O fim do ano passado – segundo da ainda infinda pandemia de Covid 19 – nos brindou com uma obra de dois amigos: Imaginar o amanhã: ensaios e crônicas (Diadorim, 2021). Os autores Abrão Slavutzky e Edson Luiz André de Sousa, ainda que colegas psicanalistas, não se privam desse título e dessa tecnologia tão antiga: a amizade.
Nessa obtusa era de ódios e polarizações, a amizade parece mesmo estar em desuso. Nesse contexto, nada mais revolucionário do que declarar uma amizade. Talvez, seja ela o afeto mais livre, pois até mesmo o amor romântico e seus contratos – notadamente, o casamento e a procriação quase compulsória – raras vezes escapam das regulações do capital. No livro, em um de seus primeiros ensaios, Abrão Slavustzky recupera e recompõe a imagem de uma situação tomada à guisa de marco no processo civilizatório. Trata-se de uma ossatura cicatrizada de fêmur, no entender de uma arqueóloga[1]. Ali, naquele osso, se faz presente a espera. Marca da paciência de auxiliar e aguardar pela recuperação de alguém antes de prosseguir – quem sabe mesmo expondo-se ao aumento do risco próprio, por exemplo, de encontrar um predador. A civilidade faz um pouco disso; nos coloca a dividir os riscos e esquecer as probabilidades de fracasso. A amizade, por sua vez, exacerba ainda mais esse impulso tão necessário, manifestado também pela muito lembrada e pouco exercida empatia.
Autores já experimentados e bastante lidos, cada qual poderia realizar uma nova publicação individual. No entanto, optam por se acompanhar nessa travessia de imaginar o amanhã. Como leitores que se frequentam, Abrão Slavutzky e Edson de Sousa compuseram – acredito que de modo inadvertido – uma obra que, por vezes, parece uma gostosa troca de correspondências. Não está explícito, mas infere-se o compartilhamento de inquietações semelhantes e, ao mesmo tempo, a generosa acolhida de um pelo outro. Nem por isso trata-se de um código particular, ensimesmado, mas antes o contrário: a cada ensaio, busca-se a direção do mundo no estilo que é peculiar a cada autor. Os ensaios e crônicas vão do infinito particular[2] das neuroses à singularidade que se desdobra em drama universal e, sobretudo, brasileiro.
De fato, a brasilidade me parece ser a chave mestra das portas que o livro vai abrindo nessa aparente empreitada impossível: o amanhã! As raízes no Brasil, apesar das trajetórias cosmopolitas dos psicanalistas, os fazem considerar idiossincrasias de nosso racismo, colonialismo, ditaduras, protofascismo e, evidentemente, nossas potencialidades. No tecido do texto nem sempre esses movimentos são frontais, mas, por vezes, laterais e oblíquos. Do mesmo modo, a transmissão psicanalítica escorre nas entrelinhas e no paratexto. Aqui, a ausência de cálculo é a justa receita do acerto. Imaginar o amanhã não é um livro psicanalítico propriamente dito, tampouco militante ou panfletário, mas, nem por isso se esquiva de nossas feridas.
Imaginação sem amizade não tem a mesma graça. Por isso, creio que cada leitor vai sendo uma espécie de amiga/o que coloca atenção afetuosa, mas ponderada, par e passo com o fluir dos autores. É da natureza da amizade e do estilo ensaístico não se oferecer à paixão, posto que esta promove uma acoplagem rápida e irrefletida. Imaginar o amanhã, na verdade, nos convoca a uma dança. E, como toda a boa dança é preciso ajustar o ritmo (tempo) e o movimento (espaço).
Em outro escrito, nas redes sociais, mencionei o acerto em relação à capa de Alice Tessler: um farol. Um farol é uma luz generosa que convida ao rumo; não o impõe. Se a preferência for a obstinada deriva, ainda assim, lá estará o farol. Sua potência está nessa luz, tantas vezes intervalar, que não cega, tal como no ensaio em que Edson de Sousa propõe a melodia das coisas[3] entre Bavcar e Muñoz. O autor nos diz sobre “a importância das sombras, dos espaços vazios, do silêncio, para captarmos a presença luminosa dos objetos” (SLAVUSTZKY e SOUSA, 2021, p. 123).
Livros que produzem intervalos, aberturas e jogos de luz e sombra me parecem fundamentais para imaginar o amanhã. Do contrário, seja na total escuridão ou diante da luz enceguecedora, estaríamos condenades ao domínio dos signos e das respostas automáticas. Prontos para, como nos diz Edson de Sousa em outro ensaio, consumir “pensamentos de prateleira”[4]. Ainda assim, não é muito fácil imaginar o amanhã. Ainda mais quando o hoje nos atordoa tanto como em nosso acidentado contexto Brasil.
