Mentira da barata. Discurso capitalista, ódio e fake news – Por Priscilla Machado de Souza

Mentira da barata.  Discurso capitalista, ódio e fake news – Por Priscilla Machado de Souza

Mentira da barata

Discurso capitalista, ódio e fake news[1]

Priscilla Machado de Souza[2]

A barata diz que tem sete saias de filó

É mentira da barata, ela tem é uma só

Rá, rá, rá; ró, ró, ró ela tem é uma só

Canção popular

A propósito do entrelaçamento entre os discursos de ódio e a liberdade de expressão, parece possível percorrer as relações entre o chamado, por Lacan, discurso capitalista e a era da pós-verdade; com uma de suas características mais prevalentes: o ódio disseminado através das fake news.

O fenômeno é mundial, mas, especialmente em nosso caso – o brasileiro – a falência da memória de nossa sociedade se aliança com o crescente e desordenado acesso à digitalização. Soma-se ainda a precarização do ensino, a despeito de nossa tradição de excelentes pensadores na área da educação. Esse cenário compõe a tempestade perfeita; quer dizer, a melhor conjuntura possível para a proliferação de desinformação sistemática regada a caldos de intolerância.

Há relativo consenso nas Ciências Humanas de que a pós-verdade é um fenômeno contemporâneo que refina a emissão da mentira. Através de apelo emocional e crenças, promove-se uma modelagem da opinião pública que resulta em proveitos políticos e comerciais. É assim que valores como a bandeira, a pátria e a família – emblemas e signos erigidos enquanto marcos civilizatórios – passam a servir de mote para justificar as intolerâncias à menor diferença ou contraponto. Os chamados procedimentos de desinformação – que nada mais fazem do que espalhar boatos – servem-se de diferentes atores: desde agentes de relações públicas, social medias, representantes de organizações da sociedade civil e, finalmente, os cidadãos e cidadãs. Nesse último nível de difusão a informação falsa já pode ser considerada viral.

Até que se prove o contrário, as fake news embalam a sanha intolerante que reforça o ódio, sobretudo, às minorias. Assim, constroem-se e reforçam-se estereótipos que seguem estruturando nossa sociedade misógina, LGBTQIA+fóbica e racista. Com essa certeza, os beneficiários da manipulação da pós-verdade não costumam se preocupar com a aparição dos fatos verídicos, já que logo uma nova mentira ocupará o lugar da anterior.

Tal situação faz lembrar a canção infantil: “A barata diz que tem”. Primeiro, a barata diz que tem 7 saias de filó. Logo ela é exposta e desmascarada: rá rá rá, ró ró ró, ela tem é uma só. Mesmo assim, a barata não desiste, segue inventando novas mentiras: a barata diz que tem um anel de formatura, mas é mentira da barata: na verdade, ela tem a casca dura. Embalados na canção, de mentira em mentira, seguimos acompanhando a barata. Não desistimos de escutá-la. Algo análogo acontece com o fenômeno da pós-verdade. Nos envolvemos em uma engrenagem ininterrupta, veloz e fascinante. Dessa vez, não pelo lúdico, mas pelo ódio que é capaz de promover.

O psicanalista Mauro Mendes Dias (2012), em sua obra Os ódios: clínica e política do psicanalista, recupera a origem da palavra, ligada ao teatro: “Encontramos pela etimologia que vem do grego – odeum – com ‘e’, no grego, Odeon significa ‘pequeno teatro’, lugar em que havia concursos de música e poesia.” (p. 25). A ideia de Dias é recordar o teatro grego no qual a presença do ódio é insistente. Nesse sentido, o ódio parece manter uma relação candente também com a performatividade. Contudo, no contexto digital, a internet não é um “pequeno teatro”, mas um palco infinito para as suas manifestações.

Amódio foi o neologismo de Lacan (1972-73/2006) para tratar dessa injunção no Seminário 20 – Encore. Mescla que apela à extimidade, ao moebiano desse afeto. Assim, nos diz que, para a psicanálise, não se reconhece amor sem ódio. No mesmo Seminário, também retoma os discursos em sua função de regulação de gozo, de vínculo entre falantes e de laço social. A própria história, nesse sentido, resta pendente dessa vinculação. A esse respeito o pedagogo Luiz Ruffino (2020) ilustra com o seguinte comentário a tendenciosidade colonial da história:

Vez em quando, em sala de aula, como quem prega peças em um jogo, lanço a seguinte pergunta: o que vocês recordam da Idade Média? As respostas são precisas, afinal, a escolarização nos legou certas aprendizagens. Em meio as respostas, (…) lanço: de tudo o que vocês lembram da Idade Média, onde estavam os tupinambás naquele período? O incômodo se faz presente: ora, tupinambás? (Ruffino, 2020, p. 36)

De fato, parte da história está a descoberto, sem possibilidade de entrar na narrativa e na vinculação social promovida pelos discursos. Nossa estruturação é, evidentemente, herança do colonialismo. No entanto, uma coisa (obviamente, já bastante ruim!) é ignorar a história dos tupinambás; outra é recobri-la de inverdades. Esse é o tipo de ação promovida por aqueles que se dedicam às fake news, quase sempre com muitas camadas de ódio e intolerância.

