“Guerra verde amarelo” – Por Aline Souza Martins e Miriam Debieux Rosa

“Guerra verde amarelo” – Por Aline Souza Martins e Miriam Debieux Rosa

Quando falamos em guerra, certamente uma sirene começa a tocar em cada um de nós com o aviso de “fuga ou luta”. Essa experiência avassaladoramente violenta faz parte da História de todos os países do mundo e, apesar de não vermos sangue e bombas hoje aqui no Brasil, ela continua a ter efeitos.

Para Bobbio, filósofo político, historiador, escritor e senador vitalício italiano

a guerra é um processo judicial em que o mal maior [derrota] é infligido não a quem tem mais direito, mas a quem tem mais força, do que se verifica a situação em que não mais a força está a serviço do direito mas o direito acaba por estar a serviço da força. Em síntese: em determinado processo judicial é instituído com o escopo de fazer vencer quem tem razão. Mas o resultado da guerra é justamente o oposto: é dar razão a quem vence (Bobbio – 2003) (qualquer semelhança é mera coincidência)

Um dos teóricos mais importantes sobre a guerra foi Von Clausewitz (1979). Entre 1832 e 1834 esse militar lança sua grande obra, Da Guerra, na qual defende que “[…] a guerra nada mais é do que um duelo em grande escala” (Clausewitz, 2005, p. 75) e todas elas possuem um cálculo implícito ou explícito sobre política, estratégia, tática e materiais disponíveis. De acordo com o estrategista, a política consiste nas decisões de como usar a guerra para viabilizar o alcance dos objetivos. Já a tática comporta as considerações relativas ao emprego do meio para os propósitos do enfrentamento: uso sucessivo ou simultâneo da força, o modo de combate (cerrado ou à distância) e o timing da conversão de um ato destrutivo em um ato decisivo. A estratégia seria a série de considerações e decisões relativas ao emprego dos enfrentamentos para a produção dos propósitos específicos de uma determinada guerra. Por fim, os materiais representam todo bem físico disponível, desde suprimentos até armas. Assim, para esse teórico, a guerra sempre tem um objetivo a ser perseguido chamado de política. Para este autor (Clausewitz, 1979, p. 91):

[…] a guerra não é meramente um ato de política, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas realizada com outros meios. O que continua sendo peculiar na guerra é simplesmente a natureza peculiar dos seus meios. A guerra de uma maneira geral, e o comandante em qualquer ocasião específica, tem o direito de exigir que o rumo e os desígnios da política não sejam incompatíveis com esses meios. Esta não é, evidentemente, uma pequena exigência, mas por mais que possa afetar os propósitos políticos num determinado caso, nunca fará mais do que modificá-los. O propósito político é a meta, a guerra é o meio de atingi-lo, e o meio nunca deve ser considerado isoladamente do seu propósito.

Vocês devem estar se perguntando por que falar de estratégia de guerra hoje? Sempre me pergunto se não seria um excesso excêntrico retomar a teoria que colocou milhares de pessoas em combate gerando cerca de 10 milhões de mortos na I Guerra Mundial e 66 milhões na II Guerra mundial? A questão é que quando falamos dessas guerras é possível visualizar o número de vencedores e vencidos, o objeto é mais visível, já que produz cheiro, tem cor e faz barulho. Mas a guerra, por mais paradoxal que isto pareça, não se representa apenas através de combates armados totais. A guerra e a política estão interligadas de maneira tão intrínseca que é ingênuo, além de impossível, tentar separá-las.

Aqui chegamos ao ponto em que eu queria. Michel Foucault inverte a tese de Clausewitz dizendo que “a política é a guerra continuada por outros meios” (Foucault, 2005, p. 24). Essa inversão parece não mudar nada, mas muda tudo. Significa que a política tal como a temos hoje, as leis, a estrutura de governo, o congresso, a maneira de se eleger, todo o sistema jurídico são produtos de guerras enfrentada no passado, ou seja, que a construção política de uma país, seus dirigentes e suas leis foram construídas no passado como consequência de guerras pelas quais seus vencedores impuseram uma estrutura que os beneficiasse em detrimento dos perdedores, e até hoje é esta estrutura que é sustentada através da política e da sociedade tal qual a conhecemos.

A este processo, nada ingênuo, Michel Foucault, chama de Racismo de Estado, e com ele entendemos o que significa a política como continuação da guerra, surgindo das mãos dos vencedores em forma de leis que irão reger os países. Sua arma de propagação se faz pelas judiciário e pelo discurso, que atinge todos os que estão submersos na cultura através da linguagem.

