Natália Leite e suas casas flutuantes – Por Edson Luiz André de Sousa

Natália Leite e suas casas flutuantes – Por Edson Luiz André de Sousa

Natália Leite e suas casas flutuantes

Edson Luiz André de Sousa *

Morreu no 24 de janeiro Natalia Leite aos 79 anos. Teve sua primeira internação no Hospital Psiquiátrico São Pedro em Porto Alegre ainda muito jovem e desde então sua vida aconteceu dentro do Hospital. Construiu sua história dentro dos muros de um hospital, um fora do mundo. Mas nem tanto ! Quanto pode se encontrar com um projeto utópico inventado inicialmente por Barbara Neubarth, a oficina de criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro sua vida encontrou um abrigo e sua imaginação verteu em formas e cores narrativas inéditas sobre o mundo. Produziu cerca de 14 mil trabalhos que hoje estão no acervo da oficina e que breve estarão no futuro Museu Estadual Oficina de Criatividade.

Natália participou de algumas exposições importantes e a última delas foi no Museu de Arte do Rio (MAR), na exposição Lugares do Delirio com curadoria de Tania Rivera. Esta mostra também teve uma versão em São Paulo no Sesc Pompeia em 2018. Tenho muito presente o relato que Barbara Neubarth me fez da viagem que fez com ela ao Rio de Janeiro, no que talvez tenha sido sua primeira e única viagem de avião para acompanhar de perto a abertura da mostra. Comovente ela ter podido ter a chance de voar por cima dos telhados das casas e ver seu trabalho abrindo pensamentos

Como homenagem a memória de Natalia transcrevo aqui um fragmento do texto que dediquei a ela no livro Imagens do Fora: um arquivo na loucura (Editora Sulina, 2018) que organizei junto com Tania Fonseca , colega querida que tanto fez pela oficina e que nos deixou há tão pouco tempo, , Claudia Caimi e Luis Artur Costa e que nomeei “ A desmedida na medida de Natalia Leite.

 

Casas flutuantes

Quatorze casas lado a lado como um pequeno mundo a espera de seus habitantes. As casas estão vazias em um tempo de espera. A imagem do retorno a casa da origem é paradigmática de toda experiência humana. Mesmo para aqueles que viveram a infância como um abandono, sonham assim mesmo retornar para um lugar de aconchego e conforto. Natalia costura estes cenários coloridos instilando suas histórias em nosso olhar. Nos telhados, linhas como ondas andantes indicam uma espécie de pauta que aguarda uma escrita por vir. Há uma urgência da letra, da palavra, da forma nestas vidas presas a lógica hospitalar. Ela nasceu em Santo Ângelo, território outrora dos guaranis: cenários de destruição, de outras faixas de contenção, que tentaram silenciar as vozes de um povo que tinha outros mapas no espirito, outros deuses no céu, outra gramática no corpo. De tudo isto, ficaram ruinas que ainda contam suas histórias tão esquecidas. Como escreve Ernst Bloch, em seu Principio Esperança: “Do mero interior, algo procura vir à tona. O urgente se exterioriza primeiramente como almejar, ambicionando alguma coisa. Se o almejar é sentido, então passa a ser um ansiar, a única condição sincera de todos os seres humanos”. O trabalho de Natalia tem a força desta urgência. As casas estão próximas no sentido mais radical do que entendemos por solidariedade: algumas como se estivessem de mãos dadas em alguma brincadeira de roda em que se gira em círculos concêntricos, dança de força em torno a um ponto oculto. Alguns telhados se tocam e se sobrepõem, mas o contato é feito no espirito da transparência: nenhuma construção faz sombra a outra, vemos através do primeiro plano as formas do plano de fundo. Nestes vértices surgem pequenas faíscas, impulsos criativos que revelam a força de um testemunho quando estamos dispostos a escutar de perto o que estas vidas enclausuradas tem a nos dizer. Entre as casas, algumas araras aguardam o momento do voo, o momento do canto, o momento da beleza que virá. Seguimos o voo de André Breton : “ A beleza será convulsiva ou não será” ….

  • Membro da APPOA. Autor entre outros de Imaginar o Amanhã com Abrão Slavutzky (Editora Diadorim, 2021).