“A ação não deve ser uma reação, mas uma criação”
Grafite nos muros de Paris/68
Em 20 de maio de 1968 a revista francesa “Le Nouvel Observateur” publicou uma entrevista de Jean Paul Sartre e Daniel Cohn-Bendit. Invertendo a lógica de que o jovem estudante de sociologia interrogaria o grande filósofo, o que acontece ali é justamente o contrário, é Sartre o entrevistador. É o filósofo que quer ouvir a experiência dos jovens. Esta cena diz muito do que representou o movimento de maio 68 em Paris, mudando os lugares dos protagonistas da história. Um dos pontos interessantes desta conversa diz respeito a uma reflexão de Sartre endereçada a Daniel sobre a nova forma de pensar e de fazer política. Diz Sartre: “O que muita gente não compreende é que vocês não procurem elaborar um programa, dar uma estrutura ao movimento. Acusam-no de querer “quebrar tudo”, sem saber – ou, em todo o caso, sem dizer – o que pretendem por no lugar do que vocês destroem”. Daniel em sua resposta reafirma um novo estilo de fazer política. Responde ele: “Se fundássemos um partido anunciando nossos objetivos e como atingi-los, saberiam o que iríamos fazer e poderiam encontrar um meio de deter nossa ação. A força de nosso movimento reside justamente na espontaneidade incontrolável em que se apoia, dando-lhe ela sem procurar canalizar ou utilizar em proveito próprio a ação que desencadeou”.
Estes novos horizontes de ação na vida pública abriram espaço para uma reflexão sobre a função das utopias e da estética em nossa cultura.
A Utopia de Tomas Morus, publicada em 1516, inscreveu no vocabulário da humanidade uma palavra que ao mesmo tempo significa não/lugar (u-topos) e lugar de completa felicidade . Nasceu como um novo gênero literário. Seu relato ficcional abriu caminho para o vírus do sonho, instigou a revolta contra uma realidade que se apresenta como única possível e convocou o desejo na construção de outras lógicas de vida. Morus escreve: “não renunciamos a salvar o navio na tempestade só porque não saberíamos impedir o vento de soprar”. Os jovens de 1968, dos Estados Unidos ao Japão, do México à Tchecoslováquia, do Brasil à França, não sabiam exatamente como parar a ventania da violência de Estado e do autoritarismo que impregnava a vida em todas as suas instâncias, mas queriam salvar o navio da tempestade da discriminação racial, da desigualdade, das ditaduras sangrentas e das guerras insanas como a do Vietnam. O espírito de revolta seguia a indicação de Emil Cioran em seu ensaio Historia e Utopia “uma sociedade sem utopias está condenada a esclerose e à ruína”. As estratégias de luta eram criadas em ato, sem as diretrizes de partidos políticos e sem reuniões prévias.
Em Paris, a Escola de Belas Artes era uma verdadeira usina de guerra, mas cujo armamento produzido eram cartazes, poemas, slogans que se disseminaram pelos muros de Paris e que até hoje guardamos como pequenas chamas de esperança. “Seja realista, demande o impossível”, “Faça amor e recomece”, “A poesia está na rua”, “A barricada fecha a rua mas abre a via”, “É proibido proibir”. Esta relação entre arte e política na Escola de Belas Artes de Paris dura até hoje. É no anfiteatro da Belas Artes onde acontecem as reuniões semanais do grupo ativista Act Up que, no início dos anos 90, lançou uma grande mobilização para que a sociedade francesa reconhecesse a importância da prevenção do tratamento da AIDS. Em maio de 68, a polícia se preocupava não só em conter os manifestantes como também arrancar os cartazes das paredes, pois sabiam que estas imagens eram uma das mais potentes armas da juventude. A fúria capitalista entrava em cena também com “colecionadores” recolhendo estes cartazes para negociar o “futuro”. O ateliê da escola de artes chegou a rejeitar uma oferta de 70 mil dólares oferecida por duas grandes editoras interessadas em adquirir o material para fazer uma publicação. Jean Claude Leveque, um dos estudantes de arte, reagiu na época: “A revolução não está à venda”.
Pela primeira vez, no autoritário sistema de ensino francês, os jovens ousavam desafiar os princípios conservadores das práticas pedagógicas, denunciando também o quanto isto implicava em um engessamento da vida. Estes movimentos vinham acontecendo de forma mais sistemática desde o início dos anos 60 com a luta em vários países do mundo pelos direitos civis, contra a discriminação racial e sexual. A história da segunda guerra mundial ainda continuava viva, sobretudo o silêncio de grande parte da sociedade francesa em relação à ocupação nazista. A guerra da Algeria, mesmo tendo finalizado em 1962, ainda não havia cicatrizado completamente.
