A luta antes do luto (ou a disputa pela coroa). Por Priscilla Machado de Souza.

A luta antes do luto (ou a disputa pela coroa). Por Priscilla Machado de Souza.
Imagem: Bruno Ortiz
@brunoortizmonllor

A luta antes do luto (ou a disputa pela coroa)[i]

Priscilla Machado de Souza[ii]

 

Defrontar-me com a morte não me é tormento. Tormento seria se deixasse insepulto o morto que procede do ventre de minha mãe. Tuas ameaças não me atormentam. Se agora te pareço louca, pode ser que seja louca aos olhos de um louco.

Antígona

 

A distopia forjou seu lugar em nosso planeta. Quem sabe lembrando-nos de que ele não é somente nosso… Neste momento, quase final de abril de 2020, não há nenhuma governança plenamente autônoma no mundo. Estamos todos sob a regência deste novo vírus que, ironicamente, tem aspecto visível de coroa, como fosse uma justificativa da natureza para tamanha expansão imperialista.

Apesar disto, muitos adeptos das teorias da conspiração não consideram o atual império do coronavírus, mas o chamam de “comunavirus”; em alusão ao regime político do primeiro epicentro da doença COVID-19, a China. De lá pra cá, houve também deslocamento no próprio sentido deste paralelo, pois o caráter “comuna” tem sido exercido “mundo afora” nos movimentos de reclusão em massa. Ou seja, a saída coletiva para a crise é, justamente, o não sair; evitando ao máximo qualquer mínima aglomeração de corpos.

Impõe-se, desta forma, um pensar coletivo e comunitário, ainda que na distância física. Com isto, países de longa tradição capitalista e liberal se veem forçados a adotar todas as medidas de Seguridade Social possíveis, sabedores do inevitável impacto econômico. Isto porque, nestes tempos pandêmicos, a ciência já constatou que é preciso estar em casa, mesmo que este ato ceife boa parte da geração de riqueza de uma nação. Neste contexto, em que ainda se trata de uma nova enfermidade, a prevenção torna-se a única saída para evitar o incremento de uma catástrofe que já está em curso.

Em nosso caso, o que acontece “mundo afora” é, infelizmente, uma expressão literal. Nosso país ainda vive um momento vacilante em relação ao que a ciência vem constatando. Lamentavelmente, aquele que deveria ser nosso chefe maior de Estado ainda está disputando a coroa com o vírus, exortando o povo a trabalhar como se não houvesse uma pandemia, mas apenas uma “gripezinha”. De forma cínica, o ex-militar promove a morte, ao minorar ou atacar todas as evidencias que o contradizem.

Como não recordar aqui a expressão que Freud evoca no texto, de 1914, “Para Introduzir o Narcisismo”: His magesty, the baby! O ex-capitão presidencial parece representar bem esta etapa anterior a toda e qualquer ferida narcísica, na qual o Eu-Ideal, reinante e absoluto, atua no sentido do significado fixo que aprova (porque, de algum modo, lhe convém) sem permitir uma mínima simbolização que o conduza ao Ideal-do-Eu. Basta vermos sua declaração do dia 20 de abril, quando disse “A constituição sou eu”, seguindo o modelo estadista do rei sol Luís XIV, ao ter afirmado “O Estado sou eu”. É um ótimo sinal subjetivo quando o bebê percebe que o pé da mesa não lhe ataca, mas que ele precisa dirigir melhor seus passos. Esta noção tão mínima, aparentemente, parece estar ausente em nosso indigesto presidente, apreciador de palanques de padaria.

Aferrados a ações e enunciados tóxicos, como a postura irresponsável do presidente, muitos se afogam em águas rasas, comprando e vendendo uma falsa oposição: economia vs. vida. Forjar esta oposição é tão falso como afirmar que o brilho da lua é independente da existência do sol. Assumir o risco do contágio em massa e a decorrente implosão do sistema sanitário, argumentando que a economia deva ser priorizada, é como acreditar que a lua tenha luz própria e que não haverá escuridão se o sol se apagar. A desonestidade intelectual do presidente – que, na verdade tem seus passos orquestrados por certos abutres do mercado financeiro – não seria em si um problema catastrófico se não cooptasse, como efeito cascata, os anseios de uma parcela da população amedrontada e um empresariado que também se arroga caprichos de reinado. Estamos no país que não soltou os grilhões imaginários da escravidão, fazendo com que a retórica da casa grande se multiplique.