Dias (2012), ao retomar a conexão entre amor e ódio, refere que a mesma se dá na dependência de uma atualização do simbólico e do imaginário, diante daquilo que divide o sujeito, quer dizer, a castração. Então, o ódio vai colocar uma relação de intimidade com o exterior; o exterior já não sendo algo apenas de fora. Essa é a questão do ódio como fator político, ou do gozo como o fator político. Quanto mais uma comunidade humana é fechada em si mesma, mais o exterior aparece como odioso (p. 35-37).

Nessa direção, é fato que o alcance das fake news frequentemente está nas emoções que reforçam os sentimentos de pertença, – de unidade nessa pertença – e de frequente rechaço à diferença, ao outro. Mesmo assim, parece difícil assumir quando odiamos. Coisa análoga à situação que o antropólogo Kabengele Munanga (2017) traz em relação ao racismo. O racismo existe, quase ninguém nega, mas racistas sempre são os outros.

Jacques Hassoun (1999) em seu livro – O obscuro objeto do ódio – menciona que:

 

…quando este termo se impõe ao sujeito apaga qualquer outra palavra da língua. Quando a simples presença do outro provoca este afeto devastador que faz saltar os limites e coloca este objeto funesto em posição de deus ou de demônio, o sujeito que odeia, presa de certo maniqueísmo, se coloca, sem saber, esta pergunta: ‘Como este ser odiado se atreve a me olhar?’. Pergunta que suscita a convicção de que, qualquer que seja o olhar que este ser tenha sobre mim, sobre este eu devorado pelo ódio, a mesma tem que desencadear os mecanismos de rechaço absoluto. (Hassoun, 1999, p. 14)

Em uma vertente ainda mais social, o filósofo Jacques Rancière (2014), em seu livro o Ódio à democracia, refere que este ódio não é uma novidade. Para este autor, dito ódio é tão antigo quanto a própria democracia. A palavra nasce de um insulto inventado na Grécia Antiga quando o que se via como vindo do povo, da multidão, era a ruina de toda ordem legítima para aqueles que se atribuíam os méritos do poder por nascimento, quer dizer, por mérito divino. No entanto, para Rancière, esse ódio permanece atual. Lamentavelmente, as eleições brasileiras de 2018 não o contradizem.

Há alguns anos, em um contexto de atendimento em um CRAS[3], uma mulher negra, residente em uma zona vulnerável e de grande inserção nas discursividades neopentecostais trouxe uma fala emblemática que toca o tema. Na ocasião, tivemos a oportunidade de testemunhar e, posteriormente, registrar essa ambiguidade em relação à democracia:

Olha só, pra quê tanta documentação? E essa demora? Esse bolsa família é muita democracia mesmo…

Será que a senhora quis dizer “burocracia”?

Essa coisa do demônio mesmo…

Nessa passagem, podemos analisar a importância da repetição dos fonemas de demo na indução de uma escuta poética. Há um significante novo nestas enunciações – democracia – não apenas presente como sinônimo de burocracia (excesso de documentações e demora), mas como algo do demônio… (Souza, D’Agord e Froemming, 2020, p. 94)

À época, nosso objetivo era sublinhar o enlace poético que textualmente poderia ser lido como celebração, mas que, prioritariamente, reclamava a presença de uma coisa do demônio. Se, por um lado, um significante novo (singular) advém como um sentido inédito de democracia, por outro, sua exacerbação coletiva – capturada e capitalizada pelo maniqueísmo que menciona Hassoun (1999) – bem poderia virar uma fake news… Nesse viés, recordamos que o fundamentalismo religioso é peça que também encaixa na maquinaria das fake news, onde a liberdade de expressão – tão afiançada pelos beneficiários da pós-verdade – não se traduz como alvedrio religioso, menos ainda como liberdade de exercício afetivo-sexual. O novo ódio à democracia, segundo Rancière,

não reivindica uma democracia mais real. Ao contrário, dizem que ela já é real demais. É do povo e de seus costumes que eles se queixam, não das instituições de seu poder. Para eles a democracia não é uma forma de governo corrompido, mas uma crise da civilização que afeta a sociedade e o Estado, através dela. (…) O governo democrático diz, é mau quando se deixa corromper pela sociedade democrática que quer que todos sejam iguais e que todas as diferenças sejam respeitadas. Em compensação, é bom quando mobiliza os indivíduos apáticos da sociedade democrática para a energia da guerra, em defesa dos valores da civilização, aqueles da luta das civilizações. O novo ódio à democracia pode ser resumido, então, em uma tese simples: só existe uma democracia boa, a que reprime a catástrofe da civilização democrática. (Rancière, 2014, pp. 10-11)

Hassoun comenta também a existência de um ódio promovido pelo ensino do desprezo. Qualquer ódio é, no fundo, ódio da diferença que se justifica e apela às categorias do senso comum. O ódio, prossegue Hassoun, tenta reconstituir sem cessar não um Outro, senão um Um – fazendo apelo à unidade totalizante que suprime a alteridade. O ódio conduz, ainda, à tentativa de denegar a divisão do sujeito em nome deste Outro todo-poderoso cujo lugar se tenta ocupar de uma maneira irrisória. O autor, além disso, sublinha que aquele que tem ódio está permanentemente tentando confundir o objeto com sua própria imagem (Hassoun, 1999, pp. 29-32).