Como disse Freud, na sua carta a Einstein (1932) no texto que fico conhecido como “Por que a guerra?”

[…] a lei é a força de uma comunidade. Ainda é violência pronta a se voltar contra qualquer indivíduo que lhes oponha. Funciona pelos mesmos métodos e persegue os mesmos objetivos. A única diferença real reside no fato de que aquilo que prevalece não é mais a violência de um indivíduo, mas a violência da comunidade.

Da primeira vez usei essa chave teórica para entender porque os jovens traficantes chamavam o que eles vivem nos morros das periferias do Brasil de “Guerra”, compreendendo, depois de dois anos, que não reconhecer que um índice de 20.4 óbitos por dia em 10 mil habitantes (índice maior do em que países que estiveram ou estão em guerra como Palestina, Golfo, Iraque, Chechênia, Angola e Moçambique), sendo que a maior parte de mortos são jovens negros de periferia, já é parte da guerra.

Agora proponho usarmos essa ajuda teórica para ler essa bagunça política que estamos vivendo.

A estratégia de convencimento da população para aderir a um projeto de governo (e não a outro) é construída de acordo com táticas pré-definidas, que estão (ou não estão) previstas no jogo eleitoral. Elas serão possíveis dependendo dos meios disponíveis para cada lado através da eleição, pensada como um momento de guerra instituída com meios não bélicos, mas ainda assim violentos.

Nesta guerra, pelo que vimos até agora, cabem: táticas de duelo argumentativo televisionado; rapto de informações sobre o passado pessoal dos líderes de cada lado e de suas famílias; explosão de escândalos para deslegitimar o oponente; construção de projetos para o futuro, para beneficiar determinados grupos que podem financiar a guerra com seu voto (ou mais que isso); convocar os seguidores para militar (lutar) ao seu lado e irem para as trincheiras abatendo ou convencendo os oponentes com discussões em bares, passeatas ou textos no facebook; estratégias jurídicas para aniquilar o oponente, difamação pública, apelo internacional… Tudo isso para um objetivo final, uma grande meta, ou se manter ou retomar o poder, dependendo de que lado você está na luta.

Quando passamos da era das guerras totais e bélicas para a das guerras políticas não é mais permitido exterminar fisicamente o oponente e seus seguidores (embora em alguns lugares ainda vejamos isto). A democracia obriga-os a “conviverem”, apesar de estarem se degladiando com palavras. Entretanto, é de conhecimento geral que quem ganha a guerra faz novas leis que beneficiem seu grupo, impõe uma cultura e uma língua como forma de dominação do outro e leva seus oponentes a forca em praça pública (o que já vemos acontecer com nosso novo governo, de maneira simbólica).

O problema é muito maior que uma caça às bruxas mediana. É uma questão de estrutura governamental. Temos uma estrutura política construída como um arsenal de uma classe, que não aceitará perder seu castelo.

Para Foucault vivemos em uma batalha constante de todos contra todos, mas não como conflitos binários, e sim como lutas pontuais e disseminadas, marcadas por resistências locais e heterogêneas que a dominação e a lógica binária da guerra não conseguem apreender. Desse modo, não se trata de uma grande guerra, mas de múltiplas e constantes guerras sendo travadas tanto no âmbito político como nos inúmeros âmbitos pessoais e que formam os modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura.

Nesse sentido, a guerra que interessa ser estudada é o processo histórico da “guerra das raças”, que por sua vez irá desembocar no que nos interessa verdadeiramente aqui, o racismo do Estado. Trazendo para o contexto brasileiro, acrescentamos as particularidades de nossa história de colonização, a questão da origem das relações de escravidão e a desigualdade social e de gênero que perduram amparadas por estratégias de desqualificação subjetiva das populações à margem do consumo.

Foucault desenvolve duas hipóteses principais durante esse curso “Em defesa da sociedade”: uma é a de que “[…] o mecanismo do poder é, fundamental e essencialmente, a repressão” (Foucault, 2005, p. 22); a outra, como já foi dito anteriormente, é que o poder e a política são a guerra continuada por outros meios. Essa inversão entende que a política é a sanção e a continuação do desequilíbrio de forças da guerra.

