Domingo foi um dia importante, histórico, necessário. Um dias de tensão e sorrisos; coragem e hesitação; festa e tristeza grave. Um dia reprimido por uma doença que avança no Brasil e que não tem ainda qualquer horizonte para seu enfrentamento. Se as duplas mensagens de governos persistirem é muito provável que não haverá melhora antes que desembarque no Brasil o antídoto. Em meio a maior pandemia conhecida e sob o comando do pior presidente do mundo, as manifestações democráticas voltaram às ruas e de lá não deverão sair mais.
O extraordinário exemplo de solidariedade e articulação dados por torcidas historicamente rivais, passionalmente adversárias e com muitas feridas abertas- o que retroalimenta suas rivalidades-não será esquecido.
Enquanto a esquerda partidária se fraturava mais uma vez e colhia como uma das mais inacreditáveis consequências a desistência da candidatura de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio; enquanto líderes do calibre de Lula hesitavam a uma articulação urgente e ampla e o PT sinalizava no senado, juntamente com outros partidos o recuo em ocupar as ruas, ao mesmo tempo e em sentido oposto os torcedores do Corinthians levavam às ruas palmeirenses, santistas e são paulinos para defender algo maior que o futebol, maior que as paixões que ele mobiliza: a liberdade, a decência e a esperança de um Brasil diverso e compartilhado, onde todas as vidas importam e precisam ser protegidas.
As torcidas organizadas, que sempre foram representadas como insígnias da pobreza, do povo pobre e periférico e praticantes de violência e que, por isso mesmo, sempre foram caracterizados como vândalos, baderneiros e criminosos, quem diria, se levantaram para defender a democracia nas ruas.
É muito importante destacar que tudo começou com 30 corinthianos, algumas semanas atrás, que se fizeram presentes para tirar os defensores da violência e do autoritarismo das ruas. Duas semanas depois os torcedores do Corinthians reuniriam centenas, na semana seguinte com o apoio do Povo sem Medo reuniram milhares.
E não é de hoje que muitos intelectuais brasileiros e a esquerda partidária tem ficado para trás no que diz respeito à mobilizações autenticamente populares.
Estive em muitos cenários que levaram ao ato do último domingo e, para mim, em nenhum momento tal ato pareceu suicida, intempestivo e inventor de mártires. Foi um ato espontâneo que começou com trinta pessoas e, semanas depois, tomou o Brasil. Fato é que no último domingo os emissários da morte e apoiadores do atual presidente foram lavados das ruas do Brasil.
Na avenida Paulista, em frente ao prédio da FIESP, cerca de cem perdidos se afundavam em mais uma manifestação perigosa e temerária.
O risco, obviamente, não é calculável. Jamais saberemos quantos foram contaminados por irem às manifestações ou serão futuros transmissores do covid 19, também não saberemos os que foram contaminados, de outras formas, por não irem.
O que sabemos, sem qualquer dúvida, é que a atual pandemia insuflada todos os dias pelo presidente eleito, somada a uma política de guerra civil e incitação ao confronto armado e homicida levarão muitos mais à morte, e mais rapidamente.
Não ir às ruas não significa de modo algum que assim evitaremos a pandemia. Não há sombra de política nacional consistente para que isso ocorra. Assim em breve, se ocorrer o alinhamento com as forças armadas, tão desejado pelo atual presidente, não teremos de lidar apenas com a pandemia galopante no país, mas com uma política de segurança de governo orientada para a morte de divergentes e dissidentes.
Para os que voltaram às ruas primeiro, os torcedores corinthianos, massacrados pelo cotidiano de injustiças e pela impossibilidade de permanecer em casa – seja pelos lugares modestos que lhes servem de moradia, seja porque os governos não deram nenhuma solução viável economicamente para os que desejariam permanecer isolados, a urgência foi vivida na pele e redobrada.
Um governo federal que se alimenta de sangue e vísceras e determinado a insuflar violências, crueldades e machucar severamente e largar à morte milhões de pessoas, não apenas é indiferente à morte por covid-19, mas promete ser um protagonista da morte por assassinatos, torturas, feminícidios, práticas discricionárias e segregacionistas e perseguições, pretendendo deflagrar um ataque sem tréguas aos defensores dos direitos civis e humanos no país e a todos os movimentos legitimamente populares. Isso já está acontecendo.
