Ao investigar as raízes históricas da Declaração dos direitos humanos proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 1948, não podemos deixar de nos referenciar ao movimento iluminista e ao documento mais importante da Revolução Francesa, que indica a precedente mais direta da atual declaração, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Nela, o seu caráter fundamentalmente burguês já se evidenciava, o que é pontuado por Marx (2010) ao delimitar os limites da Revolução e personificando o homem abstrato de direito da referida declaração no indivíduo burguês.
A respeito disso, estendendo essa discussão à Declaração de 1948, proclamada após os efeitos dos horrores vivenciados em Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Varsóvia, Balzec dentre outros campos de extermínio e tortura, compreendemos que ainda que os direitos enquanto individuais tenham sido mantidos, é posto que a noção de propriedade privada que há neste documento oficial corrobora com uma sociedade civil mais desigual do que propriamente universal. Isto é, parece que não há uma mudança da lógica estrutural que, por sua vez, é atrelada à lógica liberal exponenciada atualmente no neoliberalismo. A partir desse recorte cabe perguntar: direitos humanos para quem?
A tentativa de esforço de universalização marcada por esta declaração, aponta a passagem de um sujeito abstrato da primeira declaração para uma organização demarcada por categorias. Estrutura que continua através das séries de tratados internacionais de direitos humanos e outros instrumentos adotados desde 1945 na tentativa de expandir o corpo do direito internacional dos direitos humanos. Algumas delas são convenções para prevenção e repressão do crime e genocídio; eliminação de todas as formas de discriminação racial; eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres; direitos da criança; direito das pessoas com deficiência; das pessoas em condição de refugiados, entre outras.
Destacamos, portanto, que a problemática dos direitos humanos está diretamente relacionada à noção de identidade, conceito que para a psicanálise se coloca enquanto distinto da noção de identificação, uma vez que compreendemos que o sujeito se constitui a partir de diversas identificações e não identidades. Lacan destaca a falsa ideia de que A seja igual a A, uma vez que o significante não pode ser nunca idêntico a si mesmo. O problema da identidade se liga a uma exclusão do que não é determinada identidade, logo, uma identidade se determina necessariamente a partir do que ela não é. Segundo esta lógica, da qual parte os Direitos Humanos desde a sua primeira proposição, que por sua vez, expande-se ainda mais na segunda declaração e suas convenções ulteriores, o imbróglio se configura: como constituir um discurso de direito universal que está sempre ligado a uma certa particularidade identitária? Isto se torna claro, uma vez que, na própria tentativa de universalização dos direitos humanos, novas categorias, ou como vimos, convenções, são reunidas para dar conta daquilo que escapa, demonstrando que sempre haverá um resto a ser incorporado. Que lógica seria essa senão aquela que possui como efeito o que Lacan denominou de segregação? Nesse sentido, os direitos humanos, tal como está constituído, possuem em sua própria estrutura constitutiva um viés segregativo.
Se Freud identificou um mal-estar fundado nas renúncias sexuais como exigência à cultura, Lacan identifica um novo mal-estar enquanto prática segregativa, em que o seu modelo paradigmático são os campos de concentração nazistas. Não nos parece desconectado desse ponto o fato do discurso dos direitos humanos renascer a partir exatamente desse ponto histórico, na tentativa de garantir que aquele terror não voltasse a acontecer. A declaração universal dos Direitos Humanos de 1948, portanto, delineia-se como uma espécie de resposta ao trauma da segunda guerra, uma formação de compromisso, tal como diria Freud, a respeito da manifestação sintomática.
Nesse viés, a civilização é calcada, como nos aponta Freud e relembra Benjamin, a partir do que retorna da barbárie. Para além desse fato, podemos reconhecer a Declaração em algum outro aspecto? Mais especificamente, podemos reconhecer a Declaração em sua promessa de garantir direitos? Isto é, mesmo com a sua origem histórico-burguesa e suas limitações sociais, o discurso dos direitos humanos faz barreira ao gozo segregativo ao qual nos impõe cada vez mais o capitalismo neoliberal? Para responder a essa pergunta talvez seja preciso ir além e pensar sobre quais são as condições estruturais que fazem com que certos grupos não tenham voz, não apareçam para falar de si.
