ANTIGONA E O VALOR DOS COVEIROS
Lembrei ontem (20/4/20), de um poema do Vinicius de Morais do qual destaco os versos abaixo:
A hora íntima
“…Quem virá despetalar pétalas
No meu túmulo de poeta?
Quem jogará timidamente
Na terra um grão de semente?
Quem elevará o olhar covarde
Até a estrela da tarde?
Quem me dirá palavras mágicas
Capazes de empalidecer o mármore?…”
Enterrar os mortos é quase tão antigo como o próprio ser humano. Neste ritual cuidamos da memória de quem morreu e nos pacificamos, em parte, com a dor de uma perda . De certa forma, somos todos COVEIROS quando estamos presentes em uma cerimônia de enterro. Hoje, mais do que nunca, temos que nos lembrar de Sófocles e Antígona, em sua função de COVEIRA, diante da insanidade do tirano Creonte, que a impedia de enterrar seu irmão Polinice. A atitude do tirano evidenciava seu desprezo pela vida, já que o ato fúnebre é um ritual de vida. Creonte destila ódio e diz a Antígona; “ O inimigo nunca é amigo, nem quando morre”. Antígona responde: “Minha pessoa não foi feita para compartilhar o ódio, mas o amor”. Esta diálogo do século v A.C. precisa ser lembrado nesta terra em brasa.
Ontem em Brasília, faltou uma Antígona para enfrentar o capitão reformado. Ele, ao ser interpelado por um repórter sobre o número de mortes do dia pela pandemia, logo depois de anunciar que algumas escolas seriam abertas, interrompeu a pergunta e disse: “ô Cara, , quem fala de….Eu não sou COVEIRO , tá certo?” O jornalista insiste na pergunta. Ele novamente “ Eu não sou COVEIRO”. Segue abaixo o link desta conversa que faria vergonha e revolta aos olhos de Sófocles. No contexto desta conversa, ser COVEIRO significa cuidado com a vida e respeito aos mortos. O jornalista estava preocupado com os efeitos mortíferos da negligência com que o governo federal vem demonstrando no enfrentamento desta pandemia. Sim, somos COVEIROS e precisamos deles. Precisamos cuidar da vida e cuidar da memória de nossos mortos, muitos sendo enterrados em silêncio e sozinhos. Neste país que carece de memoriais, podemos imaginar o quanto este trabalho de luto será mais difícil. (Todos devem se lembrar do cartaz na porta do gabinete e de algumas falas do então deputado “ Quem procura osso é cachorro!”, se referindo ao movimento de familiares em busca de desaparecidos durante o regime militar)
Lembrei-me do excelente documentário da psicanalista e cineasta Miriam Chnaiderman, de 2001, Os Artesãos da Morte. Não tenho aqui, infelizmente, o filme para rever, mas lembrei de uma fala de um coveiro que dizia o quanto fazia seu trabalho com amor. Comovente!!. No documentário de 18 minutos, Miriam vai escutar os coveiros, o preparador de cadáveres, o anatomista, a vendedora de flores, o incinerador de corpos. É um filme sobre a morte, mas é um filme de vida. Miriam busca dar contorno com palavras e imagens a este desamparo , por vezes , irrepresentável da morte. Ela afirma a função do lugar de uma Antígona, cuidando de nossa memória e indo ali onde nem todos tem coragem de ir. Um filme intenso, delicado e necessário. Agradeço sempre a Miriam por ter colocado este pensamento em imagens.
Enquanto se proliferam os túmulos em cemitérios em função desta pandemia, temos que proliferar também aos milhares, este ato de Antígona, cuidando desta memória. A pergunta do repórter era uma preocupação com a vidas que serão perdidas , se esta politica de morte continuar.
Finalizo com um dos grandes poemas do século XX, The Waste Land ( A terra devastada), de T.S. Eliot, publicado em 1922. A primeira parte tem como título “ O Enterro dos Mortos” do qual destaco este pequeno fragmento:
“…Teus braços cheios de jacintos e teus cabelos úmidos, não pude
Falar, e meus olhos se enevoaram, eu não sabia
Se vivo ou morto estava, e tudo ignorava
Perplexo ante o coração da luz, o silêncio…”
“Eu não sou coveiro”
https://www.youtube.com/watch?v=aIpUbYjjdn0
( A imagem é de Anselm Kiefer, The orders of the night, de 1996. Em relação a esta pintura ele escreveu: “…É somente indo até o passado que poderemos ir para o futuro”)