Sou psicanalista. Psicanalistas trabalham com gente. Como sabemos, gente é feita por gente. O humano se constitui em sua corporeidade e, portanto, em sua potência simbólica, a partir do cuidado dos outros humanos, em suas mais variadas dimensões. Para notá-lo, basta armar nosso olhar para uma tela como O nascimento de Macunaíma (1956), em que Tarsila do Amaral compôs uma grande roda ao redor do bebê nascente. Cores, formas, palavras, afetos vão desenhando nossos modos de alcançarmos a alegria de satisfazer nossas necessidades, tornadas desejos a partir de nossa inserção na cultura.
Esse longo processo de subjetivação requer que nos enlacemos de múltiplas formas aos outros. Há nele tanto amor quanto violência. A violência primária que nos leva a cortar madeira para acender o fogo que haverá de nos aquecer, assim como a violência que nos levará a colocar o bebê em seu berço, ainda quando ele desejaria permanecer infinitamente em nossos braços. A depender de nossa sensibilidade, seremos mais ou menos susceptíveis a essas mancadas dos outros, ao corte da madeira, à retirada da mamadeira…
Em tempos de paz, essa susceptibilidade é a matéria prima do trabalho de um psicanalista. Então acompanhamos a tessitura de narrativas que buscam ressignificar marcas traumáticas do erotismo e dos lutos vividos. Sustentamos o trabalho que permite a um sujeito renovar suas formas de responder às tensões produzidas na sua relação com o mundo. Não é pouco: é vital.
Mas acontece que, desafortunadamente, gente também é desfeita por gente. É o que testemunham os tempos de guerra e de morte vividos, tempos em que a violência transborda e a mãe joga o bebê na rua, ou a floresta é amplamente dizimada e faz noite às 3 da tarde de uma 2a feira em São Paulo. Esses tempos nos requerem muito trabalho – o trabalho de proteger a cultura contra a barbárie.
Esse trabalho de cultura nos é requerido antes de tudo como cidadãos, mas é insistentemente solicitado a cada vez que abrimos esta página em branco ou a porta de nossos consultórios, salas de aula e dos outros espaços que inventamos para simplesmente conservar a vida. O que principalmente se manifesta nesses momentos é o desalento frente aos excessos do outro em sua crueldade.
Poderíamos dizer que, no Brasil, de outubro em diante, foi crescente o retorno de um autoritarismo arcaico: no cenário político eleitoral, na vida familiar, nas relações de vizinhança ou de trabalho. Impossível não estranhar o conhecido, tornado infamiliar na grande mancada em que se fez devoto do impulso desenfreado da devastação. Impossível deixar de notar a distorção abissal entre a imagem íntegra que eventualmente compusemos de nós mesmos e seu suporte no espelho desses outros a quem já não reconhecemos.
Alergias, insônias, inapetências, infartos, manifestações psicossomáticas várias, isolamentos melancólicos, sobressaltos paranóicos atestam os limites do frágil corpo humano para metabolizar tais excessos. Cicatrizes abertas do pesadelo de vertiginosas violências históricas – tal como a que encontra representação na instalação Missão / Missões (Como construir catedrais) (1987-2019), de Cildo Meireles. Na reluzente equação matemática do artista,
Poder material (600.000 moedas de 1 centavo) + Poder espiritual (800 hóstias) = Tragédia (2.000 ossos).
Não se trata, portanto, da miséria ordinária de cada qual. E eis que, assim, nossa saúde mental passa a depender rigorosamente da constituição de corpos coletivos, dos gestos compartilhados e da generosidade de uma escuta atenta ao laço social – nas clínicas individuais ou grupais, nos consultórios privados ou de rua, nas salas de aula em que efetuamos a transmissão de nossos saberes, nas rodas de conversas que intervêm para que a palavra possa retomar seu lugar.
* Silvia Nogueira de Carvalho é psicanalista e membro do departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapietiae.
* Texto escrito em 23 de agosto de 2019
* Imagem: Missão/ Missões ( Como construir catedrais) – Cildo Meireles, 1987. Aproximadamente 600.000 moedas, 800 hóstias, 2000 ossos, 80 pedras de pavimento e tecido negro. 235 x 600 x 600 cm. Fotografia: Trudo Engels.