Entre os atos de barbárie que mais despertam horror à alma humana e o clamor de um povo, certamente o assassinato de uma criança supera, até mesmo, a dor que sentimos diante dos extermínios e genocídios que grassam pelos quatro cantos do mundo. Não sei bem o por quê. Mas me sinto acossada pela questão desde que tomei conhecimento do assassinato hediondo e brutal do menino Henry.
Melhor deixar que minha escrita seja elaborada com imagens do Antigo Testamento, o livro que conserva em suas letras ancestrais a capacidade de deixar o leitor multiplicar seus sentidos e significados. Sou tentada a procurar no Gênesis, mais precisamente no episódio do sacrifício de Isaac, um farol para iluminar minhas reflexões.
Vejamos. O Deus de Abraham, o patriarca dos hebreus, o põe à prova.
“Ele lhe diz: Toma, então, teu filho, teu único filho aquele que amas, Isaac, vai por ti em terras de Moryah, lá, fá-lo subir em “holocausto” num dos montes que eu te disser” (Genesis, 22, 2.2).
Até esse ponto da narrativa do Gênesis, esclarece André Chourraqui, tradutor e intérprete da Bíblia Hebraica, tudo seguia o costume do tempo em que sacerdotes sacrificavam seus filhos para honrar seus deuses.
Entretanto, num ato contrário à exigência de sacrifício, Ele envia um anjo que diz a Abraham:
“Não avance tua mão contra o teu filho, não lhe faças nada! (Genesis, 22, 2.3)
Diz Chourraqui que a “intervenção de Deus a favor da vida do filho de Abraham impede uma tragédia e assegura a sobrevivência da descendência de Abraham”[1]. Sendo assim, o episódio bíblico pode me dizer uma outra coisa, algo que está implícito na escrita: assassinar uma criança é um genocídio: sua morte interrompe o futuro de um povo.
É nesse quadro que gostaria de pensar a morte do menino Henry, não de forma isolada, restrita à esfera do individual, da família, mas como um acontecimento social. Enquanto psicanalista, não posso deixar de evocar o princípio freudiano de que o individual segue o modelo do social. Um princípio que reserva ao analista o destino de ocupar também o lugar de crítico da cultura que testemunha. Um princípio que fortalece a transmissão da psicanálise às gerações de analistas através dos tempos.
Devo então começar reconhecendo como certos elementos da banalização do Covid-19, pelo governo brasileiro, contribuem ao aumento vertiginoso de óbitos. Estes testemunham o descaso do Presidente para com normas mínimas de afastamento social; a indução do uso de drogas ineficazes e, enfim, os efeitos de sua insistência calculada em negar a doença. Negacionismo que o levou à absoluta falta de estratégias nas compras kits de testagem e de vacinas, o meio mais eficaz de combate à pandemia. De fato, a linguagem de Bolsonaro ditada pelos imperativos da economia e inerente à sua própria vocação ao autoritarismo o caracterizam como um líder que, frente a morte de cidadãos infectados pelo vírus, é capaz de responder friamente à pergunta, feita por um repórter, sobre o que sentia diante do fato: E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”, em referência ao próprio sobrenome.
Nesse cenário, todo o sadismo que supostamente o padrasto de Henry foi capaz de exercer sobre o menino, na intenção de obter o gozo de torturar e matar outrem, não me parece ser aleatório. Pode-se argumentar que desde 2013, o acusado comete agressões contra mulheres e crianças. Entretanto, há que se fazer uma diferença entre violência e o ato de matar; o que não significa minimizar a gravidade das agressões anteriores, mas ressaltar a força assassina da barbárie na ausência de uma das leis que sustentam a cultura: “Não matarás”.
O fato é que o assassinato de Henry, embora semelhante ao da menina Isabela (2002), acontece no momento em que estamos mergulhados na tragédia da falta de limites ao exercício da crueldade, do Oiapoque ao Chuí. As desigualdades sociais no Brasil se tornou o locus de discriminações e exclusões sociais – na sua maioria da população negra e parda -, favorecendo crimes hediondos contra as crianças e jovens e que muitas vezes passam em branco. Em dezembro do ano passado, os meninos Lucas Mateus, de 8 anos, Alexandre, de 10 anos, e Fernando Henrique, de 11 anos, desapareceram de um campo de futebol sem deixar rastros, perto do condomínio onde moram, localizado num município da Baixada Fluminense (Rio de Janeiro). Segundo as últimas notícias da imprensa, um inquérito foi aberto mas a investigação policial está parada e não sai do lugar (El País, 24.03.2021).
Num país em que o valor da vida cede aos caprichos da pulsão de morte, não deixa de ser igualmente emblemático o fato do acusado de ter assassinado o menino Henry ser vereador, um representante do povo. Enquanto cidadão que se quer acima de qualquer suspeita, como alguns outros de nossos representantes, com certeza imagina sair incólume da situação. Não me parece abusivo, então, concluir que a morte desse menino de quatro anos, representa um genocídio: morre com ele (e com qualquer outro brasileirinho assassinado), ainda que simbolicamente, o futuro de um povo.