges Politzer, chamado Jacques Lacan, tirou as consequências. Ele coloca Karl Marx como responsável pela invenção do sintoma, perante Freud, mas também como o inventor do fetichismo na sua relação com a mistificação, o precursor do estádio do espelho, o inventor da teoria revolucionária do mais-valor sobre a qual Lacan construirá o seu conceito de mais-de-gozar (tradução independente)].
Perguntamo-nos e perguntamos: apesar das muitas posições revolucionárias presentes na obra de Freud e no ensino de Lacan, será que a Psicanálise não terá atingido os seus limites? Não invalidamos a tese de que na prática, no modo como é conduzida pelos seus praticantes, ela ainda é influenciada por ideias burguesas e individualistas, destinadas principalmente a uma elite financeiramente rica.
Proposições da Análise Prática Psicossocial
A despeito disso, Hubert (2010), impulsionado por Marx e Politzer em sua leitura de Freud e Lacan, propõe a Análise Prática Psicossocial, visando-se, assim, um posicionamento subversivo aos estilos de vida hegemônicos e à subjetividade da realidade capitalista. Portanto, a Análise Prática Psicossocial é radicalmente diferente da Psicanálise “clássica”, é eticamente ligada à psicologia concreta, na medida em que enfatiza elementos conceituais também encontrados na própria Psicanálise: tem o social como seu primeiro objeto e considera o sujeito como um ser social. Esta é a contribuição fundamental dada por Marx (1974): o ser humano é um ser social e, ao contrário das práticas individualistas, tem como princípio a compreensão de que é o ser social que produz a consciência [e porque não o inconsciente] e não a consciência que produz o ser social. Mais uma vez citamos Hubert (2017, s/p), “As perspectivas de emancipação social são grandes com a Análise Prática Psicossocial, que está a construir uma nova relação antropológica com o assassinato e que, contra o conceito de insanidade, afirma: ‘Não há doença mental, mas sim, um sofrimento social que se expressa na mente’”[1].
Em conclusão, apresentamos algumas teorizações: o trabalho analítico, sob transferência, objetiva criar as condições para que o sujeito tome consciência dos seus valores de utilização, de desejo e de sociabilidade que são estranhados e “estrangeirizados” nas suas relações, evidentemente, relações sociais capitalistas. Por efeito, é necessária uma transformação da vida social, uma mudança na lógica da relação com o objeto sujeita ao consumo.
Então, quais seriam os valores a serem questionados pelo sujeito num trabalho de Análise Prática Psicossocial? Qual seria o fim de uma análise do ponto de vista da Análise Prática Psicossocial? O trabalho de uma Análise Prática Psicossocial teria como objetivo tornar possível ao sujeito uma espécie de consciência de classe, um sujeito que protesta contra a formação social dominante e capitalista? Para nós, é evidente que estas são questões que merecem a sua importância; é devido que possam ser respondidas sob o benefício da experiência e nas práticas de escuta àqueles que clamam por ajuda, em suas diversas manifestações, seja nas urgências subjetivas ou sociais propriamente ditas.
Imagem: Chiharu Shiota – Linhas da Vida
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HUBERT, H. Entre aporte y aporia de la critica marxista, retorno a la critica de Georges Politzer hecha al psicoanalisis. Perspectivas actuales. hubertherve75.over-blog.com. Disponível em: http://http://hubertherve75.over-blog.com/2020/05/entre-aporte-y-aporia-de-la-critica-marxista-retorno-a-la-critica-de-georges-politzer-hecha-al-psicoanalisis.perspectivas-actuales.html. 24 de setembro, 2010. Acesso em: 12 de novembro de 2021.
HUBERT, H. Ateliers Pratiques de Psychanalyse Sociale. Disponível em: https://www.apps-psychanalyse-sociale.com/single-post/2018/06/29/penser-le-defaut-de-civilisation-capitaliste-aujourdhui-avec-georges-politzer. 7 de abril, 2014. Acesso em: 12 de novembro de 2021.
HUBERT, H. Ce que « Le Capital » apporte à la psychanalyse sociale, 2017. Ateliers Pratiques de Psychanalyse Sociale. Disponível em: https://www.apps-psychanalyse-sociale.com/single-post/2018/11/19/ce-que-le-capital-apporte-%C3%A0-la-psychanalyse-sociale. Acesso em: 28 de abril de 2021.
HUBERT, H. Psychanalyse concrète. hubertherve75.over-blog.com. Disponível em: http://hubertherve75.over-blog.com/2019/11/psychanalyse-concrete.html. 7 de novembro, 2019. Acesso em: 12 de novembro de 2021.
LACAN, J. La Troisième, Conférence au 7e Congrès de l’École freudienne de Paris à Rome, Lettres de l’École freudienne, n°16, Paris, 1975, pp. 177-203.
MARX, K. Para a Crítica da Economia Política. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
POLITZER, G. Critique des fondements de la psychologie. Paris : Presses Universitaires de France : 1994.
[1] Tradução livre e independente.