Esta pergunta foi feita a Freud em 1932, pelo físico Albert Einstein, que representava o Instituto Internacional da Liga das Nações. Queria ouvir do criador da psicanálise a opinião sobre as possibilidades de a humanidade se livrar da ameaça das guerras, pois as tentativas para evitá-las redundavam em fracasso.
Haveria um desejo de destruição e de ódio que permanece?
Na longa resposta, Freud manifesta surpresa ao perceber que a conversa entre os dois não estava circunscrita à física e à ciência da natureza. Estava sendo consultado para delimitar problemas da evitação da guerra, compatíveis com seu conhecimento sobre as relações emocionais entre os humanos. Sem meias palavras, Freud afirma que os conflitos são resolvidos pelo uso da violência. O desejo de agressão, as incontáveis crueldades que encontramos na história e na vida de todos os dias, atestam a existência da destrutividade em permanente embate com pactos civilizatórios de triunfo fugaz. A carta resposta tornou-se referência para pensar cultura e civilização. Foi amplamente divulgada com o título Por que a guerra?
No Brasil, a genealogia da violência materializou-se nas práticas de rapinagem e predação dos povos que os europeus aqui encontraram. Esta prática manteve-se na colonização. O tratamento cruel e as penas corporais impostas aos africanos sequestrados em seus países de origem não conheceu limites: homens, mulheres e crianças foram classificados como coisa, propriedade móvel, usurpados de qualquer condição humana. Os pilares de nossa história construíram-se sobre violações que permanecem impunes e mal contadas.
Se acreditamos na premissa da psicanálise de que tudo o que uma vez se formou não pode perecer, percebemos que o legado que recebemos é funesto.
Adentramos os séculos XX e XXI assolados pela destrutividade. Antes açoites, hoje cassetetes; pistolas paralisantes e gazes danosos são disparados por agentes públicos contra a população pobre, negra, sem terra e sem teto no campo e na cidade.
Ainda sem solução, listas dos mortos e desaparecidos da ditadura civil militar: sabemos o que ocorreu. Amigos viram amigos torturados. Primos viram primos arrastados dentro das prisões. Casais frente a frente nas salas de tortura, filhos sequestrados com seus pais. Trabalhos acadêmicos, pesquisa, congresso reúnem fatos; filmes e fotos, estampam provas. Hoje sabemos muito mais sobre o que sequer imaginávamos. Mas a justiça, ainda em transição, não esgotou sua possibilidade de reparar, julgar e punir. Os pilares da nossa democracia resvalam em terreno movediço.
A construção dos mecanismos de ruptura com a violação de direitos essenciais não se materializou na plenitude. Resíduos do pior permanecem intocáveis. Nossa Constituição enfrenta embates no campo de interpretação. Novas formas de corromper, misturando dinheiro e palavra multiplicam comportamentos incomuns de incertas consequências éticas. No Congresso Nacional, homens e mulheres que nos representam vivenciam a discórdia em abraço mortífero.
O círculo mais alto do poder executivo, está sitiado.
Os laços sociais apequenam-se a cada notícia de captação indevida.
Tomamos como inimigos os que eram irmãos. Como adversários, o vizinho. O ódio e a desmedida incivilidade tornaram-se recorrentes.
Vivemos o desamparo.
O que fazer?
Não sei, não sei, compartilho minha dor e minha dúvida.
Faço necessário registro: diferentemente de outros momentos da nossa história recente, conversamos publicamente sobre comuns inquietações. Não há armas visíveis apontadas para nós. Que os impasses não nos neutralizem: façamos circular propostas por muitas mãos.
Nesta conversa supra partidária para sustentar a democracia, partimos deste campus universitário de resistentes à ditadura civil militar. Lembrando Alexandre Vannuchi Leme e Iara Iavelberg, alunos desta casa, minha homenagem a todos os que foram perseguidos.
Que a vigilância cívica reverbere no Congresso Nacional.
Que chegue aos legisladores e à Corte Suprema para que o tirocínio que os levou à escolha de lugares republicanos os estimule a cumprir com dignidade seu papel civilizatório neste tempo de crise, de dúvida, de embates mortíferos.
*Texto originalmente compartilhado no evento Psicanalistas pela sustentação e apoio incondicional à democracia no Brasil, realizado no Instituto de Psicologia da USP Bloco G Auditório Carolina Bori, USP, no dia 7 de abril de 2016.