Esta polarização sustenta, perversamente, a renegação do momento crítico de crise sanitária em nível mundial. Deste modo, resta à economia psíquica a deriva exclusiva da pulsão de morte, esta que, por assim dizer, “alimenta” o Supereu.

A versão do Supereu chamada “Deus Mercado”, promove a derrocada do laço social, ao modo do discurso capitalista. Em 1972, na Conferência de Milão – a mesma cidade italiana que, recentemente, não quis parar e foi “parada” pelo coronavírus –, Lacan menciona a crise do discurso capitalista. Um discurso “loucamente astucioso, mas destinado a explodir”. Por andar muito rápido, se torna “insustentável (…) se consome, se consome tão bem que se consuma”. E, ainda, pensando nos destinos da própria psicanálise, aponta: “Alguma outra coisa aparecerá que, com toda certeza, deve manter a posição do semblante (…) um discurso que seria enfim verdadeiramente pestilento, totalmente dedicado ao serviço do discurso do capitalista”.O texto, em seu uso emblemático das palavras “peste/pestilento”, também nos adverte para as contaminações do discurso. Estas, provavelmente, as mais perigosas.

De 1972 para cá houve um agravo a mais no mundo ocidental, especialmente aqui no Brasil: o crescente descompromisso do discurso capitalista com a ciência. Em nosso país, os principais soldados do ataque à ciência usam as armaduras das religiosidades pentecostais. Se bem, existem aquelas comprometidas com o exercício de religação espiritual, e entre irmãos, está mais do que evidente a infestação da discursividade capitalista no seio de muitos exercícios de semblante religioso. A especialidade destes “pastores” é capturar comissões em cima das graças e desgraças de seus seguidores. Se comparados ao reino animal, estariam mais para necrófagos do que para predadores, pois suas vítimas estão longe do esplendor vital, mas sim, em franco desamparo e vulnerabilidade de todas as ordens.

Há alguns dias circula um vídeo no qual uma pastora exorta seus fieis da seguinte forma: “Vamos ser abençoados pelo governo através desta epidemia, né? Desta luta que a gente está passando. (…) Pague o dízimo de tudo que você receber agora do governo. (…) O Senhor está usando o nosso presidente pra nos abençoar, então, é a hora de abrir as mãos pra casa do Senhor”. Trata-se do auxilio emergencial que, longe de ser uma benção presidencial, foi conquistado à duras penas em uma rara articulação entre nossos parlamentares. A transcrição aponta a um escândalo maior, quando se nota a enunciação, via escoamento da linguagem, quer dizer, aquilo que transborda fazendo o inconsciente falar: “abençoados pelo governo através desta epidemia”. Como não vincular esta opressão religiosa à necropolítica estatal?

Nas roupagens do pentecostes, a avidez de consumo enlaça o sujeito no suposto domínio do capital em troca do sacrifício do mesmo (por exemplo, com estes dízimos abusivos) e na conduta acéfala de corpos que só reproduzem um pensamento previamente pensado. Espalham-se suas discursividades naquilo que escorre e ressoa para além dos cultos, na velocidade da internet. Sabemos que a base eleitoral do atual governo está recheada destes pastores destas ditas igrejas que já não disfarçam tanto os ares de negócio que têm. Por isso, tantos pastores não se furtam ao âmbito empresarial e político.

Recentemente, Vladimir Safatle, seguindo a expressão de Paul Virilio, propunha uma análise de nosso país e momento político como o “Estado Suicidário”. Nesta análise relembra o preceito freudiano de que a satisfação libidinal – com Lacan podemos dizer gozo – está presente inclusive nos momentos de autodestruição. Diz Safatle:

 

“Engana-se quem acredita que isto é apenas a já tradicional figura do necroestado nacional. Caminhamos para além da temática necropolítica do Estado como gestor da morte e do desaparecimento. Um Estado como o nosso não é apenas o gestor da morte. Ele é o ator contínuo de sua própria catástrofe, ele é o cultivador de sua própria explosão. Para ser mais preciso, ele é a mistura da administração da morte de setores de sua própria população e do flerte contínuo e arriscado com sua própria destruição. O fim da Nova República terminará em um macabro ritual de emergência de uma nova forma de violência estatal e de rituais periódicos de destruição de corpos.”

