Ele tinha um olhar violento. Vi os corpos de duas mulheres diminuírem com a intensidade do seu olhar. Um décimo de segundo é o tempo que leva para o olho fechar e abrir novamente. A cada piscada involuntária um suspiro precipitado de alívio enchia o peito das duas mulheres. Ele encarava um casal de namoradas que aguardavam o ônibus para ir para casa. Uma das mulheres percebeu esse olhar e o homem em um prazer perverso se alimentou do medo estampado no rosto dela. O homem as perseguiu durante uma boa parte do caminho e agora, não mais no ponto de ônibus, mas na rua deserta eram quatro : as duas namoradas, o homem e o medo.
O que permite um olhar invadir um corpo?
“Desde o final do primeiro turno, o ódio tomou mais corpo. Mais corpos.” ¹ Os resultados das urnas mergulharam o país em um sentimento de horror, intensificação de angústias e de medo frente à expressão radical de forças que defendem a violência como medida para resolver suas diferenças.
Ouvi uma história nesta semana. Um casal de namoradas decidiu cruzar um caminho diferente do que fazem normalmente. Explorar novos territórios. A monotonia havia esgotado seu desejo de caminhar pelos mesmos lugares, pelas mesmas casas, pelas mesmas cores de sempre. Resistir, apesar do medo era uma tentativa, após tantos relatos pós-eleição. De mãos dadas, como normalmente estão, o casal de namoradas foi abordado por um grupo de homens, que mantinham uma pose altiva frente a elas. Para seguirem seu percurso, precisavam passar por eles. Enquanto tentavam passar, o grupo de homens gritava, dizendo que elas não poderiam ser namoradas. Em sua atitude, percebia-se uma certa ânsia para que elas os ouvissem. Então, naquele momento, as palavras afrontosas ecoaram alto: “Quando vocês experimentarem um de verdade, não vão mais precisar de um de borracha”, disse um deles, aos risos. As duas mulheres que tentavam permanecer em silêncio, para evitar dificuldades maiores, agora estavam atravessadas pelos sentimentos de impotência e de humilhação.
Em O Mal-Estar na Cultura, Freud (1930) aponta para a difícil conciliação das forças opostas que incidem em um campo comum, e indica que a inscrição de um traço civilizatório depende do pacto entre as diferenças de forças.
Disto, perguntamos: qual gesto poderia inscrever um acordo entre nossas diferenças?
Deslocar-se na Caixa Preta é o convite da exposição artística Caixa Preta localizada na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. Ela faz menção aos acidentes aeronáuticos, destacando a caixa primordial, fonte de informações, elemento sobrevivente dos desastres, onde contém os registros de tudo o que se passou durante um determinado voo. A exposição reúne algumas caixas a serem localizadas e abertas: a caixa do suicídio, a notícia do desastre como caixa dentro das caixas televisivas, o poema como caixa, os detalhes nas paredes, o som, a caixa de som, caixas à espera de contato. Cada trabalho apresenta-se como uma caixa singular, inscrita em um campo comum, a grande caixa, um andar em caixas (por abrir) no museu. As interferências de sons que se misturam em algumas das instalações televisivas provocam um certo ruído na escuta, borrando o sentido preciso das informações faladas. Na TV, as vozes se misturam com sons do acidente.
Podemos imaginar a urna eletrônica como uma grande caixa preta, portadora dos registros individuais. Na máquina de votação, estão inscritas nossas intenções, os números em forma de opinião eleitoral.
Após o primeiro turno, abrem-se os votos. Transitamos com as caixas abertas. Do voto individual, o efeito coletivo. Acompanhamos nosso desastre. A pergunta insiste: qual gesto poderia inscrever um acordo entre nossas diferenças?
Em uma Caixa-Preta, localizada ao lado da caixa que contém William Bonner e Renata Vasconcellos no museu, é possível escutar uma direção, na voz de Marília Garcia que assume o seguinte gesto, poema-áudio² Estrelas descem à terra (do que falamos quando falamos de uma hélice) :
quando vi a hélice
na semana passada
me lembrei de uma pergunta
que um amigo tinha me feito
na véspera da viagem
ele se referia a um poema em que eu contava
que não tinha conseguido embarcar num voo
porque meu passaporte estava quase vencido
ele fez a seguinte pergunta:
será que eu não estaria falando na verdade
sobre a impossibilidade de deslocar?
