Você sai da peça de teatro que é parte do Festival Santiago a Mil e atravessa a barreira de telhas metálicas erguida para tentar proteger o edifício das manifestações dos últimos meses. Quatro rapazes com coletes amarelos detêm os carros da avenida que você cruza enquanto outros dois acenam para que os veículos da rua transversal comecem a passar, rápidos; você se surpreende com a alegria e a ordenação quase orgânica deste balé improvisado pelos populares em substituição aos semáforos arrebentados nos protestos. Eles não pedem dinheiro a você, pedestre, mas apenas aos motoristas. Você percebe que estão eufóricos de comandar com seus corpos a lei do trânsito em um dos principais cruzamentos da cidade e se pergunta se este arranjo espontâneo poderia ser o modelo para a gestão conjunta e inclusiva de todo um país. Do outro lado da ponte você se aproxima de um ajuntamento de pessoas que olham todas na mesma direção, assistindo ao que se passa no fim da quadra, e percebe confusamente que o veículo lançador de águas, apelidado Guanaco como os animais andinos, avança pesado diante de pessoas que se movem com estranha leveza, traçando com seus corpos uma coreografia complexa na qual se distingue, por momentos, o gesto de lançamento de peso no atletismo. Um rapaz com a blusa branca tornada capuz corre em sua direção e você se dá conta de que tem uma grande pedra nas mãos e grita para um homem mais baixo e gordinho que tenta fugir assustado; você corre também e foge para a lateral enquanto grita confusamente algo contra a violência. Na esquina seguinte já está a praça Itália, agora renomeada praça Dignidade; nela toca uma banda de música diante da qual um jovem se move como um maestro, mas em vez de baqueta empunha uma bela bandeira mapuche. Em volta, pessoas cantam e tomam cerveja em lata, como no carnaval. Você pergunta a uma moça o que estão cantando e ela responde que aqui cada um inventa suas letras; só então você consegue distinguir, na massa confusa de sons, a frase “eles são assassinos”. Apenas parte das pessoas olha para frente, para a esquina na qual o chuvisco em volta dos fortes jatos de água brilha com o sol oblíquo. Você pensa que elas – e você – não são apenas espectadores dessa ópera que se repete todo fim de tarde há semanas, mas parte da cena de batalha entre jovens e policiais que deixou de ser luta efetiva para se tornar uma espécie de ritual no qual algo se purga e, você espera, se elabora socialmente. Na linha lateral da perspectiva deste palco grandioso distinguem-se de repente algumas pessoas encapuzadas que desfazem a golpes de picareta a superfície da calçada (para obter pedras a serem lançadas contra os policiais, lhe dirão mais tarde, mas isso não afastará a sensação de gratuidade ou de pura encenação que lhe suscitou naquele momento). Você lembra que em seu país grandes manifestações populares acabavam há alguns anos em quebradeira e a violência de alguns – talvez reforçada por agentes infiltrados, talvez fomentada como estratégia explícita por outros – justificaram a criminalização e ajudaram a distorcer as verdadeiras reivindicações populares por educação e saúde. Você recua quando começa a sentir olhos e garganta arderem sob efeito de gás lacrimogêneo, enquanto os vendedores ambulantes de água e bandeiras permanecem impassíveis. Uma ambulância atravessa a cena com suas sirenes e, ao passar ao lado da banda, acompanha com a buzina o ritmo da música.
Santiago vive hoje um momento crucial da “explosão social” (o chamado estallido social) iniciada há 3 meses. O anúncio do aumento de 30 pesos na passagem de metrô foi o estopim para grandes manifestações como a de 25 de outubro, que juntou quase 1,2 milhão de pessoas em uma cidade que conta aproximadamente com 6 milhões de habitantes. Mas não se trata de 30 centavos e sim de 30 anos, como afirma um dos numerosos graffitis e cartazes que hoje povoam a cidade. Com slogans e reividicações claras contra o funcionamento ferozmente neoliberal implantado durante a ditadura de Pinochet que se encerrou em 1990, os chilenos foram às ruas por aposentadorias mais justas, por saúde e educação públicas e de qualidade – em suma, pela redução da desigualdade que só se acentuou enquanto o PIB do país crescia 748% até 2017. “Isso é por você, mamãe”, dizia um dos cartazes mais tocantes vistos nos protestos. As pautas feministas estão também vigorosamente presentes, com slogans como “o estado opressor é um macho estuprador”, na canção criada pelo coletivo Las Tesis, de Valparaíso, entoada com a coreografia que a acompanha por centenas de chilenas vendadas, e em seguida replicada por mulheres em várias cidades pelo mundo. Outra importante causa defendida nos protestos é a dos povos indígenas, cuja luta por direitos e autonomia vinha sendo violentamente reprimida pelo estado nos últimos tempos, em tensão crescente que atingiu seu auge com o assassinato do militante mapuche Camilo Catrillanca pela polícia, em fins de 2018.
