Para refletir sobre o horror que estamos assistindo acontecer no Brasil, me ocorreu recorrer a obra prima de Primo Levi, É isto um homem? Publicado em 1947, o livro é um relato da vivência do autor no complexo de Auschwitz. Uma tentativa de dar voz aos prisioneiros ausentes, aos que foram silenciados pela inexistência física no pós-guerra, aos que foram as verdadeiras testemunhas do Holocausto, a catástrofe histórica que inundou o século XX de sangue, dor e vergonha. Levi desvela o projeto essencial dos campos de extermínio: a paralisia e morte psíquica do sujeito antes de atirá-lo à câmara de gás. Sobre esse ponto, o primeiro capítulo traz uma perturbadora reflexão:
“É isto um homem? Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite, encontram comida quente e rostos amigos, pensem bem se isto é um homem que trabalha no meio do barro, que não conhece paz, que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não. Pensem bem se isto é uma mulher, sem cabelos e sem nome, sem mais força para lembrar, vazios os olhos, frio o ventre, como um sapo no inverno. Pensem que isto aconteceu: eu lhes mando estas palavras. Gravem-na em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; repitam-nas a seus filhos. Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos, os seus filhos virem o rosto para não vê-los” (1)
Devo embrenhar-me por esse caminho para apresentar minha questão – É isto um cidadão? É isto uma cidadã? Ou melhor, devo fazer minhas as palavras de Levi para expressar a perplexidade e a dor que sinto? Mas, a cada vez que penso nas cenas dantescas que povoam a recente história brasileira, digo a mim mesma que parafrasear Levi é um meio legítimo de testemunhar, com a escrita, os traumas cotidianos aos quais estamos todos expostos.
É isto um cidadão? É isto uma cidadã? Nós que vivemos seguros em nossas casas aconchegantes, pensem bem se isto é um cidadão que trabalha sem receber, que é morto a pauladas por um bando de cidadãos tomados pelo ódio. Pensem bem se isto é uma comunidade de cidadãos que lutam por preservar seu habitat sistematicamente incendiado, que se banha no rio envenenado, que tem negado o direito de receber água potável. Pensem bem se isto é um cidadão, ou uma cidadã, que carrega o corpo esquálido do filho morto pela pobreza e miséria violentas em que vivem. Pensem bem se isto é uma cidadã que é estuprada e tem ameaçada a prerrogativa do aborto. Pensem bem se isto são cidadãos e cidadãs que lutam pelo direito de escolha sexual, que são assassinados por um sim ou por um não.
Pensem que tudo isto está acontecendo diante dos nossos olhos. Gravem essas cenas em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar; transmitam-nas aos seus filhos. Porque a crueldade é sem fim e nossas pulsões são o que são, não deixem que a indiferença tome conta de seus lares; digam não a barbárie, antes que seja tarde.
(1) Primo Levi, É isto um Homem? Editora Rocco. 1988.
Betty B. Fuks
Psicanalista. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ).
Texto publicado originalmente em
https://blogs.oglobo.globo.com/opiniao/post/uma-pergunta-que-nao-se-cala.html