As transferências de trabalho possibilitam conversas, leituras, questionamentos que nos ajudam a enlaçar interlocuções entre a psicanálise e a cultura. Nesse sentido, escrevo algumas linhas que me levaram a pensar, ou melhor, a navegar pelas margens; pelas bordas; pelo incerto das palavras, quando o nome falta.
Nesse navegar, levo comigo a cartografia de três obras: Quando a casa queima (Giorgio Agamben), Furos no futuro: psicanálise e utopia (Edson L. A. de Sousa) e o conto Terceira margem do rio (João Guimarães Rosa).
Em Quando a casa queima, Giorgio Agamben questiona:
“Desde quando a casa queima? Desde quando está queimada? Certamente, há um século, entre 1914 e 1918, algo aconteceu na Europa que lançou nas chamas e na loucura tudo o que parecia restar de íntegro e vivo; depois, novamente, trinta anos depois, a fogueira se reacendeu violentamente por toda parte e, a partir de então, não cessa de arder, sem tréguas, soterrada, apenas visível sob cinzas… como podíamos continuar a viver e pensar enquanto tudo queimava? O que restava de algum modo íntegro no centro da fogueira ou em suas margens? Como conseguimos respirar entre as chamas? O que perdemos? A quais destroços – ou imposturas – nos agarramos?
Agamben afirma que o que resta nas margens ou a indestrutibilidade no centro da fogueira é a linguagem, que não é instrumento, mas é o nosso rosto, lugar aberto para um dizer. Resto, rosto e um dizer.
Ainda a palavra, “…Um poema escrito na casa que queima é mais justo e verdadeiro, porque ninguém poderá escutá-lo, porque nada garante que possa escapar às chamas. Mas se, por acaso, ele encontra um leitor, então este não poderá de forma alguma subtrair-se à invocação que o chama desde esse desamparado, inexplicável e frágil rumor”.
Sigo Agamben, colocando-me como leitor do que considero um “poema” o livro Furos no futuro: psicanálise e utopia ,(Editora Artes&Ecos) de Edson Sousa. Este nos ajuda a navegar pelas questões levantadas por Agamben.
Destaco uma, “Como conseguimos respirar entre as chamas?” Edson nos convida a navegar pela cartografia da utopia e da psicanálise, como meios de engendrar furos no real, abrindo alguma esperança na resistência contra as tiranias.
Ele nos apresenta, a partir de Ernst Bloch e do poeta Rainer Maria Rilke, as categorias essenciais da esperança: a função da espera, o enigma do desejo, o tensionamento entre o mundo dos sonhos e o que nomeamos como realidade, o “ainda não”. Um tempo em suspenso que não se apressa a tamponar as incertezas, mas que permite que a navegação derive a partir de certa cartografia. Narrar seria ficcionar um tempo em suspensão?
Edson situa: “A utopia que nos interessa não é aquela que nos antecipa um dever ser, mas justamente aquela que ainda não sabemos e que precisamos inventar… A utopia seria como colocar um pouco de água na mão e assim produzir um oceano e depois uma margem..É com esta margem que construiremos outra fronteiras de vida, abrindo novos espaços de criação.”
A partir da leitura dos livros de Agamben e Edson, ocorreu-me o conto de Guimarães Rosa, A terceira margem do rio.
“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa… Sem alegria nem cuidado nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente”.
Sem antes, o narrador perguntar: “Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?” Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a benção, com gesto me mandando para trás… E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.”
Como um artesão da língua, Guimarães Rosa, nesse conto, a meu ver, também nos ajuda a questionar, como lidar quando a casa queima? Retorno ao Edson, quando falta o nome? E ainda, como encontrar a terceira margem do rio?
Questões que as três obras me permitiram pensar sobre o termo que Lacan construiu ao longo de sua travessia, Nome-do-Pai. Termo que ao “amarrar as derivações de uma navegação”, procura nomear o inominável, bordeia as margens do que excede, dá contornos a uma proposta utópica do não lugar, e ainda ascende alguma chama aos furos no futuro.