“… Arrancar das coisas as aparências
de que mais se orgulham
Remover os ornamentos
Inteiros…”
Julia Studart
Resisti algum tempo para abrir espaço psíquico para ir ver, ouvir, mais uma violência, das muitas que são produzidas diariamente neste país. Fui então ver a entrevista da Regina Duarte ontem, dia 7 de maio, na CNN. Vi a entrevista completa de quase quarenta minutos com a certeza de que temos nas mãos mais um documento da barbárie produzida neste país.
Não podemos esquecer que Regina Duarte entrou no governo substituindo Roberto Alvim, que escandalizou o Brasil e o mundo com as referências explicitas ao nazismo. O escândalo foi tão grande que não foi possível continuar no cargo. Ao ouvir a entrevista, lembrei-me de uma fala de Boaventura de Sousa Santos, em outubro de 2015, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde disse: “CULTURA É TUDO AQUILO QUE LUTA CONTRA A BARBÁRIE”. Na sequência poderíamos dizer, invertendo a frase, que “Barbárie é tudo aquilo que luta contra a cultura”. Esta entrevista ficará registrada na história como mais um documento de barbárie. As sensações são muitas: de incrédulo a vergonha, da tristeza a revolta. Não é possível tomar este fato com algo menor diante de toda a crise que estamos atravessando. Estamos vivendo, em todos os níveis, um desmoronamento preocupante dos valores civilizatórios mais cruciais: a importância de escutar a história, a liberdade de opinião, respeito aos mortos.
Chocante ouvir de alguém que ocupa o cargo mais alto da cultura no Brasil dizer que Olavo de Carvalho é “um intelectual brasileiro que continuo respeitando”. Ao ser interrogada sobre a ausência de pronunciamento oficial sobre a morte de Morais Moreira, Rubem Fonseca, Aldir Blanc e Flavio Migliaccio, nos últimos dias, respondeu incomodada “Será que eu vou ter que virar um obituário!!!”. Ao ser cobrada pelo repórter que se tratava ali de um reconhecimento pelo trabalho que fizeram pela cultura do Brasil disse: “ O reconhecimento ou existe ou não existe, eu…, tem pessoas que eu não conheço, Aldir Blanc, eu admiro, mas eu nunca estive…(sic).” Novamente ao ser lembrada das referências feitas neste governo a torturadores disse: “Eu não quero ficar olhando para trás, tem que olhar para a frente…” e, inacreditavelmente , começou a cantar a canção que marcou um dos piores momentos da ditadura brasileira : “Pra frente Brasil, salve a seleção…”.
O repórter incomodado reagiu: “Mas foi um período muito difícil, muita gente morreu na ditadura…”. A secretária de cultura responde: “Na humanidade não para de morrer…. Se vou falar de vida do lado tem morte…” O repórter ainda insistiu : “…mas houve tortura secretária, censuras…”. E como se tudo isto não bastasse ao ouvir uma pergunta da Maitê Proença cobrando as ações da pasta da cultura para a classe artística, tirou o microfone do ouvido, ficou balançando com o desdém e a covardia de quem se recusa ao diálogo e encerrou de forma patética a entrevista. E, pasmem todos, ainda lembrou uma das imagens que trouxe em seu discurso de posse em março deste ano: “…e por falar em palhaço, como fez sucesso o pum do palhaço que citei… Olha o pum do palhaço que sai talco assim do bumbum dele…(sic)”. Não tinha assistido o discurso de posse e, incrédulo, fui conferir. Estupefato com o que vi, confirmei ser esta uma das metáforas que usa para a cultura. Sem desmerecer os palhaços e o circo que, são sim produções da cultura, a metáfora não cabe neste momento em que o pum do palhaço espalha outros cheiros, um cheiro que incomoda, que sai dos milhares de corpos enterrados em valas comuns, pois o circo nos faz rir mas sem nunca esquecer o trágico de nossa existência. Vide a obra tão atual de Chaplin, por exemplo. Que pobreza!!
Diante de tantas mortes, tanto desprezo pela vida, não podemos aceitar que a política de cultura esteja nas mãos de quem despreza a cultura, a história. Lembrei-me do texto de Robert Musil, em 1937, intitulado DA ESTUPIDEZ. Trata-se de uma conferência feita em Viena em 11 de março de 1937. Musil diferencia dois tipos de ESTUPIDEZ. Uma que ele define como honesta: “Pobre em representações e em vocabulário, não sabe muito bem como se servir dele. Prefere o banal, cuja frequência torna a assimilação mais fácil…”. A outra estupidez, eu nomearia como cruel, seria fazer um uso deliberado da argumentação no intuito de eliminar qualquer pensamento crítico em um desrespeito absoluto a diferença de opiniões e a recusa ao diálogo, fonte, portanto, de violência. Musil aproxima desta forma ESTUPIDEZ do ÓDIO, DO SADISMO E DA CRUELDADE. Segue então este breve fragmento do discurso de Robert Musil para que possamos escutar e sentir o cheiro do bafo do porão deste trópicos a deriva. Leiam com atenção esta passagem, pois ela indica nossa responsabilidade de reagir à estupidez, nosso direito a revolta, nossa recusa de continuarmos neste lugar de “presas fáceis”.
“Mas a estupidez – é uma objeção que aqui se torna inevitável – longe de apaziguar sempre, pode mesmo irritar. Para sermos sucintos, digamos que ela excita habitualmente a impaciência, mas também, em circunstâncias extraordinárias, a crueldade; e os excessos odiosos desta crueldade doentia que habitualmente se designa por sadismo, mostra muitas vezes, no papel de vítimas, os imbecis. Isso resulta evidentemente do fato de eles serem para os seres cruéis as presas mais fáceis; mas parece estar igualmente associado ao fato de que a incapacidade de resistir que emana de toda a sua pessoa excita a imaginação como o odor do sangue o animal feroz, e arrastando-o para uma espécie de deserto onde a crueldade “vai muito longe” devido ao fato, ou quase ao fato, de não esbarrar em quaisquer limites”..
Robert Musil (Da Estupidez, 1937)
Regina Duarte – Entrevista resumida em 9 minutos
Regina Duarte – entrevista completa (Documento para este tempo de trevas)