Lacan e os escritos do mundo – Por Edson Luiz André de Sousa

Lacan e os escritos do mundo – Por Edson Luiz André de Sousa

Lacan e os escritos do mundo

Edson Luiz André de Sousa[1]

 

“Meus Escritos, eu não os escrevi para que fossem compreendidos, eu o escrevi para que fossem lidos, não é absolutamente a mesma coisa”

Jacques Lacan

 

Jacques Lacan tinha em uma das paredes de sua casa  uma pintura de Gustave Courbet, “A origem do mundo”. Esta pequena pintura  é hoje uma das maiores atrações do Museu d’Orsay em  Paris e mostra em primeiro plano o sexo feminino. Foi pintada em 1866 e permaneceu por  mais de um século  restrita a um pequeno  círculo de espectadores. A obra foi adquirida em 1955 e esta imagem o acompanhou até o final de sua vida, quando  foi entregue ao Estado francês . O enigma desta pintura, ao nos interpelar  sobre os temas da origem  e do sexual,  talvez seja uma das melhores imagens para evocar quem foi  Lacan: um construtor de  labirintos. Não há como nos perguntar sobre origem e sexo sem nos perder no labirinto.

A psicanálise, desde sua invenção por Sigmund Freud,  sempre foi uma das experiências humanas radicais pois abre uma chance para os sujeitos saberem um pouco mais sobre o desconhecido que os constituem.  Mas nem sempre queremos ter contato com estes territórios de sombras e  o enterramos  bem no  fundo,  neste grande abismo chamado   esquecimento. Nossos sintomas, nossas angústias e nossos sonhos,  contudo, não nos deixam esquecer e assim precisamos encontrar algum destino para estas perturbações. Freud propôs  um método relativamente simples,  amparado em um campo conceitual refinado e complexo: falar  para alguém de seu sofrimento   com a maior liberdade  possível.

Jacques Lacan, atento a este princípio fundante da psicanálise, construiu toda sua obra na direção de um retorno a Freud, ao perceber que um anestesiamento destes princípios estava tomando conta do campo psicanalítico.  Criticou com veemência todas as  teorias e práticas psicoterapêuticas que  defendiam um processo de cura na direção de uma melhor adaptação do individuo à sociedade. Criticava as práticas  terapêuticas que propunham  um certo conforto , cobrando o  preço  de um conformismo. A  psicanálise  perdia assim sua virulência revolucionária de abrir para cada sujeito vias inéditas de estar no mundo, de agir sobre o mundo , de sonhar outros mundos. Abandonava seu potencial  utópico de permitir efetivamente uma mudança de posição.  Que outra função poderia ter a psicanálise senão abrir caminho para uma emancipação do sujeito?

Em 1953, Lacan apresenta uma longa reflexão em um congresso em Roma sobre quais seriam os pilares de seu ensino e de sua prática, inaugurando  um verdadeiro abalo sísmico no meio psicanalítico. Esta comunicação foi publicada posteriormente em seu primeiro livro  reunindo seus artigos, o famoso  “Escritos”  em 1966 e intitulada “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. Um texto manifesto e que continua de uma atualidade impressionante. Lemos logo no inicio do texto seu aviso de incêndio: “Parece que, a partir de Freud, o campo central do nosso domínio  caiu em ruínas”. Lacan se lança na reconstrução destas ruínas trazendo para dialogar com a psicanálise inúmeras disciplinas: a filosofia, a linguística, a literatura, a antropologia, a sociologia, as artes, a matemática, a topologia.  Reacende desta forma, aquela que foi a inspiração freudiana, a psicanálise como uma disciplina que tem algo a dizer, mas, sobretudo a ouvir. Neste mesmo texto encontramos outro apontamento   evocando um dos alertas de Freud, quando este sublinha  que não é possível escutar o sofrimento humano desconectado com o que acontece no mundo. Escreve Lacan: “Deve renunciar a prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”.

