De duas sugestões sugestão:
1) Para o melhor funcionamento da leitura, e do texto, mantenha próximo ao olhar o relógio, toda vez que aparecer no texto 00:00:00 você troca pelo horário local em que está lendo.
2) Antes de iniciar a leitura desse texto recomenda-se o seguinte exercício, para melhor acompanhar os instantes utópicos, pegar seu celular e no aplicativo do relógio adicionar as seguintes cidades: Lisboa/Portugal; Bélem (Palestina)/Cisjordânia; Cabul/Afeganistão; Bangkok/Tailância; Tokyo/Japão e Fakaofo/Ilhas de Tokelau.
… e eles entram no espaço que teu olhar envolve: The Clock (notas sobre a montagem)
Elisandro Rodrigues
00:00:00 … Instante em que se começa.
“De repente, algo aparece…” … e eles entram no espaço que teu olhar envolve…
As pessoas …
As palavras…
As imagens…
A memória de livros amontoados em cima da mesa em preparação a uma escrita …
O copo de café descartável sendo consumido pelo calor que nos mantém acordados…
Corpos que se movimentam em escuta a palavra de quem fala…
“Basta este nada. E já o pensamento experimenta o perigo” (DIDI-HUBERMAN, 2015a, p. 9).
Um problema sobre o tempo…
Um não saber o que se escreve …
Um pesquisar sobre poucas coisas escritas …
Um falar sobre a utopia como instante…
Falar sobre o tempo de agora que já é outrora….
Em uma espera de sonhos diurnos …
Em um caminhar circular que não leva ao mesmo lugar…[Só óntem hoje se deixa escrever – Maria Gabriela Llansol]
“As divisões rígidas entre o futuro e o passado desabam por si mesmas: o futuro que ainda não veio a ser torna-se visível no passado; o passado vingado, herdado, mediado e planificado torna-se visível no futuro” (BLOCH, 2005, p. 19).
São 00:00:00, e no espaço que teu olhar envolve esse, que está a falar, em um tempo recente, gastou algumas horas pensando na montagem da palavra, para não retomar a frase já feita, carregada de clichês. Montou as palavras pensando os minutos. Montou palavras para que pudessem dizer de uma experiência e uma montagem temporal. Esse que fala, pensa, que a escrita é uma montagem. Que conecta o que está distante criando nexos de sentidos para os leitores – e no caso, para esses que escutam no espaço que teu olhar envolve. E essa montagem envolve dois procedimentos: leitura e escrita, ou, conectando escrita e leitura, um escreler. Descobre que 10 linhas cabem, mais ou menos, no tempo de leitura de sessenta segundos.
A montagem é o que a palavra diz: ação de aproximação de partes separadas. Mas, as 00:00:00, essa palavra, não pode ser tomada como simples arranjamento de algo, ela possibilita a operação de outros nexos, a palavra torna-se potência. E diz da leitura daquele que entrou no espaço que o olhar envolve, as obras de Didi-Huberman, que por sua vez foi leitor da montagem em Walter Benjamin, Lacan, Freud, Foucault, Deleuze, Baudelaire, Proust, Bataille, Beckett, Kafka, Pasolini …. A montagem pode ser considerada como uma forma que pensa e que está implicada na produção da diferença. Não quer a frase já feita, quer desmontar aquilo que entra no espaço que o teu olhar envolve para remontar. Para montar é necessário desmontar.
A montagem entra no espaço que teu olhar envolve para dizer que ela é uma interrupção, onde se é possível sobrepor partes distintas, criando uma cisão no que está reunido e conectando com o que está separado, 00:00:00, como na instalação e escultura/objeto de Sandro Ka intitulada “Paisagem Comum”. Sandro utilizando o quebra-cabeça opera com uma desmontagem de uma imagem, de uma paisagem, remontando ela, utilizando múltiplas combinações, propondo uma outra montagem imagética. A montagem faz pensar, faz ver, torna possíveis as diferenças e outros nexos, ela proporciona a transgressão das fronteiras e a criação utópica de outros possíveis. Deve ser entendida como uma questão política, uma micropolítica dos vagalumes – esses pequenos lampejos de possíveis.
00:00:00 o que se quer falar é sobre a montagem temporal, sobre o instante. Didi-Huberman leitor pensa a montagem como um deslocamento, como uma descontinuidade no/do tempo e no/do pensamento. Ao desmontar o que entra no espaço que teu olhar envolve criam-se intervalos, o que era fica em suspensão, e podemos ver o tempo latejando. A montagem pode ser dessa forma, uma decantação do tempo. Ao montar produz-se choques entre as imagens, fazendo que uma terceira se produza, e isso se dá no intervalo de tempo dos instantes quaisquer. E essa imagem, por vezes, dura apenas um instante, um instante qualquer – “Eso es la imagen. La imagen es una mariposa. Una imagen es algo que vive y que sólo nos muestra su capacidad de verdad en un destello” (DIDI-HUBERMAN, 2007, s.p).