Cena emblemática deste novo cenário de embate político foi o breve diálogo entre François Missoffe, ministro da Juventude e Daniel Cohn-Bendit na Universidade de Nanterre. Daniel o interpela: “Sr. Ministro, nas 300 páginas do informe sobre a juventude, não há uma só palavra sobre as questões sexuais da juventude”. O Ministro responde: “Não é de admirar, com um rosto como o seu, que tenha esses problemas: sugiro que dê um mergulho no lago”. Daniel reage: “”Ora, aí está uma resposta digna do ministro da Juventude de Hitler”. O tom desta conversa ativou a chama do movimento que estava se gestando ali em Nanterre e o mergulho no lago pegou fogo.
Assim, quando as meninas da mesma universidade, em fevereiro de 68, invadiram o dormitório masculino reivindicando igualdade de gênero e a possibilidade de dormir acompanhadas, a cultura nunca mais foi a mesma. Com a juventude tornando-se protagonista no primeiro movimento global, antes do advento da internet, ficou evidente a modificação na maneira de fazer política, onde a arte foi definitivamente incluída. Desde os cartazes, grafites até a participação ativa dos artistas nas manifestações.
Como vimos, Cultura e Política sempre estiveram próximas, mas a partir de 68 elas se enlaçaram definitivamente. No Brasil isto aconteceu de maneira singular porque vivíamos uma ditadura, então os movimentos eram de resistência e protesto. Evento emblemático: a passeata dos Cem mil, no Rio de Janeiro, logo após a morte do estudante Edson Luís. Convocada inicialmente pelos universitários e secundaristas, contou com uma linha de frente de artistas – músicos, escritores, assim como intelectuais de diversas áreas. Mesmo que no final daquele ano houvesse um acirramento da repressão com o AI-5.
Abriu-se a fresta, a semente estava lançada: exigência de pensar a política de outra maneira, incluindo a cultura em ampla escala. Porque é a cultura em sua diversidade que se encarrega de veicular o inassimilável, o resto impossível de incluir; seja o que fazemos com o lixo que produzimos, seja a forma como enterramos nossos mortos. E 50 anos depois, com todas as controvérsias, as preocupações com o ecossistema e a biodiversidade estão na pauta, assim como as questões sexuais, de gênero e o combate ao racismo. Algumas perguntas insistem: o que fazemos com nossos restos? Com o que não se apaga, se transformam, alguns até retornam. O protagonismo da juventude e sua exigência do novo nasceu ali, diminuiu nas décadas seguintes, mas renovou as energias em diversos momentos. Só para citar alguns: 2013 – os protestos contra aumento das passagens dos ônibus tomaram outras dimensões; 2017 – com as ocupações das escolas e universidades e mesmo 2018 – quando os estudantes norte-americanos vão às ruas para protestar contra o uso e abuso das armas de fogo.
Em todos estes eventos, articulações com as artes e a cultura são indissociáveis, permitindo afirmar que desconsiderar a cultura ou acentuar formas de censura é exterior à democracia, ao seu exercício cotidiano que implica discutir/conviver com as diferenças.
Hoje, não se pode mais pensar política sem arte e literatura. A política tem que ser criativa, inventar algo novo*. Mesmo que na atualidade a frustração seja grande. Georges Didi-Huberman, historiador e curador da exposição “Levantes”, nos dá um precioso exemplo tomado da mitologia grega. Os titãs Atlas e Prometeu foram derrotados e castigados pelos deuses. Entretanto fizeram a transmissão do saber e do fogo aos homens. Puderam sustentar um desejo de que a humanidade enfrentasse o peso da opressão nos tempos sombrios.
As sociedades são avaliadas em sua capacidade de produzir arte nas mais diversas formas de expressão. É uma forma de resistência à barbárie e a posição medíocre que somente vê a política como um negócio. Fernanda Torres afirmava outro dia: “um país que odeia sua cultura é um país que se odeia”. Afirmação deve ser complementada com o reconhecimento que ódio e paixão podem ser duas faces da mesma moeda e que a cultura é dinâmica, fragmentária e articuladora de restos que a própria sociedade não consegue incluir. Dando voz e visibilidade ao que de outra maneira cairia no esquecimento.
* Trabalho publicado originalmente na revista Correio da APPOA, Maio de 68 – 50 anos depois. nº 276 maio de 2018.
Sobre os autores:
Edson Luiz André de Sousa. Psicanalista, professor titular do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicanálise da UFRGS. Doutorado e pós-doutorado pela Universidade de Paris VII. Analista membro da APPOA. Pesquisador do CNPq.
Robson de Freitas Pereira. Psicanalista. Analista da APPOA.