Os afetos entre torcedores, que se definem por sua rivalidade histórica, trava hoje sua luta mais importante pelo direito de vibrar, torcer, soltar palavrões e gestos nas arquibancadas e se divertir, e uma parte muito significativa dos torcedores das organizadas entenderam que isso é a democracia. Mas estão atemorizados também com o descaso com a pandemia que vitimou 13 torcedores da Gaviões da Fiel.
É extraordinário como as paixões do futebol foram as primeiras em reconhecer a impotência das esquerdas partidárias, a melancolia daqueles intelectuais que não acenam com outra coisa senão aguardar o fim da pandemia.
A hesitação da ação política que passa por acordos, pactos e responde ao regime das eleições levará o país à míngua. Enquanto acordos são alinhavados entre partidos e disputas se acirram preparando-se para um muito longínquo 2022, cerca de 30 torcedores estavam se ocupando de varrer das ruas aqueles que apostavam na dor e morte de muitos como práticas a seguir e a alimentar.
Assassinatos, mortes, desparecimentos forçados, ação escusa das polícias, impunidade ante a violação de direitos civis e humanos reivindicam os amarelinhos, que não saíram das ruas, dispostos a tudo para continuarem a ser elogiados por sua cretinice pelo hoje líder do governo federal.
30 corinthianos foram às para as ruas semanas atrás para dizer também: Lamentamos, mas não esperaremos até 2022!
E com eles muitos seguiram depois apoiando, batendo panelas, atuando nas redes, publicando reportagens e análise e criaram uma rede imensa de um trabalho comum ancorado na ação popular. Foi a população pobre e periférica que catapultou tudo e, depois, com a frente Povo sem Medo se somando, ainda é.
Mas no princípio, foram os torcedores corinthianos que criaram fato único na história política brasileira.
A paixão pelo futebol serviu como esteio para afirmar outras vontades e a própria agressividade vivida nos confrontos entre torcidas encontrou, simbolicamente, uma trégua para convocar partidos, democratas, defensores das liberdades e dos direitos civis e humanos para unirem-se com intenção deliberada, método e firmeza diante dos descalabros do governo federal que, dia a dia, pratica a destruição como estratégia tergiversadora.
A monstruosidade do atual governo não tem par. Lutamos contra monstruosidades, subumanidades que recusam o pensamento, o diálogo e o argumento. Eles latem, gasnam e gritam e palavras não saem mais de suas bocas. São bestas-feras que não encontraram limites para sua ação e pregação.
Com eles estão todos os que acreditam pia e explicitamente na violência como modo usual, corriqueiro e banal de lidar com diferenças e conflitos. O espancamento da médica no bairro carioca do Grajaú após quebrar o retrovisor de um policial que estava numa festa, em plena pandemia, não deixa dúvidas sobre até onde podem chegar homens e mulheres dispostos a intimidar, cruelizar e matar os outros.
São muitos, 30% confessam as estatísticas. A violência é sua arma mais potente e única e não vão parar até que sejam parados. Boa parte da corporação policial está com eles e nunca antes o corpo foi requisitado como estratégia de luta, oposição e trabalho. Há, claro, os policiais antifascistas, sempre a serem honradamente lembrados.
Por isso, e não por outro motivo, os corinthianos e tantos outros foram as ruas , se expondo ao risco do contágio, se expondo aos agressores e dando exemplo de coragem necessária.
Inúmeras discussões estão sendo feitas sobre o ir ou não ir as manifestações de rua, mas a conclusão óbvia que hoje deveria ser consenso é a de que as atrocidades de jaires não serão estancadas com panelas e a expectativa de eleições em 2022. Então é preciso apontar, caminhar e experimentar soluções.
É chegado o tempo de agir. Cada qual deve fazê-lo com puder, mas sem desespero e atentos aos medos que querem nos fazer sentir. No PPD postamos o convite para que todos aqueles que não se sentirem convocados a irem aos atos apoiem, ajudem, divulguem nas redes os acontecimentos gerados pelos que vão às manifestações, bem como as perseguições e exceções cometidas pelas polícias.