O que se mostra interessante no instante, às 00:00:00, é que ele é o mesmo, mas, ao mesmo tempo também não o é. Ao longo de uma parede estão alinhados vinte e dois relógios, em pleno funcionamento. Eles não marcam a hora de cidades espalhadas pelo mundo. Dizem de um tempo de agora 00:00:00. Mas aos poucos cada um desses vinte e dois relógios, que outrora estavam com seus ponteiros sincronizados, começam a ter outro compasso de tempo. Essa é a obra “O Tempo Passa” de Elida Tessler, inspirada no romance de Virginia Woolf. Os ponteiros que giram em círculo criando descompasso são hastes retiradas de uma antiga máquina de escrever, que, ao ser desmontada cria uma montagem temporal transformando o que era objeto de escrita em objeto de tempo. O tempo passa em instantes descompassados, como se uma agulha estivesse perfurando-o e o desarmando.
As 00:00:00, duas perguntas: É possível desmontar o tempo utilizando agulhas? É possível desmontar o tempo como quem desmonta um relógio? Utilizar uma agulha para desmontar o tempo como quem “desmonta um relógio, ou seja, como se disjunta minuciosamente as peças de um mecanismo. Enquanto isso, o relógio para de funcionar, é claro. Entretanto essa parada – die Dialektik im Stillstand – provoca um efeito de conhecimento que, de outra forma, seria impossível. Pode-se desmontar as peças de um relógio para aniquilar com o insuportável tique-taque da contagem do tempo, mas também para entender melhor como funciona, e até mesmo para consertar o relógio defeituoso. Esse é o duplo regime descrito pelo verbo desmontar: de um lado, a queda turbilhonante, de outro, o discernimento, a desconstrução estrutural” (DIDI-HUBERMAN, 2015b, p. 131).
Pensar o giro do ponteiro, o giro da agulha no toca-disco, esse circulo que leva ao mesmo lugar, mas, que sempre é outro lugar. Pode-se ficar observando o tempo passar, escoar minuto a minuto, durante um ciclo inteiro. Vinte e Quatro Horas. E cada minuto será diferente do outro. “Basta um instante ….” 00:00:00, “… para que tudo seja percebido de outro modo… o instante é o tempo, ou melhor, o entretempo dos acontecimentos” (LAPOUJADE, 2017, p. 63-64). Uma agulha pode ser um modo ou uma maneira de existência. O modo não é uma existência, mas a maneira de fazer existir, e cada existência é disparada por um gesto. O modo pensa a existência a partir dos limites ou das medidas dos seres, a maneira pensa a existência a partir do gesto. Modo limita uma potência de existir e maneira revela uma forma de existir. Isso quem comenta é Lapoujade, leitor de Étienne Souriau.
00:00:00, a Agulha pode ser um modo, ou uma maneira, de existir, mas, pode ela ser um instrumento utópico?
A agulha pode ferir…
Pode transpassar…
Pode furar…
Pode marcar a pele com desenhos e linhas …
Ela costura e entrelaça linhas …
Fixa, prende …
Produz som ao tocar a superfície do vinil …
é utilizada como orientação para ver o sentido de deslocamento no espaço…
É utilizada na medicina, para costurar, mas, também para que os fluidos – sangue ou remédio – passem pelo o corpo.
Existem vários tipos de agulhas: de plástico, de metal, de madeira, de osso. Pode ser usada a mão ou em máquinas. O Aparelho de Mudança de Via (AMV) também é chamado de agulha, é o equipamento, ou melhor, um mecanismo usado para permitir uma transição de uma linha para outra, no caso dos trens, passando de uma pista a outra.
No Instituto de Psicologia, da UFRGS em Porto Alegre, nesse exato instante – em que esse que fala e no instante em que vocês escutam -, são 00:00:00. Em Lisboa, o tempo é outro 00:00:00, e Marco, no Miradouro de Santa Luzia, observa o lento cair do dia e pensa no projeto de tese que tem que encaminhar ao seu orientador. Riham Khaled faz um gesto com o braço para lançar uma pedra, é um levante, uma ação de força utópica contra soldados israelitas, em Belém-Cisjordânia são 00:00:00. Em Cabul, 00:00:00, Mohammad Ghami está na frente de uma grande festa de casamento. Seu dedo está a um segundo de apertar o botão que colocará fim à vida de muitas pessoas. Em Bangkok 00:00:00, outro dia se anuncia nesse mesmo instante de agora, Sunan ainda está na metade de seu turno no mercado noturno de Chiang Mai. Em Tokyo 00:00:00 já é 17 de dezembro, Rinko Okamoto está na sua jornada noturna de caminhar entre os bares em procura do melhor Karaokê da cidade. Em Fakaofo, um atol da ilha de Tokelau, dependente da Nova Zelândia, o mar está calmo, Apia Afega Aukuso navega em seu pequeno barco em direção à praia. Nas areias, ainda úmidas pela maré, alguém está a acenar para ele, são 00:00:00 de 17 de dezembro, e um pensamento feliz toma conta de seu corpo – “no raiar do dia, meu filho nasceu”.