Uma palavra de ordem resume o que querem hoje os chilenos: Dignidad.
Os protestos se espalharam pelo país, geraram greves e foram a ocasião para o saqueamento de lojas, depredação e incêndio de estações de metrô e diversos prédios públicos e privados, incluindo igrejas e hotéis. O presidente Sebastián Piñera chegou a decretar Estado de Emergência, levando os militares às ruas e instaurando toque de recolher, mas recuou alguns dias depois, deixando para a polícia a violenta repressão que gerou milhares de detenções, denúncias de tortura e estupro, pelo menos 5 mortos e milhares de feridos. Consta que 358 pessoas tiveram trauma ocular por bala de borracha, e muitas perderam a visão de ao menos um dos olhos. Não é raro ver nas ruas jovens com bandagens ou tapa-olhos.
As manifestações arrefeceram com as festas de fim de ano e as férias escolares, mas em Santiago e Valparaíso continuam acontecendo diariamente em áreas e horários bem definidos, demonstrando sem dúvida a resistência de alguns setores da sociedade a se resignarem às medidas até agora tomadas pelo governo, nas quais destacam-se um pequeno aumento no valor das aposentadorias, o corte provisório de 50% do valor dos salários dos parlamentares e a realização de um plebiscito em abril para decidir se uma nova constituição será elaborada e, em caso positivo, se a assembleia constituinte contará com a participação dos atuais parlamentares ou será integralmente eleita.
Na capital, os protestos seguem hoje o curioso roteiro que tentei narrar no início deste ensaio, trazendo pequenas variações ao longo da semana e recebendo mais participantes nas noites de sexta-feira. Assiste-se assim a uma espécie de normalização da crise que eventualmente pode apontar para maneiras interessantes de gerenciamento popular, como me parece o caso dos rapazes que alegremente exercem a função de organização do trânsito. Mas também vive-se uma certa banalização dos protestos, que não alteraram seu script enquanto o parlamento recusava, há alguns dias, a revisão da lei de privatização da água – uma das pautas ecológicas e econômicas mais importantes para os chilenos –, e aprovava a criminalização de atos como obstrução de vias públicas e saqueamentos. Além disso, a repetição quase teatral do conflito entre manifestantes e policiais traz o risco de que narrativas criminalizadoras acabem por diminuir a legitimidade das revindicações aos olhos de parte da população, e possam assim favorecer uma reação por parte da direita mais conservadora nos costumes e ultraliberal na economia.
Boa parte das pessoas com quem pude conversar em minha estada de alguns dias em Santiago e Valparaíso fala em sua vivência do estallido no passado, apesar de acreditar que em março as manifestações voltarão a reunir muita gente. Para todos algo de novo e emocionante se passou. A simples presença das pessoas a caminhar nas ruas formando uma massa, devido à precariedade do funcionamento de transportes públicos durante alguns dias, inaugurava a sensação de fazer parte de algo maior que não se sabia bem o que era, além de trazer uma espécie de suspensão da vida pós-moderna com seus compromissos e horários. Surgia uma felicidade em relação ao espaço do coletivo e ao alargamento das possibilidades de conexão e compartilhamento com o outro. À noite, mesmo em bairros que não são tidos como “de esquerda”, os moradores punham seus alto-falantes na varanda e tocavam a conhecida canção El derecho de vivir en paz, composta por Victor Jara em 1971. Essa música parecia então tomar outro significado que não o da antiga briga entre direita e esquerda na época da resistência à ditadura, me disse uma jovem. Outra contou a alegria de encontrar em uma noite sob toque de recolher os vizinhos que mal conhecia, e poderem conversar, todos de caçarolas em punho para um panelaço. Outra, ainda, falou da prática da carona que surgiu nas ruas, e de uma espécie de confiança e de solidariedade inéditas, surgindo espontaneamente entre as pessoas. A atmosfera é de júbilo pela descoberta de uma nova forma de estar junto. Enfim mostra-se que “o prazer é político”, como diz e repete meu cartaz preferido, em várias paredes do centro.
O passo seguinte foi o de ressuscitar uma forma de associação política importante na história do país: o Cabildo. Na América Espanhola do período colonial, Cabildo era a corporação responsável pela administração municipal. Em situações extraordinárias, podiam ser convocados Cabildos Abertos, dos quais podiam participar os cidadãos, ou seja, homens de origem espanhola e proprietários de terras. Em 1810, um desses grupos tomou a iniciativa de formar uma Junta de Governo no Chile, gesto que levaria à independência do país em 1918. Em novembro e dezembro de 2019, os grupos denominados Cabildos se compuseram de pessoas reunidas por prédios, bairros, profissões etc. Tratava-se simplesmente de se juntar e falar, trocar ideias, conversar sobre o que se passava. Uma nova forma de organização política poderia – e talvez ainda possa – surgir dessas microações espalhadas por todo o país. Mas os relatos que pude obter dessa experiência até agora não dão testemunho do surgimento de pautas claras nem de estratégias concretas para uma maior participação popular nas instâncias decisórias. Quando se dá voz e valor à singularidade, rompendo a massa em sua estrutura de idealização de um líder e identificação entre os membros (como mostrava Freud), parece difícil edificar um “comum”.
