Tem início uma campanha das grandes mídias contra as ocupações. Tentativas escatológicas de associar os moradores com delinquentes, bandidos, irresponsáveis bem ao modo da psicologia social do início do século XX, que pretendia associar movimentos sociais e de massa à loucura, à insanidade, à delinquência e à vileza. Gustave Le Bon, Gabriel Tarde, Macdougall foram bons exemplos de ideólogos que trabalharam, duramente, na construção de teorias que cindiam de um lado o sujeito liberal como bom e, de outro os indivíduos, quando organizados em movimentos sociais e de massa, como maus, loucos, insanos.
Questão bem mais complexa que o texto de 1921 de Sigmund Freud viria a ponderar. Texto que, de certo modo, faria a crítica desses teóricos e dessas teorias indicando que os efeitos de massa podiam ser mais bem flagrados em outros lugares: na igreja e no exército. Instituições consolidadas e valorizadas que vertebram as funções dos estados nacionais e do próprio ordenamento jurídico.
Devemos a Ernesto Laclau o encarecimento dessa análise. Em A RAZÃO POPULISTA Laclau fará uma leitura inédita e, sob muitos aspectos surpreendente, desse texto de Freud e do contexto de seu surgimento, num período em que a condenação dos movimentos populares e de massa eram a tônica. O texto de Freud estava há apenas 4 anos da Revolução Russa de 1917.
Esse debate ainda percorre todas as abordagens, midiáticas ou não, quando se se deparam com manifestações, mobilizações, insurreições e movimentos populares e de massa. Um esforço concentrado em unificar tudo e todos permeia as notícias, os comentários e os olhares. O problema da habitação é profundo e a população de rua de SP sofre desde sempre pela ausência total de prioridade, no que se refere às políticas públicas de moradia, deixando os moradores sem propriedade à mercê de edifícios em estado precário e dos oportunistas e estelionatários que controlam o acesso. Situação totalmente distinta dos movimentos sociais importantíssimos que atuam ocupando áreas ociosas, muitas vezes com dívidas milionárias de IPTU, não apenas abreviando o caminho à moradia digna, para os que não a tem, como denunciando os acordos, não raro escusos entre prefeitura e os proprietários devedores somados à negligência total ao cumprimento da função social da propriedade.
Ontem, quarta feira havia famílias inteiras no largo do Paissandu. As doações não paravam de chegar, mas havia desorganização para recebê-las e, talvez nem fossem mais necessárias. Porque o necessários e urgente era, e é, o encaminhamento daquelas famílias assustadas que, até anteontem, tinham uma casa e hoje se aboletam na pequena praça cercada com grades e rodeada por outros sem teto, moradores de rua, também com suas famílias, seus filhos e expostos aos perigos e ao barulho ensurdecedor da cidade de São Paulo.
Para dentro do gradeado alguns ex-ocupantes principiando e realizando a politização do desmoronamento, revelando com seus corpos expostos a ausência de políticas de moradia e habitação para os pobres; do lado de fora outros moradores de rua que esperam que desse surto de doações e filantropia sobre alguma coisa s para outros que também precisam de tudo.
Se um prédio no centro de SP, de propriedade da união e já condenado, era totalmente negligenciado pela prefeitura e o Estado, quem dirá sobre as pessoas que moravam dentro dele. O descaso com o imóvel nesse caso se acentua no descaso com as pessoas, cuja preocupação só vem depois.
Centenas estão lá, ainda largadas no largo do Paissandu. Mulheres, homens e crianças de todas as idades, ainda juntos após a tragédia. Todos preocupadas com o destino que terão. Muitos contam os que estão ausentes, desaparecidos e não são mencionados, outros reivindicam banheiros químicos para que alguma decência seja assegurada aos agora ocupantes do largo Paissandu. Eles aguardam a proposta da prefeitura para devolver-lhes uma casa, um lar, mas ao ocuparem o largo e recusarem a solução dos albergues, politizam a discussão, problematizam seu lugar de sujeito de direitos e revelam que estar entre a vida e a morte é uma rotina para alguns porque não lhes é garantido um lugar.
O largo do Paissandu transforma-se então em mais um não lugar dos sem lugar.
Não são bandidos, são pobres.
Lorival, que diz ter liderado o escorraçamento de Temer, fala que a reação foi espontânea porque as pessoas estão cansadas de não ter moradia, não ter emprego por causa de um governo golpista. Sim, todos moravam precária e perigosamente num prédio da União. É muita cara de pau prestar essa solidariedade suspeita.
Ficar na rua cansa, exaure, debilita. Marineide e Lorival estão preocupados com as ameaças da polícia. Temem sair de lá sem nenhum acordo e serem obrigados a voltarem para a rua com os filhos. Acham que a polícia quer retirar as famílias com criança para, estrategicamente e depois, fazer a limpeza dos “vândalos”. Ou seja dos adultos que permaneceriam no lugar resistindo. As ameaças continuam após a ruína.
Mesmo assim as crianças brincam e se divertem com o movimento de doações chegando, repórteres disparando seus flashes e curiosos que transitam. Ao fundo as escavadeiras trabalham retirando escombros numa paisagem incandescente.
Para os que foram soterrados, não há mais esperança.
Kelyane e seu companheiro Wildeglan tem cinco filhos: Maria Clara de 1ano e 2 meses, os gêmeos João e José de 8 anos, Maria Eduarda de 13 anos e Wildegleidson de 15. Todos desalojados no largo, atrás dos escombros onde as máquinas trabalham entre ferro retorcido, alvenaria calcinada e pó. A paisagem humana é indecente.
Kelyane diz que antes de tudo acontecer já tinham a informação de que a prefeitura entraria com reintegração de posse. Já estavam aflitos antes dessa tragédia que se soma a muitas outras vividas.
Os ocupantes antes do prédio, e agora do largo, não querem ir para os albergues da prefeitura, não querem se separar das respectivas famílias. Quem quereria? Todos estão cansados de saber disso: famílias que viviam juntas preferem ficar juntas. Porque insistem em generalizar essa política que não funciona para todos? Porque emulam uma solução que não existe, para se eximirem em seguida das responsabilidades que só cabem ao Estado? “Nós oferecemos (o albergue) mas eles não quiseram.”
O pressuposto que assola: Quem quase foi soterrado deveria aceitar qualquer coisa.
São agora os quase soterrados que politizam o debate sobre a moradia enquanto conseguirem permanecer no Largo do Paissandu. Como diz Lorival: “Eu vou resistir, eu vou lutar.” Mas as condições são inóspitas e as pessoas querem ir para a casa que não existe mais.
Porque insistem em massificar pessoas em risco que clamam por sua singularidade, seu espaço, seus direitos que é o que lhes conferiria sentido no porvir e a retaguarda da cidadania que lhes é cotidianamente negada?
Próximo da meia noite ainda chegavam doações de particulares, pizzas eram entregues, comida pronta era distribuída. O largo do Paissandu se alimentava de uma solidariedade dispersa, filantrópica e agitada. Um certo calor emanava dessa agitação.
Mas as famílias ali não passavam fome antes e tinham suas casas.
Em sua maioria elas só querem voltar a ter um lar onde abrigar seus pertences, repousar seus corpos e proteger suas famílias.
É pouco, mas para os que dormem ao relento desde o dia primeiro de maio, parece impossível.