Sobre o uso político do tabu sexual no contexto de “La bête”
Gabriela Costardi[1]
A cena é de provocar a imaginação de qualquer um: um homem nu deitado no chão, enquanto uma criança toca seus membros. Se fosse um sonho, uma fantasia ou um devaneio, provavelmente, teríamos vergonha de sair contando pros vizinhos. Guardaríamos nossa produção mental com certa cautela. No entanto, a cena não se produz no porão escuro de nossas mentes, mas em público. Tem muita gente vendo, fotografando, filmando e isso vai parar em redes sociais. Então, o incômodo torna-se arma política e, daí, encontramos verdadeiramente a obscenidade.
Trata-se da performance “La bête”, por Wagner Schwartz, em sua releitura de “Bichos” de Lygia Clark, no MAM, na qual uma menina toca os pés do artista. Os ataques ao episódio, amplamente divulgados pela imprensa, me parecem seguir uma lógica fácil de compreender: a crítica moral vem como defesa ao horror que nos causa o desejo sexual. É só evocar a cena de uma criança tocando o corpo nu de um homem adulto e o incêndio se precipita nas almas mais ou menos inseridas nos bons costumes.
Já os argumentos em defesa da performance me fazem pensar mais. O museu se defende dizendo que não havia eroticidade na performance e também que a sala estava sinalizada sobre o conteúdo da mesma, além da mãe da menina estar presente na ocasião. Outros argumentos como o fato de o nu ser presença constante nas manifestações artísticas ou, ainda, que a nudez é natural também pretendem rebater os protestos contra a exibição. Especialistas em sexualidade infantil, por sua vez, advogam que esse tipo de episódio pode ter valor pedagógico para as crianças, mas não deixam de lado a preocupação com a possibilidade do aumento da vulnerabilidade das mesmas a abusos sexuais. A meu ver, a recusa ao choque, ao erótico e o apelo à naturalização da nudez desviam do que está em jogo nesse caso, a saber, o fato de que sexualidade humana está rodeada de tabus.
A arte não pretende chacoalhar nossos códigos sociais através de um discurso de naturalização dos objetos que eles engendram e das relações que regem, ou seja, apresentando o corpo e a sexualidade enquanto dados “naturais”. Nada mais longe do seu propósito. A arte nos permite experimentar a própria noção de que nossos códigos são construídos e, portanto, ainda que sejam necessários, não são estáticos. Nesse sentido, um de seus importantes modos de operação é justamente reapresentar um objeto fora das relações que o sustentam usualmente. Lembremos do urinol que tornou-se Fountain (1917) de Marcel Duchamp; pensemos no corpo do homem nu que convida à manipulação pelo público. O que tem capacidade de causar estranhamento ao espectador no referido episódio é que a criança toque o corpo nu do adulto e a cena do abuso não se apresente, contrariando nossas fantasias. E não se trata de que o corpo tenha assumido um caráter natural, mas que o espaço da arte (do belo, segundo Lacan[2]) nos permita acessar o que está interditado a partir de um lugar novo.
A expressão de indignação por pessoas que se sintam atingidas por manifestações artísticas como essa é legítima e até mesmo esperada, já que a arte assume o risco de chocar porque não anda na linha do politicamente correto. Mas o que é perverso nessa situação é a divulgação não autorizada das imagens dessa criança e o uso político das mesmas. Pois é sabido o quanto guerrinhas culturais são eficazes para fomentar unidades políticas, sendo esse o ganho que os movimentos conservadores têm angariado nos recorrentes episódios em que atacam a arte no Brasil.
[1] Psicanalista com prática clínica em Los Angeles. Membro dos Fóruns do Campo Lacaniano de Los Angeles e Colorado. Doutora em Psicologia pelo IP/USP.
[2] LACAN, Jacques. (1959-60) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Tradução de Antônio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008