O estallido chileno, como todas as manifestações ocorridas em diversos países desde a “Primavera Árabe”, parece-me hoje confrontar-se com esse desafio de inventar outras formas de representação política que possam ocupar o lugar da crítica ao sistema vigente e evitar que esta termine por beneficiar discursos de direita, como vimos acontecer no Brasil. É grande o risco de que a violência que conduz à criminalização dos protestos sirva de justificativa retórica para um “retorno à ordem”, como já se percebe em comentários como o que ouvi de um taxista de Valparaíso, cansado da baderna provocada por jovens supostamente “pagos pelos partidos de esquerda”. A expectativa de mudança da atual constituição – que põe o direito à propriedade acima de qualquer compromisso com o bem comum e o bem-estar social – e a percepção de que mesmo a direita teria enfim hoje reconhecido a necessidade de justiça social talvez desviem os chilenos da preocupação com as estratégias de reação que setores conservadores da sociedade muito provavelmente estão construindo. Se o megaempresário Piñera parece se ter dobrado à necessidade de mudanças – ao mesmo tempo em que permanece intacta sua fortuna, classificada pela revista Forbes como uma das 5 maiores do Chile –, a direita chilena está se radicalizando com o candidato José Antonio Kast, que elogia Pinochet, promete indulto a militares condenados após a ditadura e faz polêmicas declarações sem nenhum pudor – inclusive a favor de Jair Bolsonaro. Sobre os protestos em Santiago, ele postou em seu twitter no último dia 22 de janeiro imagens de um grupo de policiais recuando de pedras lançadas por manifestantes e declarou que se fosse Ministro do Interior estaria na rua, apoiando a polícia “para que nunca mais retrocedam”. E concluía, enfático: “os delinquentes estão ganhando e os chilenos estamos retraídos. Basta!”.
Conhecemos bem, em nosso país, a reviravolta paradoxal que pode fazer com que a crítica ao sistema político abra espaço para o que há de pior na política. Mas como fazer face a este perigo com propostas concretas para a construção de um modo mais participativo, digno e igualitário de fazer política? Talvez soe um pouco pretensioso, mas creio que a psicanálise – ou melhor, os psicanalistas – podem tentar contribuir para essa invenção. Isso não se daria graças a uma aplicação da teoria a questões políticas, mas sim na medida em que o desafio de pensar e praticar um tipo de laço social distinto daquele da massa é intrínseco à própria prática analítica. O dispositivo analítico traz o germe de uma laço social no qual a singularidade, em vez de ser solapada pela identificação, se transmite e constrói como relação. Neste sentido, podemos afirmar que a transferência é política. Subvertendo e superando a suposição de saber que poderia dar ao analista o lugar imaginário do líder, o trabalho analítico suscita uma lógica contrária àquela da massa, pois nela a alteridade não se aloja “nos outros”, naqueles distintos de “nós” (e piores que nós, quando não claramente ameaçadores), mas nos constitui a nós mesmos. Nós somos “nosotros”, como afirma a sabedoria da língua espanhola. E se eu é um outro (na fórmula de Rimbaud que Freud não cessa de ecoar), ou, para dizê-lo de outro modo, se o sujeito é descentrado, o hiato que o constitui é abertura para a alteridade, e deve portanto ser capaz de gerar uma estrutura distinta daquela da ilusória identidade em relação a si mesmo/a que torna possível – e vigorosa – a identificação entre “eus” na massa. Afinal, a questão que a psicanálise não deixa de carregar, ainda que latente, seria esta: como partilhar a “casa” da qual não sou “senhora”?
Ou melhor, me dou conta agora: como não partilhar uma casa da qual, de saída, não sou dona?
Essa dimensão de um comum desidentitário a ser ativado e explorado em busca de linhas de força efetivas na esfera pública aparece na última palavra de ordem inscrita nas ruas de Santiago que gostaria de citar. Revirando poeticamente a palavra “venceremos”, típica da massa, ela endereça um convite a simplesmente sermos, mas juntos: Ven-seremos.
Mas como aceitar o convite e encarná-lo ativamente, nas ruas, in loco, em ato? É claro que eu não tenho resposta para isso. Arriscarei, contudo, terminar este ensaio com uma confissão: tive muita vontade de levar algumas cadeiras de praia para a Plaza Dignidad, por volta das 19hs, e convidar amigos psicanalistas para juntos levantarmos um cartaz no qual estaria escrito algo como “aqui eu te escuto”. Aí esperaríamos, simplesmente, para ver o que aconteceria.