Em nosso trabalho, no Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público de São Paulo (PLID/MPSP), pensamos que o desaparecimento se configura quando uma pessoa se afasta dos familiares ou pessoas importantes de sua vida, sem anunciar a intenção de que esse afastamento seja prolongado ou diferente dos afazeres habituais de nosso cotidiano, e não retorna.
Essa situação, do ponto de vista jurídico, seja qual for a causa dela, implica já a existência de uma vítima conhecida: os familiares dos desaparecidos.
Para os familiares, não há o conhecimento sobre se o afastamento foi voluntário ou não, e do que aconteceu com a pessoa desaparecida (ainda que voluntariamente afastada). Onde ele ou ela está? Estará bem cuidado e assistido? Estará bem ou adoecido? Estará morto?
O familiar ou pessoa vinculada àquele que desapareceu não sabe o que aconteceu. O familiar ou pessoa vinculada ao desaparecido tem o “não conhecimento” como conteúdo principal de sua condição. Ele não sabe se a pessoa se afastou voluntariamente; se sofreu um acidente ou um mal súbito; ou se foi submetido a algum tipo de ação criminosa. Ele não sabe se o seu ente querido morreu ou se está vivo. A cada momento, lida com a possibilidade de ter ocorrido sua morte, ao mesmo tempo em que permanece em alerta, para a possibilidade de seu ente querido estar vivo e buscar sua ajuda. O familiar ou pessoa vinculada lida com todos os aspectos práticos de uma situação de luto – a ausência, a ruptura no cotidiano, as dificuldades práticas ligadas a tarefas e encargos econômicos e familiares. Todavia, lida ao mesmo tempo com um constante sentido de emergência, que não se interrompe, estando sempre presente a possibilidade de encontro e retorno e a necessidade de providências a serem tomadas.
O familiar ou pessoa vinculada vive a cada momento o seguinte conflito: retomar a sua vida ou concentrar-se na busca? Demandas emergem, fortíssimas e imediatas, de ambos os lados desse conflito. O cotidiano pelo qual ele é responsável e as outras pessoas com quem convive trazem necessidades aumentadas e complicadas pela ausência daquele que desapareceu. Ao mesmo tempo, as tarefas de busca exigem providências, decisões e tomada de atitude. Quanto mais o tempo passa, mais essa situação se complica. Tudo transcorre da mesma forma que em uma situação de perda por luto: a pessoa que desapareceu não está mais presente na rotina, não cumpre sua parte na organização familiar, não contribui para as necessidades econômicas da família, não está acessível para o vínculo, o encontro, o diálogo e o conforto físico. Mas, não se sabe se a pessoa morreu ou não.
Por não se ter certeza do caráter definitivo da perda (embora ela seja cotidianamente vivida, em todas as suas implicações) e por se permanecer disponível para o retorno, não há um fechamento de sentido, a vivência não se completa e o stress associado ao estado de alerta não se desfaz.
Quando trabalhamos com familiares de desaparecidos, é constante a comunicação de que o desaparecimento é pior do que a morte. Os familiares nos explicam: quando uma pessoa morre, quem sofre a perda sabe o que aconteceu, sabe onde o falecido está; não há retorno, mas é um fato. Quem sofre a perda simplesmente precisa lidar com isso, e a própria brutalidade do fato em si traz a possibilidade de acesso a conteúdos psíquicos que o ajudam na tarefa de elaboração.
Já quando a pessoa é desaparecida, não se sabe.
O familiar vive uma perda de fato, mas cercada de incerteza. Os familiares e pessoas afetivamente vinculadas sentem-se assim constantemente angustiados, tanto com a possibilidade de morte, como com a possibilidade de seu ente querido estar em uma situação difícil, passando necessidade, sofrendo, precisando de ajuda. Tal incerteza resulta em um estado contínuo de stress, associado ao alerta, sem repouso e sem a possibilidade de elaboração esperada em um luto por morte.
Psicologicamente, diante de uma situação de perda, quem a vive não se depara apenas com contingências externas e tarefas concretas das quais deve dar conta. A elaboração do luto consiste sobretudo em um processo interno, denominado justamente de trabalho (trabalho de luto), pelo investimento que requer para sua elaboração. Esse processo interno envolve lidar com os sentimentos despertados pela perda, redirecionar a energia psíquica habitualmente investida na pessoa falecida e encontrar novos focos e sentidos onde investir.
Este trabalho de luto, necessário à elaboração da perda, está impossibilitado em uma situação de desaparecimento, pelo motivo bastante evidente de que não se trata de um luto como tal, como perda definitiva. O familiar ou pessoa próxima do desaparecido vive a cotidianidade da perda, sem seu caráter irreversível. Ao contrário da situação de luto por morte, grande parte da energia psíquica está investida na busca da pessoa que desapareceu e, portanto, na esperança de que a perda chegue a um fim, pelo reencontro do desaparecido. Embora tal situação implique em esperança, implica também em alerta, stress e sobrecarga. O familiar ou pessoa vinculada ao desaparecido vive simultaneamente o stress da perda e o stress da busca, num ciclo sem fim. Vive também a impossibilidade de encerrar um ciclo. Ainda que a morte de um ente querido seja dolorosa, temos a possibilidade de elaborar essa perda e reorganizar a vida, externa e internamente. No desaparecimento, os familiares entram num doloroso parêntese, do qual não se consegue sair, e a reorganização, quando possível, sofre um caráter de provisoriedade que dificulta uma elaboração mais profunda.
Podemos assim refletir que, desgastados pelo duplo stress da perda e da busca, e impossibilitados de uma elaboração que reorganize a energia psíquica e permita novos investimentos afetivos, os familiares ou pessoas especialmente vinculadas a um desaparecido ficam fragilizados e suscetíveis a variadas intercorrências emocionais, físicas e sociais, necessitando, como uma das principais demandas, de um espaço de escuta qualificada para sua angústia.
- Melânia Bier B. Marinelli (melaniamarinelli@mpsp.mp.br) é psicóloga no Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos do Ministério Público do Estado de São Paulo
- Eliana F. Vendramini Carneiro (elianacarneiro@mpsp.mp.br) é Promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo