Ilustração de Júlia D’Ávila da Costa, 7 anos
Dedicado às escolas públicas e a todas as crianças, jovens e professoras que as tornam ainda possíveis apesar de todo o descaso.
Tem coisas que tropeçam na gente e que de tão tocantes nos pedem logo uma palavra. Semana passada conheci uma menina muito especial em uma visita que fiz à escola municipal Neusa Goulart Brizola, situada na zona sul de Porto Alegre. Ao longo dos últimos anos, a “Neusa” tem sido uma companheira e tanto na luta por uma educação justa e transformadora. Enquanto circulava pelos corredores da escola, encantado com as melhorias conquistadas de modo criativo pela equipe diretiva atual, deparei-me com a menina em questão, que deveria ter uns sete ou oito anos de idade. Ela parecia estar sozinha na biblioteca, sentada em uma dessas cadeiras brancas de fórmica com um livro colorido nas mãos. A porta estava aberta, o que me permitiu presenciar com nitidez a magnitude daquela cena. Para mim, magnitude não quer dizer somente a qualidade de ser grande. Gosto do termo porque me leva a pensar no magma, essa substância quente e absurdamente viva que age embaixo de nós, no mais profundo da Terra. De fato, a cena em si não era grandiosa afinal muitas crianças passam pelas bibliotecas em um só dia de aula. Mas aquela menina me transmitia algo diferente. Ela segurava com valentia seu livro, disposta a desbravar cada uma de suas páginas, sílaba por sílaba, frase por frase. Aquele par de olhos fitados pelas palavras (sim, as palavras nos fitam) parecia exigir da pequena leitora mais do que um simples exercício do olhar. Mesmo com o livro cobrindo quase todo o seu rosto, dava para perceber um tímido, mas corajoso, esforço da boca em dar vida sonora aquelas letras ainda um tanto embaralhadas. E a menina ali lendo em uma voz que não era nem baixa, nem alta. Aquela menina ali lendo me fez ter a certeza de que a leitura a meia voz é talvez a mais bonita das leituras: nem tão alta a ponto de espantar nossas criaturas internas, nem tão baixa a ponto de não ser ouvida pelo outro. Em um país doente das palavras, intoxicado por mentiras, Fake News e violências verbais de todos os lados, observar aquela menina lendo foi mesmo uma experiência magnífica de cuidado.
Fiquei então pensando no que pode o encontro de um corpo com um livro e no que este encontro pode nos dizer sobre o próprio gesto de cuidado. Aquela menina ali lendo me fez pensar que cuidamos de um livro sempre que nos colocamos a lê-lo, e que por ele somos igualmente cuidados. Cuidamos das letras que compõem cada uma de suas palavras, e das palavras que se resolvem em frases, linhas, capítulos, parágrafos. Ao lermos um livro, cuidamos da autora ou autor que o escreveu, nos enveredamos pelas pistas deixadas pela sua escrita, aceitamos o convite para caminharmos juntas e juntos, mesmo que por vezes tenhamos pontos de vista contrários. Quando lemos um livro cuidamos também de nós mesmas. Se por um lado queimamos poucas calorias, por outro oferecemos calor aos nossos neurônios que circulam por outros circuitos e sinapses. Que bom são os livros que mobilizam o corpo por inteiro, que nos dão vontade de rir, que nos deixam com raiva ou que nos fazem simplesmente chorar. Que bom são os livros que arrepiam os pelos e ruborizam o rosto. Bons são também os livros que nos causam medo, que nos deixam em pânico. Mesmo os livros tediosos são bons pois nos convidam ao abandono, a levantar a cabeça e sair por aí. Ler é um ato solitariamente coletivo, um gesto de solidão compartilhada. Bons também são os livros que nos dão raiva, que nos fazem ter consciência ou mesmo vergonha da língua que nos foi imposta e das tantas outras línguas subjugadas. Ler é um modo de fazer o fascismo de uma língua tropeçar, uma vez que lemos com a voz que temos, com a história que herdamos e com o mundo que queremos. Mas a língua não é só contrato, pacto, violência ou intimidação. Língua é também amor. Gosto das leituras que lutam por uma gramática mais humanizada. Quando lemos cuidamos das vogais que, embora poucas, são tão frondosas. Com a leitura tornamos possível o estalo das consoantes. Algumas leituras são como tatuagens moventes do que um dia fomos. Quando lemos cuidamos da memória de todas e todos que um dia nos cuidaram. Porque a memória é feita de imagem, de palavra e, também, de som. Quando lemos, algumas dessas vozes que nos cuidaram são erguidas junto à nossa, vozes daquelas e daqueles que estiveram conosco, lendo ou não. A leitura tem dessas coisas, carrega um bando de gente, traz no seu encalço os sotaques, um salto na cacunda da dicção. Mas a leitura é também composta pelo silêncio das vozes que não foram ditas, de vozes embargadas que não tiveram a sorte ou a chance de falar. Lemos para cuidar das palavras que não querem ou não podem chegar à boca. O som da nossa leitura traz consigo vozes que vingaram e outras tantas abortadas. São loopings de frases ditas, mix de timbres esquecidos e abandonados. Lemos para cuidar desse tanto de voz que em nós quase não cabe. Lemos para quem sabe compreender um pouco desse tanto. Mas lemos também para estranhá-lo, para impormos um pare, um chega, um basta! “Leio com o olhar triste do meu pai”, foi o que me disse Conceição Evaristo por meio de uma personagem. Quando lemos, a criança que em nós leu pela primeira vez ergue também sua voz. Ler é mesmo um ato de retribuição e um gesto de solidariedade.
Retorno à cena da menina leitora. Fiquei em dúvida se não deveria ter perguntado seu nome, saber o que ela estava achando do livro, compreender um pouco mais acerca daquela pequena solidão compartilhada. E lembrei de Sílvia, uma professora que tive quando tinha mais ou menos a sua idade. Ela costumava dizer que, quando interrompemos a leitura de alguém todo um mundo de lugares e personagens se vê imediatamente congelado. Preferi não atrapalhar a menina e o mundo todo que se movia diante dos seus lábios. Achei melhor ficarmos com o calor do magma. Hoje sou eu que escrevo sobre aquela menina ali lendo, e torço para que um dia, quem sabe, ela tropece nesse singelo texto e escreva algo.