O amanhã é uma abstração. Projeto que procuramos – sempre em vão! – controlar. Por conta disso, nossas experiências podem se tornar reféns de agendas, cativas dos compromissos cumpridos ou adiados. Entretanto, o germe de nossas experiências – as quais sabemos pelo filósofo Walter Benjamin o quanto esperam por nossas narrativas para, de fato, merecerem esse nome – pode estar encerrado no trauma. Por isso, Imaginar o amanhã não se esquiva de abordar diferentes dimensões do trauma. O desgoverno brasileiro, a pandemia, a indiferença cruel à questão indígena, as feridas nazistas e racistas do mundo e do Brasil e um longo etc., no qual a noção de testemunho vai se tornando envolvente e insurgente em suas dimensões mais factuais, nas quais os autores se aproximam das dimensões do luto e das lutas. Contudo, o testemunho também atravessa a obra nos multiversos mais lúdicos, infantis, rebeldes e poéticos. Imaginar o amanhã está composto por diferentes tratamentos artísticos da realidade e suas ficções necessárias. A não se confundir tais ficções com os venenos da pós-verdade e das fake news, quando se trata exatamente do contrário. Obras como Imaginar o amanhã são, justamente, o antídoto contra a barbárie da qual se alimenta a maquinaria das mentiras para consumo rápido, de prateleira.
Em cada testemunho, os autores vão construindo uma espécie de panteão de deusas e deuses para imaginar o amanhã. Edson com Márcio Silva, Estamira, Rilke, as cinzas a serem lidas, Bavcar, Flávio Tavares, agulhas, Luis Guides, insertões, Guimarães Rosa entre outres. Abrão com o poema de cada um, com sua admiração por Maya Angelou e pela bailarina de Auschwitz, com o cachorro que devolve a humanidade ao campo de concentração, com o humor, dores de pedra e perdas… Enfim, são personagens amigos de uma travessia. E, assim, também vamos sendo estimulades a encontrar nossos heróis e heroínas ou nossas agulhas-vacinas contra as bombas e vírus dos ódios e negacionismos.
No início da pandemia, nada mais difícil do que imaginar o amanhã. Alguns arriscavam-se a sinalizar o que seria o “novo normal”, mas, convenhamos: naqueles momentos iniciais era bastante difícil evitar projeções apocalípticas. Escutei de muitas pessoas a sensação de estar vivendo um pesadelo e me recordo de dias em que, logo ao acordar, nutria a esperança de a pandemia ser um sonho ruim. A necessidade de seguir o dia logo fazia com que vestíssemos essa realidade amarga, uma espécie de pesadelo na vigília. Pesadelo feito de sobreposições de perdas, traumas e lutos. Lutos por pessoas, por hábitos, enfim; por jeitos de trabalhar e viver que deveriam ficar para trás nos terríveis tempos pandêmicos. No horizonte, havia um hoje que, por fim, prolongou-se em dois anos cujas referências de tempo dependeram como nunca do calendário. A cada dia luta-se pela garantia de manter a dignidade do luto, a vida e a sanidade mental. É tangível nos textos dos autores a presença da elaboração desses temas, a busca pela garantia que somente a palavra escutada, lida e passível de ser interrogada promove.
O pesadelo, aquilo que aterroriza, faz forte ligação com o significado e com o signo. Quer dizer, com a fixidez de um único sentido. O sonho é sempre mais poroso ao significante e à criação – daí que ele seja tão caro à psicanálise. Os pesadelos apelam à coragem, seja para resolver “a parada” no decurso do sonho ou para acordar! Imaginar o amanhã é um outro modo de acordar, colocando os significantes à baila, em movimento.
2022. Eleições a caminho, ômicron e talvez outras variantes. As variações e os temas postos na mesa. Como vamos escrever, ler, perguntar? Imaginar? Há muitos fêmur por cicatrizar e muitas luzes por vir antes de que nos deixemos cegar de vez. Nesse sentido, testemunhar – como fazem Abrão Slavutzky e Edson Sousa – é produzir malha discursiva, significantes, poesia… Porções de linguagem que ajudam não somente a acordar, mas também a arriscar novos sonhos.
Imaginar faz a evocação do instante em que é preciso estar presente para notar um futuro urgente: o amanhã! Bem agora.
[1] Margaret Mead. “Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um fêmur quebrado e cicatrizado. Ela explicou que no reino animal quebrar um osso da perna era morte certa. Porque não poderás mais correr para fugir do perigo, ir ao rio para beber água ou caçar comida. Animal com perna quebrada era carne fresca para os predadores”. (SLAVUSTZKY e SOUSA, 2021, p. 46)
[2] Título da canção de Marisa Monte, Arnaldo Antunes e Antônio de Freitas.
[3] A melodia das coisas: contos, ensaios, cartas. Obra de 1898, Rainer Maria Rilke.
[4] “Por esta razão, ocupar minimamente uma posição de autoria no pensamento implica, necessariamente, recusar o consumo de pensamentos de prateleira. Aqui nos encontramos com a radicalidade da experiência psicanalítica, que tenta fazer furo nestes espaços totalitários de discurso…” (SLAVUSTZKY e SOUSA, 2021, p. 66).