Alguns tentarão dissuadir a população a voltar às ruas, outros a incentivarão. Nenhum deles está errado. Todos anseiam e lutam pela democracia e pela vida das brasileiras e brasileiros.
Pra os que não vão às ruas porque escolheram não ir, juntem-se àqueles que decidiram ir e que lutam pelas mesmas causas e sonham os mesmos sonhos.
Hoje muitos não podem ficar em casa, seja por completa impossibilidade, seja pelo sentido de urgência. Não apenas os manifestantes pela democracia, mas os repórteres, os médicos, os enfermeiros, os psicólogos, os funcionários de supermercados, os caminhoneiros, os sem teto e a população de rua são atingidos pela urgência.
Os movimentos pela democracia tem o mesmo sentido. Se a democracia morrer, muitos morrerão com ela e a pandemia será, como já é, utilizada como estratégia para somar e justificar mortos. Não foram jaires, foram vírus.
Todos temos medo pelo futuro do país, todos tememos a pandemia. Alguns muito antes, outros só agora. Mas todos tem o dever cívico de fazer o que deve ser feito para somar, aglutinar, conectar pessoas e não apegarem-se aos seus próprios medos e inseguranças para criarem verdades universais. Ir às ruas não é o único caminho, mas os que estão indo não podem ser responsabilizados pelo pior quando arriscam-se, justamente, para evitar o pior.
Aos que ainda consideram que os intelectuais brasileiros tem grande influencia no que esta acontecendo, posso dizer pelo que vi, ouvi e participei que esse movimento gira ao contrário. Dando as costas para as palavras que foram incapazes de se converterem em ações.
A grande maioria dos que foram as ruas não queria estar lá nesse momento, sabem que se arriscam, porém o que os aflige é a certeza da possibilidade de que por muito tempo pode não haver outro momento para levar a democracia às ruas. O cenário é dramático.
O mundo estará conosco, boa parte dos brasileiros também e as instituições brasileiras, que devem tudo a democracia como o STF, a PGR, as Defensorias Públicas, a Ordem dos Advogados do Brasil e etc. devem agora realizar seu levante como a imprensa decidiu fazer.
Todos os que decidirem não ir aos atos tem toda a razão e é impossível, desnecessário e tolo criar mais uma dicotomia cretina ante os que foram e os que não foram. Do mesmo modo é preciso que os que não foram, respeitem as decisões dos que estarão lá, sua autonomia e sua capacidade de decidir e não os tratem como uma massa acéfala incapaz de fazê-lo.
Em todos os atos, a decisão daqueles que decidiram não ir está sendo respeitada.
Lembramos do que Melanie Klein descreveu com tanta maestria clínica. A dicotomia é um recurso que surge do medo do desamparo, ela cria objetos artificiais e induz fantasias de semelhança ante o dessemelhante. As dicotomias são plantadas pelo governo federal desde as eleições. É uma prática e uma estratégia política conhecida. Nós, contudo, podemos elevar os objetos simplórios produzidos pelas dicotomias a outros patamares nos quais caibam as contradições, os paradoxos e a ambivalência. Suportar isso é o que possibilita a experiência do convívio e corrige as rudezas da política.
Se as forças democráticas não puderem estar juntas e articuladas, ao menos cultivem o respeito e reconheçam a dignidade dos que, em desespero ou não, decidiram voltar a ocupar as ruas.
Lutamos hoje pelas nossas vidas, de nossos filhos e netos. Lutamos para que o Brasil se levante diante do algoz e reconheça a sua vocação para a vida, ainda que a morte tenha nublado corações e espíritos cansados.
Novamente o futuro tornou-se incerto para nós brasileiras e brasileiros. Muitos trabalham para aprontar um futuro que ainda não vemos, salvo através dos nossos mais luminosos sonhos, quando tínhamos a certeza de que viver as nossas vidas dependia apenas de nós. Hoje sabemos quem são os responsáveis pela destruição cotidiana do país e, certamente, os que estão indo às ruas não estão entre eles.