 

Não estamos seguros quanto ao final da Nova República, mas é bem verdade que o alerta de Safatle nos serve de “chacoalhão”. A atuação do presidente nos coloca diante de uma patética encenação ampliada da atuação do Supereu. Como sabemos este, incessantemente, grita: “Goza!”, mas um intervalo sempre tem a chance de promover a pergunta da ordem do desejo. A alternância gozo-angústia-desejo forma assim certo balancecom o qual é possível operar, inclusive analiticamente. Outra coisa é o promovido pelo discurso capitalista: um gozar do objeto “acima de tudo” que, na melhor das hipóteses, promove culpa e mortificação: outras faces de um mesmo gozo.

Como resistir a tamanha velocidade e voracidade? Como não cair na armadilha de nossa própria urgência e tornar a psicanálise dedicada ao proposto pelo discurso capitalista? Logo agora! Como assumir e dignificar o luto pelo que já perdemos?

Como psicanalistas estas são perguntas que precisaremos fazer e refazer cotidianamente – e, mais ainda, vigilantemente. Como sociedade pró-vida(absurdo ter que dizê-lo!) estamos todos como Antígona, em plena desobediência de um Creonte ainda mais nefasto. Um Creonte que quer nos convencer de que nada nos irmana, de que a morte pode ser plenamente traduzida em números, de que os velhos e sua riqueza de sabedoria não importam nada. Antígona é a heroína que põe a vida em jogo pelo direito ao funeral do irmão Polinice. Conforme Lacan (1959-60) retoma no Seminário sobre a Ética, a batalha de Antígona só tem lugar por causa da linguagem.

Em boa parte, é a linguagem que faz com que sintamos a dor dos irmãos do Equador, por exemplo. Estes não têm podido enterrar seus entes, que apodrecem nas ruas. Outros tantos, de inúmeras nacionalidades, não conseguem ouvir as últimas palavras de seus familiares. Ambas situações que se avizinham do Brasil, se é que já não estão ocorrendo. Não há certeza maior de que todos vamos morrer, mas todos queremos alojar a morte o mais próximo possível do terreno da linguagem. É para isto que servem os rituais e os funerais. Ou seja, como sociedade, estamos travando uma luta pelo direito ao luto.

De todos os modos, a marcha fascista-necropolítica-suicidárianos recoloca um desafio em relação à linguagem. Um desafio que estávamos bastante confortáveis em evitar ou mesmo supondo-o como superado. Trata-se da temática da verdade. É parte da tradição psicanalítica sempre tomar cuidado com “A Verdade”, sobretudo pelo empuxo totalitarista que pode ter o seu apelo. Freud sustentou a importância de considerar a realidade psíquica do paciente, sem a busca extremada da verdade factual. Por sua vez, Lacan emparelhou a irrupção da verdade, com sua estrutura de ficção, com o próprio surgimento do sujeito do inconsciente, pelas “metades”. Contudo, isto tem sua razão de ser napraxispsicanalítica, quer dizer, na transferência, na medida em que o sujeito – ancorado em um discurso – fala estabelecendo um vínculo, uma história.

Entretanto, se o psicanalista se vê como um pensador da cultura, não será possível recuar diante dos desafios que o fenômeno da pós-verdade colocam. E aqui, lamentavelmente, nos reencontramos com a citação de Lacan sobre algo a surgir“verdadeiramente pestilento, totalmente dedicado ao serviço do discurso do capitalista”.

O fenômeno da pós-verdade, materializado na torrente diária de fake newsque assolam o mundo, serve como uma luva à mão do discurso capitalista, pois, gerando medo e polarização, rompe com os vínculos, em outras palavras, com o laço social. A pós-verdade não permite revisões e relativizações como, por exemplo, o discurso da ciência; que tem por característica o revisionismo e a quebra de paradigmas. A pós-verdade está pret à porter, e serve para consumo rápido. Não é por acaso que o discurso capitalista vem abandonando a ciência. O consumo proveniente da ciência requer tempo e convencimento ou, ao menos, uma autoridade tradicional no assunto. Até mesmo os laboratórios farmacêuticos se utilizam deste abandono. Basta observar o frenesicom a hidroxicloroquina que, apesar das controvérsias contra seu uso em pacientes com COVID-19, está sendo vendida como água. Este sucesso em vendas não é mérito da ciência, mas, ao contrário, é fruto de altas doses de polêmica e fake news.

