Um dos maiores intérpretes do discurso fascista, do cinismo e da ambivalência de setores da igreja católica e de outras religiões no Brasil e inspirador extraordinário do homem comum, faleceu no último dia 14/12/2016.
Dom Paulo trabalhava no limite, nas bordas, nas margens. Empurrava-as para mais além, questionava os limites herdados de tradições seculares de espoliação ao trabalhador, ao doente, ao preso, ao negro, ao torturado, ao pobre, ao ‘homem do povo’- de quem dizia estar sempre ao lado. Relembrava seu pai que o aconselhara: “ Jamais esqueça que você é filho de colono.” Nunca esqueceu.
Viveu na França, nos turbulentos anos 60, quando estudou na Sorbonne, num ambiente em que se lembrava: “todos eram contra a ditadura”. Escreveu 56 livros, ganhou mais de uma centena de prêmios, dentro e fora do Brasil, atingiu a alta hierarquia do clero e gastou tudo em seus embates contra governos ditatoriais, em seu apoio aos movimentos sociais e ao movimento dos trabalhadores. Famosas foram suas altercações com generais e assassinos do Estado brasileiro.
Nele a inspiração franciscana ganharia uma tônica poucas vezes vista. Dom Paulo figurará, certamente, como um dos maiores líderes brasileiros do século.
A missa de falecimento de Dom Paulo, na última sexta feira(16/12/2016), relembrava as tantas que celebrou no passado. Muitas não foram missas, mas atos políticos e espirituais, liturgias populares, homilias sobre a justiça e a paz numa país castigado por séculos de determinação espoliativa praticada pelas elites nacionais e multinacionais.
Pouco antes do horário previsto para o início da cerimônia, a última celebração religiosa em que Dom Paulo estaria de corpo presente, sendo velado, já podíamos observar autoridades, entre elas contumazes violadores de direitos humanos e opressores da livre manifestação. Geraldo Alckmin e Alexandre de Moraes, lado a lado, nos bancos reservados às autoridades.
Outras pessoas, fiéis que assistiram suas celebrações ou foram por ele batizadas, casadas, aconselhadas chegavam aos poucos na Catedral da Sé. Muitos religiosos: padres, freiras, bispos. Mas ainda não parecia a última missa para Dom Paulo.
Porém, pouco antes das 2 da tarde, a catedral começa a ser inundada por bandeiras de movimentos por moradia, grupos de defesa de Direitos Humanos, movimentos e associações de esquerda, membros da frente do povo da rua e, assim, a Catedral da Sé, repleta de bandeiras e movimentos sociais, se transforma subitamente na igreja de Dom Paulo, na Catedral dos que lutam pela sua mínima dignidade, e ao lado dos quais Dom Paulo esteve durante toda a sua vida.
Então, a figura sorridente de Dom Paulo ressurge e parece vivo, entre as bandeiras tremulantes dos movimentos sociais que ele tanto apoiou, inspirou e ajudou a fundar. A missa de Dom Paulo, a missa que ele merece, tem início então.
Inúmeras são as histórias sobre Dom Paulo e elas serão contadas doravante por muitos que a viveram com ele, souberam dele e com ele lutaram ombro a ombro. Sabia-se que entre os perseguidos políticos e torturados latino americanos em situação de desespero, em seus respectivos países, era comum o conselho que muitos recebiam: ‘Vá para o Brasil e procure um Bispo chamado Dom Paulo.’ Muitos sul americanos chegaram à São Paulo movidos por essa última esperança e encontravam na cúria metropolitana um grupo organizado e disposto a recebê-los. Com o apoio de Dom Paulo e do reverendo James Wright nasce o CLAMOR(Centro pelos Direitos Humanos no Cone Sul) que contava com a participação fundamental de Jan Rocha (jornalista da BBC e do The Guardian) e outros que prestavam assessoria e também davam apoio ao violados e perseguidos políticos em diversos países do cone sul.
O Bispo de São Paulo logo se tornaria referência em toda a América Latina e exemplo para o mundo. Em uma de suas últimas aparições públicas a cena em que recebe e coloca o boné do Movimento dos Sem Terra ficará para a história. Essa cena servirá para atestar de que lado ele sempre esteve e sempre estará. Coisa que não cansava de repetir e afirmar.
Em 1975 Vladimir Herzog é suicidado pela ditadura. Dom Paulo decidiu celebrar missa solene e ecumênica na Catedral da Sé em homenagem a ele. Membros da própria comunidade judaica tentaram demover o cardeal: “Por que missa para Herzog? Era judeu!”. Dom Paulo respondeu: “Jesus também.”
