“A atmosfera emudecera: relâmpagos sem trovão, para-brisa sem ruído, palavras virando coágulos.
João Gilberto Noll (Mínimos Múltiplos Comuns)
“Poemas para exumar a história viva” (Cult Editora, 2021) é um livro coágulo. Aqui, são os coágulos que viram palavras, raspas de palavras, frestas de palavras, restos de palavras, insuficientes, desesperadas diante de uma história que temos ainda entalada na garganta: o golpe de 1964 e os anos de tortura na ditadura civil-militar brasileira. Faço este registro muitos dias depois da leitura que fiz do livro, pois foi preciso um tempo para me recompor das muitas imagens que ficaram reverberando como um grasnar agudo de araras mortas , com suas penas coloridas manchadas de sangue. O coágulo voltando a circular como sangue quente para contar a história que este país viveu e que parece ainda não conseguiu ver de perto, viu e tentou esquecer, viu mas ainda tenta apagar os rastros de um horror que retorna diariamente de forma violenta .
Os 25 poetas que ali estão reunidos por Alberto Pucheu, em uma edição cuidadosamente desenhada com imagens e documentos de época, são hoje mais um dos arquivos a disposição para que a história coagulada volte a nos interpelar com a pergunta: como podemos continuar tolerando o intolerável? Alberto Pucheu, poeta e professor de Teoria Literária da UFRJ , lembra no seu prefácio denso e esclarecedor algumas declarações daquele que veio a ser eleito presidente do Brasil: “eu sou favorável à tortura, tu sabes disso, e o povo também é favorável a tortura”. E ainda, como todos sabem, viram e ouviram, homenageou em pleno congresso nacional o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra, naquela sessão abjeta e vergonhosa de 17 de abril de 2016 .
São 25 poetas que sofreram no corpo a fúria da tortura, da violência de Estado e que tentaram reagir fazendo algum registro desta tempestade. Agora, somos nós os convocados a novamente testemunhar sobre estas anotações e temos o compromisso de ler e tentar encontrar nossa responsabilidade não só diante da história que já vivemos, mas, sobretudo, diante daquela que ainda temos pela frente. O livro faz dialogar os poemas escolhidos com documentos de arquivo expondo as circunstâncias em que muitos deles foram torturados e perseguidos. Entre eles Ferreira Gullar, Loreta Valadares, Flavio Tavares, Alex Polari, Eduardo Alves da Costa, Thiago de Mello, Lara de Lemos, Jacinta Passos e tantos outros.
Leiam este relato de Alípio Freire que particularmente me virou do avesso, em um relatório do Ministério da Aeronáutica de 3 de maio de 1971.
“Alípio Raimundo Viana Freire ( artista plástico, 24 anos, solteiro). Preso em agosto, além de choques e pancadas, foi obrigado, a limpar com a língua o chão da sala de torturas. Em estado febril, foi surrado com cinturão carregado de balas, além de novos choques….”
Limpar com a língua o sangue ainda quente, misturado talvez com o suor dos seus torturadores… A boca humilhada perversamente em um grau de violência assustador. No livro, lemos as palavras que Alípio verte em coágulos.
Da Tragédia
Nós sobrevivemos
ao pau-de-arara.
Mas o pau-de-arara
Também sobreviveu.
Alípio sobreviveu a tudo isto, ficou preso de agosto de 1969 a 2 de outubro de 1974, deixou livros publicados, um filme documentário intitulado “1964: um golpe contra o Brasil” (2013). Mas infelizmente, morreu ano passado em 22 de abril, vítima da Covid 19 e da negligência do governo federal, responsável por muitas destas mortes que poderiam ter sido evitadas com uma politica de vacinação, prevenção, investimento, respeito às indicações da comunidade científica na área da saúde.
A imagem do Alípio sendo obrigado a lamber o seu próprio suplicio, concentra o grito que este livro nos devolve como um bumerangue com todos estes escritos. Vozes expandidas e ruidosas, que reagem com a língua viva da memória, que não nos deixa esquecer o inimaginável. Pedro Tierra, outro poeta presente na coletânea escreve:
“Venho falar
Pela boca de meus mortos,
Sou poeta- testemunha.
Poeta da geração do sonho e sangue
Sobre as ruas de meu país”
Dos 25 poetas que compõem o livro muitos eu não conhecia e tenho agora anotado para ir, aos poucos, preenchendo as lacunas desta história com tantos buracos. Comovente encontrar o Luiz Eurico Tejera Lisbôa, o Ico, que ficou desaparecido desde 1972 e só foi encontrado no cemitério de Perus, na periferia de São Paulo, com outro nome, em agosto de 1979. Leio um poema do Luiz Eurico, que Pucheu escolheu para o livro e anoto o seguinte verso:
“…numa época em que os jardins fenecem sem sol
sem luz
entre colmeias de pedra..”.
A palavra vem zunindo na inquietação da última abelha ainda grudada nesta colmeia morta, em busca de um outro lugar, alguma luz, algum sol, algum trovão que ainda nos acorde desta anestesia. O pau de arara como símbolo da humilhação e perversidade adquire hoje várias formas. O pau de arara que mata o jovem congolês Moïse Kabagambe diante do mar azul do Rio de Janeiro, o pau de arara que tirou a vida da Marielle e do Amarildo , o pau de arara que interrompeu a vida de tantas crianças nas operações da policia nas comunidades do Rio de Janeiro: Agatha Felix, Emily e Rebeca dos Santos, Jenifer Gomes e tantas outras , o pau de arara que matou 430 indígenas nos 3 últimos anos, o pau de arara que matou em um domingo de sol Evaldo dos Santos Rosa e Luciano Macedo nos 257 tiros , o pau de arara que tirou a vida de 29 pessoas em Jacarezinho, o pau de arara em pleno Carrefour em Porto Alegre que matou Beto Freitas.
Poemas para exumar a história viva é hoje uma leitura de urgência, pois nos leva, ao mesmo tempo, para o coágulo e para a palavra, para a língua presa junto ao chão mas também para a língua solta que teremos que ativar. Este livro emociona pela força do testemunho e nos mostra a vida que reage a violência com palavras, nos lembrando que a função do sangue é continuar circulando dentro de nosso corpo para que possamos sonhar um dia com as araras coloridas que ainda poderão, quem sabe, voar.
Segue o link para o documentário de Alípio Freire, 1964 : um golpe contra o Brasil. A imagem é de Alípio perto dos pássaros coloridos para buscarmos as araras que ainda cantam.
https://www.youtube.com/watch?v=GhoI8FdFF6w
(Psicanalista, membro da APPOA, autor entre outros de “Imaginar o Amanhã” com Abrão Slavutzky (Editora Diadorim, 2021)