A afirmativa de Lacan ao tratar da psicose, “O que não veio à luz do simbólico aparece no real” (LACAN, 1998a), a nosso ver também pode ser pensado nas conjecturas sociais, e consequentemente transposta para pensarmos o campo dos direitos humanos. Neste caso, o impossível de se inscrever no simbólico seria a própria universalização, que é justamente o que este campo promete. Existe uma promessa, roupagem de que seja universal, no entanto, a sua disposição é excludente e não igualitária.
Usamos a metapsicologia freudiana para dar continuidade à investigação dessa problemática: na análise da operação Bejahung–Austossung enquanto um momento originário, quando há uma afirmação primordial, uma introjeção, há, ao mesmo tempo, uma expulsão, isto é, a Bejahung ocorre concomitantemente à Ausstosung – elas são, portanto, duas faces da mesma operação que constitui o sujeito. A primeira relacionada à pulsão de vida, e a segunda, à pulsão de morte. Dessa forma, o que foi autorizado pelo juízo de atribuição e de existência a existir para o sujeito, o que foi introjetado, poderá estar de alguma forma simbolicamente acessível, enquanto o que não foi não autorizado, permanecerá, portanto, como real, como inassimilável pelas redes de representação simbólica do sujeito. Isso que é inassimilável diz respeito ao núcleo traumático, o que cada sujeito terá que dar conta, de forma singular, para sobreviver ao encontro deste impossível de se nomear (LACAN, 1998b).
No imbricamento sujeito e social, a realidade psíquica é, portanto, constituída a partir de Austossung, daquilo que é mantido fora, tal como a realidade social. Transpondo ao nosso tema: os direitos humanos que se dizem universais só se constituem a partir da exclusão de certas categorias, isto é, a afirmação de um direito só é possível a partir da segregação, constituída como a Ausstossung. Neste viés, é preciso se representar por alguma identidade para poder ter direito.
Se por um lado reconhecemos aqui o caráter limítrofe da Declaração dos direitos humanos, averiguamos seu outro possível lado. Assim, tal como Jean Hyppolyte em sua discussão com Lacan nos possibilita pensar a Verneinung de Freud em sua dimensão dialética. Assim como na denegação, o material recalcado é o que aparece sob a égide da negação; no campo dos direitos Humanos algo também aparece, mas o quê e sob quê condição?
O caráter traumático social retorna na declaração dos Direitos Humanos juntamente com uma possibilidade e outra impossibilidade. A primeira aponta para a sua importância em forma de luta, força política, potência de transformação social. E a segunda, o impossível do universal. Nesta crítica dialética reconhecemos, portanto, a sua importância, mas também a sua parcialidade. Ou seja, compreendemos esse discurso dos direitos humanos, que se aproxima ao discurso do mestre e do capitalista, não como um fim em si mesmo, uma vez que ele nega uma parte do que sejam os direitos naquilo que ele só faz perpetuar.
Neste imperativo em que todos possuem direitos e ninguém pode ficar de fora, a psicanálise nos possibilita afirmar que a própria estrutura da linguagem e do discurso, assim como o laço social, como nos acena Lacan (1974) são segregativos. Há aposta de que o discurso analítico pode escapar à segregação pela via do um a um, não segregando ninguém, exceto pelo fato de que todos não podem entrar. Nesta movimentação discursiva há a possibilidade de buscar uma diferença que não seja aquela que socialmente, politicamente e economicamente segregam. Se a luta pela igualdade precisa considerar as modalidades de diferentes tipos de gozo, não basta o processo singular da clínica, mas um tratamento da segregação também no laço social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUD, S. A negação (1925). In: FREUD, S. Neurose, psicose, perversão. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 305-314.
LACAN, L. APÊNDICE I: Comentário falado sobre a “Verneinung” de Freud por Jean Hyppolite. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a. p. 893-902.
LACAN, J. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud. In: LACAN, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998b. p. 383-401.
LACAN, J. A Terceira. Conferência de Jacques Lacan em Roma, em 1º de novembro de 1974 [1974]. In: Cadernos Lacan, v. 2. Publicação não comercial. Circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, março de 2002. p. 39-71.
MARX, K. Sobre a questão judaica [1843]. São Paulo: Boitempo, 2010.
ONU. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em 18/11/2021.
Imagem: Otávio Roth, Artigo 1o, Série Declaração Universal dos Direitos Humanos em Português (1984)
Reprodução de Fábio Praça. Exposição para Respirar Liberdade: 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. SESC. 2019.