Dessa hipótese derivam-se três significados preciosos: o primeiro diz que as relações de poder têm como base uma relação de forças estabelecida em dado momento histórico de guerra, e que o poder político tem como função “[…] reinserir perpetuamente essa relação de força, mediante uma espécie de guerra silenciosa, e de reinseri-la nas instituições, nas desigualdades econômicas, na linguagem, até nos corpos de uns e de outros” (Foucault, 2005, p. 23). O segundo significado é que, mesmo quando se contam histórias de paz, é da guerra, em última instância, que se fala (Foucault, 2005,p. 23):

[…] no interior dessa ‘paz civil’, as lutas políticas, os enfrentamentos a propósito do poder, com o poder, pelo poder, as modificações das relações de força […], tudo isso, num sistema político, deveria ser interpretado apenas como as continuações da guerra.

O terceiro e último significado afirma que essa guerra continuada, ou seja, essa prova de forças, só teria fim com o fim da política em uma batalha derradeira.

Sendo assim, é possível identificar dois grandes sistemas de análise do poder, os quais Foucault coloca como opostos: o sistema contrato-opressão e o sistema guerra-repressão. O primeiro seria um sistema de soberania que articula o poder em torno do direito original. O segundo seria o emprego da repressão no sistema de “pseudopaz” dado por uma guerra contínua, ou seja, uma relação de forças perpétua[1].

Nem a lei, nem o direito, nem a estrutura do Estado tal como a conhecemos nascem da natureza; eles nascem, sim, das batalhas e das armas dos vencedores. Portanto, para o filósofo (Foucault, 2005, p.59),

[…] a lei não é pacificação, pois, sob a lei, a guerra continua a fazer estragos no interior de todos os mecanismo de poder, mesmo os mais regulares. A guerra é que é o motor das instituições e da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra. Em outras palavras, cumpre decifrar a guerra sob a paz: a guerra é cifra mesma da paz. Portanto, estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e permanecente […]. Uma estrutura binária perpassa a sociedade.

Assim, aquele que faz valer os “seus” direitos está tratando dos direitos conquistados nessa guerra, direitos marcados por uma relação de propriedade, de conquistas e de vitórias. Direitos de uma raça, conquistados sobre a outra. Nesse contexto, “[…] a lei aparece com uma realidade de dupla face: triunfo de uns, submissão de outros” (Foucault, 2005, p. 81).

Assim podemos nos perguntar, no lugar de Porque a guerra, Por que a paz?

Bobbio (2003) define duas formas de paz, uma negativa, como ausência de violência pessoal, e a outra positiva, como ausência de violência estrutural. Segundo ele,

[…] esta última é a violência que as instituições de domínio exercem sobre os dominados, e no seu conceito entram a injustiça social, a desigualdade entre ricos e pobres, entre poderosos e não poderosos, a exploração capitalista, o imperialismo etc. (Bobbio, 2003, p. 146).

Sendo assim, considerar a paz como ausência de violência não é o suficiente, é preciso preservar a ética no lugar de proteger o conceito. Bobbio contribui ainda dizendo que (Bobbio, 2003, p. 147):

[…] ao ocupar-se de justiça social eles continuam a ocupar-se do problema da paz, desde que por “paz” se entenda não mais apenas aquela como foi entendida durante séculos, mas a justiça social, procurando desse modo cobrir uma real reviravolta nas suas pesquisas com uma acrobacia terminológica.

Finalmente, podemos entender que a paz foi quebrada, a justiça foi obrigada a mostrar a que veio, cabe a nós usarmos essa guerra que mostra suas cores de maneira mais viva nesse momento, para formularmos outras hipóteses e criarmos, quem sabe, um Brasil um pouco mais rubro.

Referências:

CLAUSEWITZ, C. V. Da guerra. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. São Paulo: Loyola, 1996

MARTINS, Aline Souza. Por que a guerra? Política e subjetividade de jovens envolvidos com o tráfico de drogas: um ensaio sem resposta. 2014. 211 f. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.

[1] Adiantando a leitura que o filosofo italiano Giorgio Agamben irá fazer dessa tese de Foucault (e que exploraremos melhor no capítulo Guerreiros), consideramos que esses dois sistemas, também chamados de poder soberano e poder disciplinar, não são excludentes, um velho e um atual, mas podem ser concomitantes em cada sociedade.

Aline Souza Martins e Miriam Debieux Rosa

Laboratório Psicanálise e Sociedade (PSIPOL/USP) & Núcleo de Psicanálise e Política (PUC/SP)