Nessa dinâmica de proliferação do ódio, poderia este ser tomando como objeto de consumo?

Em 1972, na Conferência de Milão – Do discurso psicanalítico – Lacan menciona a crise do discurso capitalista – uma variação do discurso do mestre. Um discurso “loucamente astucioso, mas destinado a explodir”. Por andar muito rápido, se torna “insustentável (…) se consome, se consome tão bem que se consuma”. E, ainda, pensando no destino da psicanálise e, por conseguinte, do discurso psicanalítico, aponta: “Alguma outra coisa aparecerá que, com toda certeza, deve manter a posição do semblante (…) um discurso que seria enfim verdadeiramente pestilento, totalmente dedicado ao serviço do discurso do capitalista” (Lacan, 1972, n.p.).

Nessa toada, o discurso capitalista na era da pós-verdade, via fake news – que, na maior parte das vezes, é mentira da barata – acaba por promover o consumo da barbárie. Por enquanto, essa crise tem se aprofundado e não dá sinais de arrefecimento. Por outro lado, o discurso psicanalítico – assim como a poesia – sendo o único que não se coagula, promove um instante tão evanescente quanto potente, não se permitindo capturar. Por fim, como analistas, nossa ética nos impele à aposta de, a um só tempo, cultivar a aparição da ambiguidade da linguagem, do sujeito dividido, da verdade com estrutura de ficção ou, se se prefere, da manifestação do inconsciente.

No entanto, essa aposta se joga também além das quatro paredes do consultório físico ou das oito paredes do consultório virtual. Há um chamado a ser atendido no campo da cultura, desde que não abdiquemos da posição de pensadorxs da cultura…. Ainda assim, pensadorxs com a ética que é própria à psicanálise, isto é, resistindo à fascinação da polarização. Desde esse lugar – oblíquo, mas não isento de lutar contra o fascismo –, a psicanálise faz resistência.

Enfatizamos: esquivar polarizações não se faz por uma pretensa neutralidade ou imunidade político-ideológica da pessoa dx analista, mas, sobretudo, porque as polarizações são significados fixos que alimentam os discursos de ódio e, consequentemente, este incômodo fenômeno de linguagem signica e cínica chamado fake news. É, mais uma vez, o nosso ofício: palavra à palavra.

Referências

Dias, M. M. (2012). Os ódios: clínica e política do psicanalista. São Paulo: Iluminuras.

Hassoun, J. (1999). El obscuro objeto del ódio. Buenos Aires: Catálogos.

Lacan, J. (1972). Conferencia de Milan “Del discurso psicanalítico”. Recuperado de https://www.elsigma.com/historia-viva/traduccion-de-la-conferencia-de-lacan-en-milan-del-12-de-mayo-de-1972/9506

Lacan, J. (1972-73/2006). El Seminario de Jacques Lacan : libro 20: aún. Buenos Aires: Paidós.

Munanga, K. (2017). “As Ambiguidades do Racismo à Brasileira” in: Kon, N. M.; Abud, C. C. e Silva, M. L. (Orgs.) (2017). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva.

Ranciére, J. (2014). O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo.

Ruffino, L. (2020). “Pé de tempo” in: Simas, L.; Ruffino L. e Haddock-Lobo, R. (2020). Arruaças: uma filosofia popular brasileira. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo.

Souza, P. M.; D’Agord, M. R. L. e Froemming, L. S. (2020). “O trabalho da poesia na clínica das psicoses”. Ágora (Rio de Janeiro) v. XXIII n.2 maio/agosto 2020 https://doi.org/10.1590/1809-44142020002004

 

[1] Adaptação de textos apresentados nos eventos Palavra Aberta/APPOA (24/07/2021) e “Discursos de ódio em nome da liberdade de expressão: paradoxos sobre a liberdade” no IEPP em 21/06/2022.

[2] Psicanalista. Membro da APPOA. Integrante do coletivo Palavra Aberta/APPOA e uma das coordenadoras da Linha de Trabalho Psicanálise, Racismo e Políticas Étnico-raciais do Instituto APPOA. Autora do livro “A função po-ética na psicanálise: sobre o estilo nas psicoses” (Criação Humana, 2018) e do infanto-juvenil “A história da menina Poesia” (Giostri, 2020). priscillamdesouza@gmail.com

[3] Centro de Referência de Assistência Social

 

Ilustração: Richardson Santos de Freitas

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