Devastação – Por Abrão Slavutzky

A rua Caju, no bairro Petrópolis, tem uma só quadra. Entretanto, é uma rua movimentada, pois nela está um Centro Espírita. Nos idos de oitenta do século passado, era uma modesta casa de madeira verde. Na frente da casa, na calçada, tinha duas caixas de correspondência. Numa estava escrito “cartas aos vivos”, e na outra, “cartas aos mortos”. Todo dia eu passava pela rua Caju e lá estavam as caixas chamando cartas. Imaginei um dia escrevendo uma carta a um morto… e vindo uma resposta… pela via das dúvidas, nunca coloquei carta naquela caixa. Um dia, estimulado pela ideia de carta aos mortos, escrevi uma à minha avó, a Bobe, mas não enviei. A experiência de escrever me fez bem, pois revivi o amparo que ela me dava. Cresci nos braços fortes dela, ela foi lustradora dos primeiros móveis que meu avô fez. Hoje, gostaria de escrever uma carta ao Marechal Rondon (1865-1958), pois sempre escutei que ele foi um importante sertanista e engenheiro.

“Desde criança, Marechal, escuto seu nome e vi suas fotos na Amazônia com os índios. Li sobre seu apoio à criação do Parque Nacional do Xingu e da sua defesa aos índios e à natureza. A partir das fotos e do que as professoras de História do Brasil ensinaram, nunca tive dúvidas de que as Forças Armadas também protegem os índios e a Amazônia. Mas não é que, agora, Marechal Rondon, há fotos de uma destruição acelerada da natureza. Calcula-se em um bilhão de árvores cortadas na Amazônia no último ano (considerando 1.500 árvores por hectare). A floresta perdeu 7.900km2 por causa do desmatamento ilegal (foram 987 mil campos de futebol ou, então, cinco vezes a cidade de São Paulo). Será verdade que o atual governo está destruindo boa parte da Amazônia e permitindo que os índios sejam assassinados? Marechal Rondon, será que poderia conversar com seus colegas, com a silenciosa Justiça brasileira e a grande mídia para protegerem a Amazônia como o Marechal fez? Não quero incomodar o seu justo descanso, mas sua presença está fazendo falta. Obrigado pela atenção.”

A ficção vive da imaginação, assim como o sonho, o sexo, as brincadeiras. Há um verso no Purgatório da “Divina Comédia”: “Chove dentro da alta fantasia”. Logo, a fantasia, o sonho, a imaginação, é um lugar dentro do qual chove. Precisamos tanto da imaginação como do conhecimento.  Sugiro que se conheça o filme “Ser Tão Velho Cerrado”, documentário de André D’Elia  que está disponível na rede de internet. Há uma destruição desse ecossistema assustadora. Uma destruição da natureza para beneficiar uma minoria ínfima, em prejuízo de milhões de pessoas e do clima no Cerrado. Não sei, mas é de se pensar se o País todo não está diante da maior loucura de sua História. Já li colegas psiquiatras e psicanalistas diagnosticando uma psicopatia das autoridades no seu afã de destruir e mentir que nada está ocorrendo. Torço para estar errado, torço que tudo seja só imaginação, mas receio que possa ser ainda pior na realidade.

Em tempos assim, pode ser útil uma história narrada por um jornalista português. Ele visitou a cidade de Andulo, no sul de Angola, que havia sido bombardeada por semanas. E soube que, durante o bombardeio, um jardineiro tinha cuidado de um Jardim Botânico no centro na cidade. O jornalista conversou com o jardineiro e perguntou por que havia se arriscado no meio da guerra. O homem olhou espantado para o jornalista e disse: “Não havia mais ninguém para tratar das flores. Se eu não fosse trabalhar, as plantas todas teriam morrido”.

“Quase todos os grandes heróis que conheci”, concluiu o jornalista, “eram pessoas comuns, assim como os monstros. Pessoas comuns tendem a revelar sua verdadeira alma – heroica ou monstruosa – naqueles momentos em que o Estado se distrai, colapsa ou assume um perfil totalitário.”. Imagino que um dia virão turistas ao Brasil para ver a maior devastação mundial da maior das florestas que é a Amazônia. E, então, perguntarão como foi possível matar tanto a mãe Terra bem como os índios, seus primeiros habitantes.

 

Imagem: Maloca próxima à missão católica do rio Catrimani, Roraima, filme infravermelho, 1976. Foto © Claudia Andujar. Exposição A Luta Yanomami. Claudia Andujar. Instituto Moreira Sales.