“Não sabemos por que
determinadas coisas nos tocam.
É verdade, adoro os vermelhos, os azuis,
os amarelos, a gordura da carne.
Somos carne, não é mesmo?
Quando vou ao açougue,
acho sempre surpreendente não estar ali,
no lugar dos nacos de carne.
E depois há um verso de Ésquilo que me obceca:
‘O cheiro do sangue humano
não desgruda seus olhos de mim’”
Francis Bacon
Relutei por bastante tempo em utilizar-me de uma introdução sobre minha profissão como algo a priori para meu pensamento e meu trabalho, até dar-me conta da importância desta experiência não só para meu fazer artístico quanto para meu pensamento e visão sobre as mais diversas questões. Portanto, após esta introdução de Francis Bacon, que logo tomará outra significação em relação à minha atividade profissional, eu decidi partir de meu ofício para pensar esta fala.
Eu trabalho, essencialmente, com a morte. Especificamente, com a morte violenta, e com o seu registro e representação. Desde 2009 eu sou Fotógrafo Criminalístico do Estado do Rio Grande do Sul, trabalhando quase exclusivamente em cenas de crime com morte violenta como homicídios, suicídios e acidentes de trânsito. Eu disse que a citação do Bacon ia tomar outra significação após eu dizer qual minha profissão, não?
Mas este é apenas o ponto de partida para que eu possa trazer o que proponho hoje. A pergunta óbvia que vem à mente é: como isso pode se relacionar à Utopia? Prometo chegar lá!
Estar presente nos locais onde ocorreram as mortes, com o cadáver ainda presente e intocado, com toda configuração do ambiente (rastros, evidências, familiares em luto, observadores curiosos, policiais e imprensa) me fez refletir sobre como encaramos a violência fatal. Tudo isso parecia outra realidade, e o cenário contribuía: a maioria massiva das ocorrências dava-se nas periferias e em comunidades de alto nível de vulnerabilidade social – maior até do que eu poderia imaginar. Mesmo sendo relatado explicitamente em jornais e programas televisivos, o acontecimento parecia ser irrelevante aos olhos da sociedade no geral. Como, mesmo vendo isto tudo através da mídia, eu não o enxergava?
O sociólogo ZygmuntBauman vê a mortalidade e a busca pela imortalidade como algo que move toda cultura humana: arte, ciência, política, bem como as relações humanas. “Se a morte algum dia fosse derrotada, não haveria mais sentido em todas aquelas coisas que eles laboriosamente juntam, a fim de injetar algum propósito em sua vida absurdamente breve” (BAUMAN, 1998, p.191).
Em nossa sociedade contemporânea o papel da morte fica cada vez mais oculto, apesar da ampla presença da violência e da morte nas imagens que nos cercam. A morte foi reificada[1]e espetacularizada[2]:
Mídia aparece menos como um veículo do que como sistemas auto referenciais, o que parece nos marginalizar na ponta receptora. A transmissão é mais espetacular do que aquilo que ela transmite. E, ainda, a história das imagens nos ensina a não abandonar nossas visões do como as imagens funcionam. (BELTING, 2005, p.313, tradução nossa)
Bauman nos traz para pensar essa questão o filósofo Balandier:
A morte se torna banal pela proliferação de imagens; ela se insinua, surge e então desaparece. Anteriormente a morte dava a ver a natureza de um espetáculo edificante. (…) Hoje, ela se tornou um momento midiático, um evento que libera uma emoção fugaz, logo enfraquecida pelo “pouco de realidade” (peu de réalité) daqueles que a observam. Essa onipresença imagética, pela qual a morte se banaliza, tem função de exorcismo; ela se revela e desaparece no mesmo movimento, já que trata-se de uma morte externa e distante, aquela dos outros. (BALANDIER, 1994, p.110-111, apud BAUMAN, 1997, p.198-199, tradução nossa)
Nosso consumo de imagens é maior do que nunca, porém, nossa relação com a imagem dos mortos é totalmente diferente. As imagens da morte – em sua grande maioria, propagadas em tabloides e programas policiais sensacionalistas de televisão – reforçam a marginalização dos vitimados. A exclusão social repete-se, ou aprofunda-se, com a morte. A função das imagens dos mortos mudou radicalmente; “A experiência de imagens naqueles tempos estava ligada a rituais como o culto dos mortos, através do qual os mortos eram reintegrados na comunidade dos vivos” (BELTING, 2005, p.307, tradução nossa). Ou seja: a função destas imagens passou de integradora para segregadora.