Em depoimento comovente do rabino Sobel, importante parceiro e amigo de Dom Paulo desde o episódio Herzog, relata em documentário produzido pela TV Cultura e dirigido e roteirizado por Helio Goldsztejn e Enéas Pereira: “os meus primeiros dois anos no Brasil eram dedicados a atividades internas da congregação. Trabalhos com jovens casais. Trabalho assim chamado pastoral. Casamentos, enterros. Com Dom Paulo eu aprendi a conhecer o outro Brasil.”
O episódio Vladimir Herzog, foi um dos marcos fundamentais na luta contra a ditadura civil-militar no Brasil. 31 de outubro de 1975 marca, com a missa ecumênica na catedral da Sé para Vlado, um processo de lutas que se alargam e se retroalimentam num ato ao mesmo tempo político, social, midiático e religioso único sob a batuta de Dom Paulo. Momento em que todas as forças republicanas foram convocadas, tendo como paradigma o assassinato de Vladimir Herzog.
O trabalho excepcional de Dom Paulo dava visibilidade a um fato flagrante, mas ainda negado e omitido: ninguém estava seguro no Brasil. Antes, em 1973, já havia presidido na mesma Catedral da Sé a “celebração da esperança” pela morte do estudante Alexandre Vannucchi Leme, assassinado pelo governo ditatorial.
Conforme o próprio Dom Paulo se recorda, antes da celebração da missa dedicada à Vladimir Herzog, veio à São Paulo o próprio Geisel que em tom de ameaça disse que caso aquela celebração fosse realizada haveria muitas mortes. Dom Paulo respondeu-lhe que em cada janela em torno da Catedral haveria um ou dois fotógrafos, preparados para identificar os autores dos disparos. Funcionou.
Já no dia da celebração, centenas de soldados do exército, armados com metralhadoras apontadas para os manifestantes, exigiam que Dom Paulo fechasse as portas da Catedral. A resposta de Dom Paulo: “Eu não fecho as portas da igreja para o povo.”
O negacionismo totalitário enfrentava um novo grande revés público de grandes proporções. A violência do Estado amparada por mentiras, cinismo e desmentidos reencontrava, uma vez mais, o obstáculo do apelo pela verdade pública e dos muitos que se erguem para promovê-la, ampará-la e protegê-la.
A perplexidade e indignação de Dom Paulo diante da extrema violência cometida pelo Estado brasileiro, se irradiava nacionalmente diante da eloquente empáfia do governo ditatorial que não cessava de proclamar: ‘podemos torturar, assassinar, perseguir e, depois, desaparecer completamente com os traços do que fizemos.’
Dom Paulo reagiu imediatamente. Foi a pulsão de vida no rastro evanescente dos atos da ditadura. O ato ecumênico para Vlado realizou seu assassinato, desfez cabalmente a falácia do suicídio e entregou Vladimir Herzog à história, arrancando-o das mãos do governo usurpador e negacionista.
Em psicanálise a transmissão inconsciente inflete, determina, define as configurações sociais vindouras. Dom Paulo evadiu-se de si para converter-se em transmissão inconsciente. Nela o sublime é entreolhado no terror; a coragem é a oportunidade que o homem comum tem de furtar-se à sua própria indiferenciação e aniquilação subjetiva e a esperança é uma experiência única, efeito da ação de estarmos juntos, sonhando uns os sonhos dos outros, como sugere Mia Couto em Terra Sonâmbula. Muitos ainda sonharão o sonho de Dom Paulo. São sonhos que alimentarão gerações.
Seu sonho: Um Brasil sem tortura, um Brasil sem ditadura. Ditaduras nunca mais. Sonho expresso à frente do projeto Brasil nunca mais realizado entre 1979 e 1985.
Impossível enumerar as grandes e pequenas coisas que Dom Paulo realizou pelo Brasil, pelos brasileiros. Seu amor pelo Brasil e pelo seu povo era sem cesuras.
Tal como o próprio Dom Paulo observou em documentário intitulado Fé e coragem: “Sempre que retornava, dos cerca de 30 países que conheci, sempre voltava mais brasileiro.”
Para nós hoje, mais do que nunca, será importante imaginar Dom Paulo dizendo a sua frase preferida: Coragem, esperança sempre! Ou senti-lo num abraço, como relembrou o rabino Sobel: “Sempre que reencontrava Dom Paulo ele me abraçava e me dizia: Coragem! Coragem!”
Quando completou 80 anos, em 2000, Dom Paulo observou que sabemos quando um golpe começa, mas não sabemos quando ele termina. Ele diria na ocasião: “Ele ainda não terminou.”
Haveremos de ter coragem, precisaremos dela, inspirados pela sua vida e por sua obra diante de um golpe que como você predisse, ainda não terminou, assim como estão longe de terminar os homens, as mulheres e as lutas erguidas contra ele.
Adeus, Dom Paulo!
Fotos da matéria: Paulo Endo