Enterrar nossos mortos e cuidar de sua memória é um dos atos civilizatórios mais fundamentais da humanidade. O ato de enterrar os corpos é quase tão antigo quanto o próprio ser humano. Nestes rituais, a linguagem tem a função de cuidar daquilo que escapa à efemeridade da vida. O ritual fúnebre talvez seja a experiência mais crucial da função simbólica. Cada religião constrói seu mundo de símbolos e os membros desta comunidade se reconhecem neste respeito compartilhado.
Fiquei comovido ao ver o trabalho da artista Julia Tumminelli.
Com este gesto simbólico ela tenta restaurar a violência da placa quebrada com o nome de Marielle no Rio de Janeiro, uma cicatriz em nossas almas e em nossa história. Era uma homenagem singela, efêmera como é a vida, uma espécie de túmulo vivo no coração da cidade. Sim, eu sei, não era uma placa oficial aprovada pela câmara dos vereadores, mas era um gesto de respeito pela memória dela e de seu brutal assassinato. A costura traz de volta o MAR para o nome partido, restabelece um horizonte para a vida. Lembrei-me de outro mar, o de Mario Peixoto, diretor do filme “Limite”, um dos primeiros filmes da cinematografia brasileira, que em um dos seus poemas sobre o mar traz uma imagem do que é violar uma memória…
Há um poema surdo
rumorejante das profundas entranhas das raízes
que se alojam como polvos
nos ataúdes de velhos corpos
carcomidos
violados no segredo da terra.
Este poema é também uma costura. Sempre que uma palavra vem ocupar o lugar do ato violento, a humanidade se recupera, em parte, da barbárie. O desafio civilizatório não é uma conquista definitiva. Estamos vivendo em nosso país uma experiência de desprezo aos direitos humanos mais fundamentais. Como se agora fosse autorizado e por vezes até engraçado fazer uma apologia da violência. São muitas placas quebradas, pois é a linguagem que está se esfarelando diante de muitos olhos que insistem em não ver o que estão vendo. Arnaldo Antunes, com seu grito á la Munch no poema “ Isto não é um poema”, tenta acender a luz para estes olhos que não querem ver. Mas a bordadeira é paciente, ela vai lá recolher os restos da destruição e os repara com carinho e destreza, ponto por ponto, juntando novamente a palavra “defensora” partida a “direitos humanos”, como podemos ver na imagem. Restabelece assim a função da palavra e permite que a dignidade de memória seja restabelecida, que o luto seja respeitado. Esta imagem nos dá a esperança de que sempre haverão aqueles que velarão pelos mortos e cuidarão de sua memória. O nome recupera sua dignidade simbólica mas agora para sempre com uma cicatriz. A história voltará em breve para ler e reler estas cicatrizes que nosso tempo está produzindo.
Edson Luiz André de Sousa é psicanalista, professor Titular do Departamento de Psicanalise e Psicopatologia/UFRGS. Professor do PPG de Psicanálise : Clínica e Cultura/ UFRGS.