Nietzsche trata da morte e da mortalidade do homem utilizando a mitologia grega, em O Nascimento da Tragédia, quando Sileno fala para Midas:
Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer. (NIETZSCHE, 2007, p. 36)
Aproximamos, aqui, Bauman de Nietzsche, pensando que o terror da verdade (a inevitabilidade da morte, foi o que inspirou o povo grego em suas mitologias, bem como nas artes, que é o que Bauman nos diz quando traz a mortalidade e a busca pela imortalidade como a força motriz da cultura humana.
Analisando todo contexto de nossa realidade atual, tanto local, quanto nacional e internacional, em seus diversos aspectos (social, econômico, etc), não precisamos de muito esforço para enxergar características distópicas em nossa sociedade. Eu arrisco dizer que já vivemos em uma realidade distópica, e talvez seja difícil não pensar assim a partir do lugar de onde vejo. A proposta que o professor Edson nos trouxe no começo desse semestre (2017/2) sobre a Utopia, em um primeiro momento, me pareceu muito distante de qualquer relação com meu objeto de pesquisa e com minha poética visual. E eu não poderia estar mais enganado! Para minha sorte, minha orientadora – além de amiga e mestra – com muita perspicácia sugeriu-me que cursasse esta cadeira que nos traz a este seminário.
Continuo, confesso, ainda pensando no que é a Utopia. Buscando, mais uma vez, outros que possam me ajudar a ver estas relações, deparei-me com esta definição de Jameson (1991):
Utopia é uma matéria espacial que pode ser pensada para conhecer uma mudança potencial nos ensejos de uma cultura tão espacializada como a pós-moderna; mas se esta última é desistoricizada e desistoricizante como eu às vezes sugiro aqui, a corrente sináptica que poderia levar o impulso Utopiano para expressão tornar-se mais difícil de ser localizada.
Representações Utopianas tiveram um retorno extraordinário nos 1960s; se o Pós-modernismo é o substituto para os anos 60 e a compensação por sua falha política, a questão da Utopia parece um teste crucial do que restou de nossa capacidade de imaginar qualquer mudança. (…) Em qualquer medida, Utopiano, no Pós-modernismo do primeiro mundo, se tornou uma poderosa palavra política da esquerda ao invés de sua negação. (JAMESON,F. 1991. Pós-modernismo ou a lógica cultural do capitalismo tardio, introdução)
A imagem da utopia como este espaço de potência para a mudança, em oposição a uma distante ilha idealista em um local desconhecido, é muito forte. Finalmente pude ver que este espaço de potência para a mudança é o mesmo movimento que busco em minha poética, e que, como uma tomada de posição ou um quase manifesto, convido que façamos em nossas poéticas – sejam elas de pensamento teórico, prático, visual, musical ou literário. Este espaço a ser criado é o próprio “desvelar” da violência. Remover a camada de banalidade que media as imagens da violência e da morte é trazer novamente o terror Nitzscheano e experimentar a força motriz que impulsiona nossa cultura. Por fim, proponho encarar ativamente nossa realidade distópica como um movimento dialético necessário para a abertura do espaço utópico, tendo trazido minha busca poética visual como uma declaração de posicionamento em uma busca pela Utopia.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. 273 p.
BELTING, Hans. Image, medium, body: a new approach to iconology. Critical inquiry. Chicago, n. 31, p. 302-319, inverno 2005.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 184 p.
JAMESON, Fredric. Postmodernism, or the cultural logic of late capitalism. Durham: Duke University Press, 1991. 438 p.
Notas
[1] Conforme o desenvolvimento do termo Marxista por Georg Lukács em História e Consciência de Classe (LUKÁCS, 2003).
[2] Conforme Guy Debord em A Sociedade do Espetáculo (DEBORD, 2005).
Eduardo Monteiro é mestrando em Poéticas Visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Instituto de Artes (IA/UFRGS), Programa de Pós Graduação em Artes Visuais (https://www.ufrgs.br/ppgav/).
Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem realizado em dezembro de 2017, pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política (LAPPAP/UFRGS) E PPG Psicanálise: Clínica e Cultura (UFRGS).