O ano era 1992. Foi certamente a primeira vez que ouvi falar de uma forma ética, incluindo o sujeito e seu desejo, da possibilidade de uma mulher escolher o que fazer com seu corpo e sua vida diante de uma gravidez. Não veio com o peso moralizante, os estigmas e representações repletos de pré-conceitos que a palavra “aborto” carrega em nossa sociedade. Veio numa performance de apoio ao movimento Pro-choice(Pró-escolha) atuada por Eddie Vedder, cantor do grupo de rock Pearl Jam. A música, Porch (pórtico, em nosso idioma), ganhou minutos a mais na versão do programa acústico, unplugged, da emissora MTV enquanto o cantor escrevia no braço “PRO-CHOICE!!!”, de pé em cima de uma banqueta, improvisando em seguida num canto-grito-manifesto palavras de vida e escolha: “I want to live. I want to choose[1]” (Eu quero viver. Eu quero escolher.).
Desde então, procurei não mais usar a palavra aborto, embora reconheça a importância desta na luta pela legalização do aborto seguro como direito fundamental das mulheres. Uso preferencialmente escolha, interrupção voluntária de gravidez (IVG), expressão que vim a conhecer anos mais tarde na França, onde tal ato é um direito assegurado por lei a todas as mulheres, fazendo parte da política de cuidados da saúde feminina. É uma questão de saúde pública e uma conquista social feminista.
Nomear, ao menos aqui, esse ato de uma outra forma me parece ser um ato político e ético fundamental para a construção e afirmação de um paradigma da saúde feminina pautada na escolha subjetiva. Sabemos bem a importância da nomeação e do significante na psicanálise. A importância e força das palavras, o que também foi diversas vezes expresso e ressaltado pela literatura em sua potência de libertação ou em sua utilização para promover a opressão. Como se pode tão bem e claramente ler, por exemplo, em 1984, de George Orwell, em que o regime totalitarista, sob a alegoria do Big Brother, visa eliminar a liberdade ao mesmo tempo em que elimina do uso corrente palavras a ela relacionada.
Não se trata aqui, portanto, de um simples “preciosismo” ou de uma tendência “politicamente correta”. Falar – e insistir nesse significante – em interrupção voluntária de gravidez é colocar no centro deste debate a dimensão do sujeito e de suas escolhas em cada ato que realiza. É lutar e apostar que há, em todo ato, um sujeito que pode eticamente, a partir da escuta de si, escolher e responder por suas escolhas. Escolher o que fazer com sua vida, com seu corpo, com o desejo ou não de se tornar mãe em um determinado momento.
Nessa perspectiva, podemos dizer que nenhuma mulher aborta. Ela pode escolher não dar continuidade a uma gravidez, interrompendo-a, assim, voluntariamente. Ela pode perder involuntariamente uma gravidez – e, novamente, faço apelo ao idioma francês, que denomina este evento clínico como fausse couche, algo que poderíamos traduzir como “falso (trabalho de) parto”. E é preciso criar condições sociais, culturais, médicas e de assistência paramédica para que essa escolha ou esse evento possam se efetuar e ser inscritos de modo subjetivo, sem culpabilização social, na vida da mulher que o vive.
Na constituição brasileira, ainda enraizada no pensamento patriarcal e na colonização de corpos femininos, a interrupção voluntária de gravidez é crime tanto para a mulher quanto para a equipe médica que a pratica, sendo apenas prevista e legalizada em casos extremos, que incluem risco de vida ou à saúde física e psíquica da gestante e também uma gestação causada por estupro. Assim, uma gravidez resultante de um crime – como o estupro de uma menor de idade, que coloca evidentemente sua saúde física e psíquica em grande e irreversível risco, tendo o consentimento desta para a realização de tal ato – deveria poder ser interrompida sem maiores alardes e com o respaldo da constituição atual. Além disso, em tal situação, deveria ser oferecido, sem recusas, o acesso ao acompanhamento médico, social e psicológico da criança em um hospital público apto a efetuar este procedimento médico.
Entretanto, há um abismo entre isso e o que assistimos nos últimos dias no Brasil em torno da vida de uma menina de 10 anos, grávida devido a mais um estupro cometido por um tio – realidade que ela conhece desde os 6 anos de idade e que só pôde ser ouvida por uma tia e por sua avó quando seu corpo, ao engravidar, não pôde mais se silenciar diante da violência e tortura a que era submetida. Uma menina negra, que sofria ameaças de morte por parte do tio caso falasse a alguém sobre o que sofria. Grávida e com o apoio de mulheres da sua família e de uma rede de mulheres e profissionais de saúde e da justiça que se mobilizou para assegurar seus direitos, ela pôde falar.
De uma maneira surpreendente e perversa, a partir daí, sua intimidade foi escandalosamente exposta em redes sociais e com a recusa de hospitais da cidade onde mora em cumprir a lei que garantiria a interrupção da gravidez. As reações de “conservadores” – religiosos de diversas correntes, uma ministra (que deveria, pelo cargo que exerce, ser uma garantia do cumprimento da lei), apoiadores do atual governo… – ao mesmo tempo chocam e escancaram o fosso desta questão em nosso país. Choca ler comentários que falam que “a violência do tio” foi “grave”, mas que “gravíssimo foi o aborto[2]”, ou que acusam a menina de “assassina”. Choca saber que a identidade da criança – nome e endereço – foi publicada em redes sociais. Choca, profundamente, ver que uma parte da sociedade e do Estado ainda falha em proteger pessoas em vulnerabilidade social e, pior, aumentam o sofrimento destas quando as coisificam.
Diante dos questionamentos diante do caso (que não podemos esquecer nem por um segundo que se trata, de fato, de uma vida), o juiz convocado para intervir e garantir a realização do direito de interrupção desta gravidez apontou, para além dos motivos médicos, que este ato passava pela “vontade da menina”[3]. Foi preciso um terceiro intervir para que a voz do sujeito fosse ouvida.
“Eu quero viver. Eu quero escolher”. Retomo esse canto-protesto que é paradigmático do movimento de um sujeito em se posicionar com voz face à alienação, ao autoritarismo, ao silenciamento imposto por opressões, violências e imperativos morais culpabilizantes. O sujeito está sempre lá. É preciso ouvi-lo, posto que, de algum modo, por alguma via, o sujeito sempre se faz ouvir. Esta aposta é, também, a escolha que sustenta a psicanálise.
[1]Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=llOpE85bmW0.
[2]Fala de um religioso que pode ser lida em matéria de Marina Rossi publicada em 17/08/20 no periódico El país Brasil e disponível emhttps://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-18/menina-estuprada-sofreu-acosso-de-ultraconservadores-ate-dentro-de-hospital.html.
[3]Como podemos ler na coluna escrita por Debora Diniz, antropólga e professora de Direito da Universidade de Brasília Debora Diniz, publicada em 17/08/20 no periódico El país Brasil: “Um juiz foi convocado. A sentença é original para alguns, pois fala na ‘vontade da menina’. Sim, uma menina de dez anos tem vontade neste caso: ela chorava ao ouvir que seria obrigada a gestar, a se transformar em mãe”, disponível em https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-08-17/uma-menina-de-dez-anos-aborta-e-e-nosso-dever-nos-unir-a-dor-dela.html.