ao escrever eu estava sempre preocupada
com o deslocamento
tentava pensar nele não só como tema
mas como procedimento
ao escrever é possível pensar
em termos geográficos:
a gente constrói uma cartografia
e pouco a pouco vai desenhando e
descrevendo linhas
formas curvas montanhas acidentes
caminhos e superfícies
(GARCIA, M. 2017. p. 76-77)
…
em seguida
cortei a maior parte das ocorrências
da palavra “deslocamento”
mas a pergunta dele estava feita:
o que era de fato
deslocar
na linguagem?
será que eu estava deslocando
ou só falando em deslocar?
será que eu estava paralisada
como no dia da hélice
só repetindo sem parar
a necessidade de deslocar?
neste momento que vivemos
de espaços abertos e infinitos
em que o mundo está cheio de linhas cruzadas
e cabos submarinos que se deslocam
e ondas que atravessam
dos pontos mais distantes –
além dos raios muitos raios coloridos
transparentes e invisíveis
e dados sendo transmitidos com sons
e imagens
e a poeira se dispersando por todo canto
uma poeira cinza e colante
– nesse momento de superfícies abertas
como lidar com a impossibilidade
de sair do lugar?
seria mesmo o mundo
plano? ou em vez disso
uma superfície acidentada
cheia de barreiras
muros comportas fronteiras
e linhas demarcadas que podem conter
o fluxo?
(GARCIA, M. 2017.p. 78-79)
Qual gesto poderia inscrever um acordo entre nossas diferenças, de modo que nossas diferenças possam deslocar, possam sair do lugar?
O voto é individual.
O efeito do voto é coletivo.
A vida é importante.
Mãos dadas.
Vamos tentar?
#_ _ _ _ _ _.
Nota
¹ Ilana Katz, citada em O ódio deitou no meu divã, de Eliane Brum.
² Trecho transcrito do poema Estrelas descem à terra (do que falamos quando falamos de uma hélice) do livro Câmera Lenta, de Marília Garcia.
Referências
BRUM, Eliane. O ódio deitou no meu divã. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/10/politica/1539207771_563062.html?id_externo_rsoc=FB_CC . Acesso em 11 de outubro de 2018.
FREUD, Sigmund. (1930). O Mal-Estar na Cultura. Trad. Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010.
GARCIA, Marília. Estrelas descem à terra (do que falamos quando falamos de uma hélice). In:__ Câmera Lenta. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
LUCAS, Juan. El rizoma de Gilles Deleuze y Félix Guattari. Disponível em: https://revistaliterariamonolito.com/ensayo-el-rizoma-de-gilles-deleuze-y-felix-guattari-por-juan-lucas/ . Acesso em 16 de outubro de 2018.
SOUZA, Bernardo José de; STERZI, Eduardo; BRENNER, Fernanda; STIGGER, Veronica. (curadoria). Caixa Preta. Exposição artística na Fundação Iberê Camargo, Porto Alegre, RS, 2018.
#juntassomosgigantes. Foto: reprodução internet. Disponível em https://deskgram.net/explore/tags/JuntasSomosGigantes . Acesso 17 de outubro de 2018.
Lisiane Leffa: trabalha em um campo interdisciplinar de reflexão acerca da relação sujeito e cultura, articulando-se com a Psicanálise, nas expressões clínicas, artísticas, políticas e literárias. Mestranda PPG Psicanálise: Clínica e Cultura/UFRGS e consultório particular.
Marcella Milano: graduanda em Psicologia (UniRitter), bolsista no projeto de extensão projeto “Virgínias: máscaras da deformação” (UniRitter) e estagiária em Psicologia Clínica (Instituto Wilfred Bion); pesquisadora autônoma de operadores psicanalíticos, políticos e artísticos.
Ana Céris dos Santos: formanda em Psicologia (UniRitter), militante de movimentos comunitários. Mãe e amante da liberdade.
Samantha Medeiros: formanda em Psicologia (UniRitter) e bolsista voluntária no projeto de extensão “Virgínias: máscaras da deformação” (UniRitter). Pesquisadora autônoma dos conceitos de gênero, sexualidade e política.
Itanara Giuliano: graduanda em Psicologia (UniRitter) e bolsista voluntária no projeto de extensão “Virgínias: máscaras da deformação” (UniRitter). Pesquisadora autônoma dos atravessamentos institucionais nos processos de subjetivação da construção do feminino, loucura, lesbianidade e feminismos.