A agulha, assim como o instante, como aquilo que entra no espaço que teu olhar envolve, pode desmontar uma linha, pode desmontar um trem, pode desmontar um sentido. Na imagem o tempo é outro. O tempo é outro na imagem. “Todo o problema, em certo sentido, é um problema de uso do tempo” (BATAILLE, Méthode de méditation, 1947). 00:00:00.
Referências
BLOCH, Ernest. O Princípio Esperança (volume 1). Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Un conocimiento por el montaje. Entrevista a Pedro G. Romero. Revista Minerva, Madrid, n. 05. 2007. Disponível em: <http://www.circulobellasartes.com/revistaminerva/articulo.php?id=141>. Acesso em 08 de março de 2015.
___________. Falenas, Ensaios sobre a Aparição, 2. Lisboa: KKYM, 2015a.
___________. Diante do Tempo: história da arte e anacronismo das imagens. Trad. Vera Casa Nova, Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015b.
LAPOUJADE, David. As existências mínimas. São Paulo: n-1 edições, 2017.
Nota 1: A obra “…e eles entram no espaço que teu olhar envolve” é de Estefanía Peñafiel Loaiza. Uma investigação sobre a visibilidade, sobre a imagem que se torna visível e invisível, sobre o que vemos e o que nos olha. Imagens são dispostas sobre uma mesa luminosa e ao passar a mão sobre elas o reflexo na palma faz aparecer às imagens. Outra mão retira as imagens de cena. O que se vê, em um intervalo de tempo, em um lento movimento das mãos, esse movimento nos permite observar brevemente as imagens antes delas desaparecerem. Estefanía é leitora de Rilke, e o nome da obra provem do “Livro da Pobreza e da Morte” desse autor.
Para saber mais sobre a obra: http://soulevements.jeudepaume.org/parcours/
Nota 2: O tempo, tentando ser o mais exato possível, como a videoinstalação de Christian Marclay, “The Clock”. A obra tem duração de vinte e quatro horas, composta por fragmentos de cenas de filmes e programas de televisão que fazem referência ao horário sincronizado com o tempo real. Através da aparição (e desaparição) de relógios e falas que pontuam o tempo no horário oficial do lugar de exibição. The Clock consta com 1440 minutos retirados de centenas de filmes. Alguns temas se repetem, no ciclo do dia, embarques em ônibus, aviões e trens; consultas e encontros com hora marcada; estudantes na espera do termino da aula, ou no início da mesma; entrada e saída do trabalho. A montagem realizada por Christian dá a The Clock uma espécie de continuidade, uma cena sempre está entrando na outra, como se a narrativa continuasse, assim cada minuto conta uma micronarrativa, que por vezes se conecta em outra cena mais adiante.
Para saber mais sobre a obra:
Algumas cenas de The Clock
Aproximadamente 12:04
https://www.youtube.com/watch?v=xp4EUryS6ac
Aproximadamente 14:15
Aproximadamente 14:18/14:28
https://www.youtube.com/watch?v=BXbQw0rE5UE
Aproximadamente 15:00/15:00
Aproximadamente 15:20
Aproximadamente 22:15
Uma montagem musical
Música Rap Popcreto – Caetano Veloso
Uma montagem de uma contagem
Contagem de 100 a 1 em filmes
* Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem, realizado em em dezembro de 2017, em Porto Alegre/RS, pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política (LAPPAP/UFRGS) e pelo PPG Psicanálise: Clinica e Cultura (UFRGS)
Elisandro Rodrigues. Pedagogo; Doutorando em Educação [Unisinos]; Mestre em Saúde Coletiva [UFRGS]; com Residência em Saúde Mental Coletiva pela UFRGS/EducaSaúde; Especialista em Educação em Saúde Mental Coletiva [UFRGS]; Especialista em Tecnologias da Informação e da Comunicação Aplicadas à Educação [UFSM]. Orientador de trabalhos de conclusão de curso da Escola GHC (Residência, especializações, cursos técnicos). Técnico em Educação na Escola GHC – Grupo Hospitalar Conceição. Faz parte do Grupo de Pesquisa e Extensão da UFRGS – Geringonça [pedagogias da diferença]; Do Grupo de Pesquisa EducaSaúde – Educação e Ensino de Saúde na linha de pesquisa Educação e Politicas Públicas de Saúde; do Projeto de Pesquisa Políticas do Texto: O escrever no território da Pós-Graduação; do Projeto de Pesquisa Práticas curriculares de escrita e leitura nos anos iniciais do Ensino Fundamental e os modos de subjetivação na UNISINOS; e do Grupo de Pesquisa Ensi-g-nar Saúde, na Linha de Pesquisa Tecnologias leves em educação e saúde – Bolhas de Sabão, da Escola GHC. Possui experiência na área da Educação e Saúde Coletiva com ênfase nos seguintes temas: Educação em Saúde; Educação na Saúde; Saúde e Educação; Montagem da Escrita e do Pensamento em Educação.