Por que emudecemos e por quem gritamos? – 4 anos do assassinato de Marielle Franco – Por Denise Mamede

Por que emudecemos e por quem gritamos? – 4 anos do assassinato de Marielle Franco – Por Denise Mamede

Àquela altura, tudo que tínhamos era um choro desprendido, olhos vidrados e uma imensa angústia que se instalou e não deu lugar para outra coisa, senão o medo e a revolta.

Aquele dia, muitos de nós saberíamos de algo que não poderia ter se revelado de pior maneira.

Aquele dia acordamos e era tarde demais, ainda que fosse seis e meia da manhã.

O dia todo em contato com companheires tentando assimilar o brutal assassinato, conhecendo a história de uma mulher, buscando pistas imaginárias na ânsia de fechar uma imagem e dar nome para aquilo que estava se passando.

A verdade é que, ainda hoje, não conseguimos. Tudo o que hoje sabemos ja sabíamos sem saber: a ruptura do estado democrático de direito no Brasil era uma realidade, estava instalada a barbárie, a desumanização em sua materialidade acachapante.

Não era possível trabalhar, nem ao menos falar ao telefone sem chorar, a Marcha em São Paulo estava marcada desde o início da manhã: às 17h no MASP, para este que seria o maior cortejo fúnebre no qual estive de corpo presente.

Aparentemente, nem todes estavam tão atentes ao que se passava. Hoje mesmo uma amiga me enviou esse relato: “Nossa foi um dia horrível. Lembro que fui na USP a tarde entregar algum documento e tudo estava mórbido. Ia ter manifestação à noite pela morte dela. E eu tinha que dar aula no direito, na Anhanguera. Tava muito mal, em choque e com medo e tinha que dar aula. Fui pra lá com a esperança de uma sala de aula vazia, imaginando que os alunos iam ter se mobilizado pra ir na manifestação. Nada mais, nada menos que os 180 alunos em sala, ninguém ligando pra absolutamente nada. Comecei a chorar na frente da sala.”

Chorei ao ler, porque nada é mais triste do que estar rodeada por tamanha apatia, esse olho incapaz de ver, estes ouvidos paralisados ao ouvir. Não puderam, apesar de tudo, deixar de ver a professora em sua humanidade.

Voltando ao cortejo:

Emudecidas, eu e minhas companheiras, apenas com os olhos inchados e o olhar sem brilho nem esperança, caminhamos ao lado de centenas de pessoas com o mesmo semblante, em silêncio, em homenagem, em revolta, em fogo vivo.

Jamais me esquecerei desse dia, não por outra coisa senão pela imensa fenda que se abriu ali. A realidade, nesse caso, esteve um passo à frente do que poderíamos suportar, “o fio foi rompido”, eu ouvi alguém dizer. Também ouvi “acabou”, “onde vamos parar?”, “isso é um recado”. Recado pra quem? Onde ambicionamos parar? O que foi que acabou?

O cheiro de crisântemos tomou conta das cidades e dos espaços e das frestas e mesmo a ruptura e sua marca indelével estavam estampadas de morte, uma tentativa mais da morte da memória, da história, da luta, do corpo preto, da mulher que ousa dizer.
Mas dessa vez, esta mulher assassinada, não levaria contigo o seu nome, também o deixaria em nossas mentes e bocas como um doce de fundo amargo. “A morte passando de boca em boca com a leve saliva”.

De tudo brotou naquele chão: flores, cartazes, lágrimas, um instituto, formas de organizar a luta, novas aliadas e muitas perguntas.
O que ali se desvelou foi o início de uma nova maneira de encarar as coisas, de lidar com a dor e a revolta. Nasceu ali uma comunhão de inúmeras pessoas aflitas que não irão parar por decreto de ninguém, seguiremos gritando e, hoje, perguntando aos quatro cantos: Quem mandou o vizinho do presidente matar Marielle Franco?

Se há algo diferente nesses 4 anos, isso parece ter relação com a maneira como articulamos e fazemos nascer algo dessa ruptura, em coletivo, em conjunto, em comunhão, como dizia Belchior “O que transforma o velho no novo, bendito fruto do povo será”.

Anos e anos de resistência não morrerão assim.

Por mais mulheres negras na política, por respeito, pelo fim da violência de gênero, por respostas e por justiça, gritamos.

Era 15 de março de 2018, e acordamos com a notícia da execução da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, e de seu motorista, Anderson Gomes, assassinados em 14 de março de 2018.

Ainda assim, Marielle Vive!