Lacan foi um dos pensadores mais influentes do século XX,  cultuado e criticado com a mesma paixão. Como psiquiatra em inicio de carreira se interessou pela psicose paranoica,  buscando  descrever a gramática do delírios e as lógicas possíveis para a reconstrução destes mundos psíquicos implodidos. Sua tese de doutorado de 1932, “Da psicose paranoica e suas relações com a personalidade” interessou Salvador Dali que escreveu uma resenha crítica sobre a tese. Dali era um entusiasta do método paranoico-critico que, em ultima instância, recuperava a potência do que Freud propusera como associação livre. Dali  deu forma visual em sua arte a estes princípios.

De 1953 até 1979  Lacan  ministrou seminários semanais  abertos ao público. Mesmo que houvesse um fio condutor para cada ano, cada aula era uma surpresa pela multiplicidade de referências que trazia, mas, sobretudo pelo estilo performático com que conduzia sua fala. Assim pode compartilhar em público a elaboração do seu pensamento em um estilo rebuscado mas guardando sempre um certo ar coloquial. Hoje grande parte destes seminários está publicada e permitem ao leitor não só um mergulho no método psicanalítico, mas também percorrer os grandes temas  que estavam em pauta na segunda metade do século XX: do embate entre a fenomenologia e o estruturalismo aos  novos caminhos abertos pela linguística de Ferdinand de  Saussure e Roman Jakobson ,  dos movimentos de maio de 68 a maquinaria do capitalismo,  que inclusive vai inspirar Lacan a propor um discurso do capitalista. A potência de pensamento de Lacan atualizava temas clássicos para pensar a lógica psicanalítica como no seminário que realiza em 1959 que intitulou “A ética da psicanálise” onde se dedica a pensar, entre outros temas, a Antígona de Sófocles. Antígona é esta heroína trágica que desafia o tirano Creonte para cumprir  a nobre função de coveira e , dessa forma,  enterrar seu irmão Polinice. Assumir esta função é um principio que indica uma ética, tema de  atualidade virulenta em nosso país. Lacan visita também os autores contemporâneos  que revolucionaram a literatura como  James Joyce e seu romance Finnegans Wake.  O seminário de 1975, intitulado “O Sintoma”, é dedicado a ler Joyce e deduzir desta leitura reflexões para a teoria psicanalítica.  Donaldo Schuler , que realizou a magistral tradução para o português de Finnegans Wake, nos lembra, no seu livro “Joyce era louco?  que “Lacan percebe em Joyce um corpo musical, feito de consonâncias e dissonâncias, pontilhado de ênfases e fulgurações”.

Mas toda uma vida dedicada inteiramente a psicanálise nunca fez de Jacques Lacan  um profeta das maravilhas desta disciplina. Pelo contrário, ele insistiu inúmeras vezes nos seus limites. A radicalidade  de suas reflexões nos mostram o trabalho monumental que fez para estar a altura da complexidade do funcionamento psíquico  em um mundo sempre ameaçado de destruição e desabamento. Em  uma entrevista no final de sua vida  ele afirma que é disto que o psicanalista se ocupa: do imundo.

Elizabeth Roudinesco, uma das autoras   contemporâneas importantes da história da psicanálise, ao mostrar que  Lacan  antecipou em sua obra grande parte dos temas que  nos desafiam no mundo de hoje , escreve que o século XXI será lacaniano. Exageros à parte, é evidente que Lacan traz uma contribuição fundamental para que possamos enfrentar o ar destes tempos sombrios que vivemos no Brasil e no mundo. A psicanálise tem uma função importante não só para dar algum contorno ao sofrimento individual, mas, sobretudo para que possa renovar nossa capacidade de imaginar ainda outros mundos possíveis. Como disse Alain Badiou  por ocasião da celebração dos 30 anos da morte do psicanalista: “Lacan me parece um antídoto vital contra a estupidez angustiante que diariamente nos invade”.

[1] Psicanalista. Analista membro da APPOA. Doutorado e Pós-doutorado pela Universidade de Paris VII