Asfake newsque compõem o atual fenômeno da pós-verdade colocam a informação e o conhecimento como estatuto de objeto de consumo. Steve Bannon nos mostrou que estas mentiras estão longe de ser “falta do que fazer”, mas trata-se sim de um negócio bastante lucrativo. Estimulado pelos bots, o indivíduo adere à verdade que está na moda em sua bolha ou que melhor lhe convém ideologicamente. Acoplado a este tipo de “tese” rompe violentamente com qualquer evidência que aponte noutra direção. Aqui a demonização da ciência, a conjuração do nome de Deus e o fanatismo religioso são as peças chaves para a ruptura do laço social. A partir de então, não importa o dizer e nem a sua fonte. Se a fonte emitir uma informação verdadeira, porém desagradável, por exemplo, aos supostos “olhos de Deus”, esta não será consumida. Neste vórtice, o individuo não se importa com os documentos do historiador, os experimentos dos cientistas, os dados dos estatísticos, as imagens do satélite, etc. O indivíduo fora do laço social, na ciranda veloz de consumo, escolhe a verdade que mais convém ao seu deleite gozoso.

Entretanto, também há riscos para os defensores das fontes fidedignas. Pois, mesmo estando com a verdade factual, é fácil colecionar e promover a barbárie ao tentar combatê-la. O escândalo, infelizmente, também é uma forma de consumo. E, quem adere à pós-verdade contida nas fake news, combativamente ou não, observa que elas geram um estranho efeito semelhante à adição: não importa se proferiu racismo, machismo, homofobia, ode à tortura ou se exortou as pessoas a exporem suas vidas durante uma pandemia. O vício pede mais. Diante disto, a denúncia das fake newsnos coloca em um limite tênue e tenso entre repúdio e consumo, entre se intoxicar ou entrar na viagem.

Ao que parece, o laço da psicanálise com o seu tempo terá que ir além de apontar o mal-estar, pois isto apenas faz ressoar ainda mais este sintoma social e promove mais cronificação do consumo da pós-verdade. Para ir além, é preciso atuar no sentido da restauração deste laço, ou seja, do próprio pacto civilizatório. Teremos que abandonar nosso “auto-proselitismo” e um insistente elitismo intelectual que só nos distancia. Com isto, precisaremos retomar algo que psicanalistas que atendem crianças sabem “na carne”: não há subjetividade fora do laço, quer seja social ou transferencial.

Em 1917, no final da Primeira Grande Guerra, Freud nos mostrou que o luto ia além da ritualística da despedida de nossos entes, mas que, sobretudo, perfaz um processo doloroso e, ao mesmo tempo, necessário de constituição de uma perda. Constituir uma perda é constituir uma memória e, a partir desta, alguma chance de não repetir. Como sociedade, estamos lutando para tramitar o luto, pois a pandemia já nos colocou inúmeras perdas. Precisamos atuar em consonância com outros tantos atores sociais e auxiliar no reestabelecimento do laço que nos permita chorar estas perdas, sem melancolia, mas dignamente.

Muitos dizem que é uma batalha de linguagens, mas, abater a influência dos que estão querendo matar ou, maliciosamente, “deixar morrer” requer que possamos construir pontes e não muros de linguagem. Neste sentido, o laço da psicanálise com a arte ainda tem muito a oferecer. Até mesmo os cientistas já perceberam. Tanto é assim que o Comitê Científico de enfrentamento ao COVID-19, formado pelo Consórcio dos governadores do Nordeste, chamou artistas para compor a sua equipe multidisciplinar. Mais do que “leitores do laço” estamos diante da necessidade premente de (re)constituí-lo.

 

Referencias

Freud, S. (1914). Introducción al narcisismo. In: Obras Completas –Tomo II. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2003.

Freud, S. (1917). Duelo y Melancolía. In: Obras Completas –Tomo II. Madrid: Editorial Biblioteca Nueva, 2003.

Lacan, J. (1959-1960). El Seminario – Libro 7: la ética del psicoanálisis. Buenos Aires: Editorial Paidós, 2013.

Lacan, J. (1972) Do Discurso Psicanalítico – Conferência de 12 de maio de 1972 em Milão (Trad. Felgueiras, S. R.) Recuperado em: http://lacanempdf.blogspot.com/2017/07/do-discurso-psicanalitico-conferencia.html

Safatle, V. (2020) Bem-vindo ao Estado suicidário. São Paulo: n-1 edições.

Sofocles. Antígona(Trad. Schüler, D.). Porto Alegre: L&PM, 2019.

 

[i]Agradecimento especial pela interlocução e revisão do psicanalista André Oliveira Costa.

[ii]Priscilla Machado de Souza é psicanalista. Psicóloga (UFRGS), Especialista em Atendimento Clínico (UFRGS) e Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS). Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). priscillamdesouza@gmail.com