A ARTE DE REDUZIR AS CABEÇAS
Rosana Coelho[1]
O título que utilizo neste texto é emprestado de um interessante livro escrito pelo filósofo e psicanalista Dany-Robert Dufour[2]. Li o livro de Dufour há algum tempo, mas a atual querela sobre a regulamentação da psicanálise e seu mais novo produto, o bacharelado em psicanálise, fizeram com que este título e os apontamentos do autor retornassem incessantemente na minha memória.
Em tempos de protagonismo formatado pelo ódio, cabe dizer (que chatice estes tempos em que o óbvio precisa ser dito!) que o lugar desde onde eu falo é de quem está vinculada a uma instituição psicanalítica referenciada pelo ensino de Sigmund Freud e Jacques Lacan. Logo, minhas palavras não almejam nenhuma neutralidade. Inclusive faço a gentileza de avisar a quem se sentir motivado a perder o seu tempo dizendo que meu texto tem interesses pessoais, que ele tem sim. O meu e o texto de todos os membros da torcida do flamengo. Mas, claro, perder tempo e coçar a cabeça é livre, gratuito e ao gosto do freguês. Só faço questão de lembrar uma última coisa: tudo é ideológico, a tão propagada neutralidade política não existe, só se afirma imaginariamente em alguém que se posiciona no cume da alienação. Lamento pela inevitável má notícia.
Não me parece, então, em um país onde a formação profissional vem sendo brutalmente mercantilizada e, com isso, empobrecida, que seja um serviço útil para os atuais e futuros pretendentes ao ofício de psicanalista, gastarmos tempo e saliva com debates – encabeçados inclusive por muitos colegas psicanalistas – que se pautam por um argumento pífio, qual seja, o de que “os do contra o bacharelado” estão apenas reclamando, em espelho, uma reserva de mercado. E digo isso pelo óbvio (de novo ele!) motivo de que não há fora do mercado. Infelizmente, também diante de uma questão tão importante relacionada à formação do psicanalista, percebo que não estamos conseguindo sair da polarização política, esta praga que se intensificou no Brasil desde o último pleito político. Como um alento e um respiro, e para tentar evitar a contaminação pelo maniqueísmo estéril, ao qual nenhum narcisismo escapa totalmente ileso, penso que útil é ter Foucault como livro de cabeceira, e reler, sempre que necessário, algo que ele diz assim: “Nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso. Se é perigoso, sempre temos algo a fazer”[3].
A meu ver, uma das importantes questões que nos convoca a um claro posicionamento, diz respeito aos parâmetros e efeitos éticos e políticos que permeiam a criação de um bacharelado em psicanálise, em um momento no qual a política fascista no Brasil passeia por aí livre, leve e solta. Um momento em que o “Divino Mercado” nunca esteve tão no comando e exibe sem pudor sua gorda pança, às custas do precarizado trabalho alheio[4]. Um dos argumentos de base para a criação do referido bacharelado, igualmente questionável, é de que se trata de uma iniciativa que visa à democratização da psicanálise. Resta saber de qual democracia se está falando. Ou, para ser mais assertiva, é preciso indagar na conta bancária de qual “Senhor democrático” os lucros florescerão, adubados pelo suor monetário dos que veem nesta proposta uma alternativa rápida de realizar o desejo de atuar profissionalmente como psicanalista, imaginando que de outra forma isso seria impossível ou não reconhecido. É disso que falamos: da comercialização da ilusão de que um curso legalizado pelo Ministério da Educação, justamente sob o comando de um governo tão incompetente quanto fascista, que precariza a educação a olhos vistos, seria a garantia de uma exitosa subida da escada meritocrática[5]. O que tal curso vende é a ilusão neoliberal de que é necessário comprar um produto que tem o sedutor nome de “bacharelado em psicanálise” para que se tenha validada a atuação profissional como psicanalista.
Um dos recorrentes argumentos dos que advogam “a favor do bacharelado” e/ou dos muito entusiasmados com a oferta, pauta-se pelo fato de que as instituições psicanalíticas não regulamentadas não fornecem um “certificado de psicanalista”. Esse argumento vem automaticamente acompanhado de um outro argumento apontando o que seria uma “ferida narcísica” no posicionamento de tais instituições: a não certificação oficial dos candidatos e candidatas à formação teria por objetivo a manutenção do “pátrio poder” dos que ocupam o lugar de transmissão da teoria psicanalítica nestas instituições. Ora, ostentar um diploma debaixo do braço não garante a ninguém a contratação de seus serviços! Nada, nem ninguém pode garantir isso.
Qualquer atento olhar no cenário social testemunha o assombroso efeito colateral da massificação da educação brasileira, resultante de cursos de graduação que surgem às pencas, em cada esquina que dobramos. Este efeito colateral tem nome e sobrenome: acirramento da competição social. O que não se diz é que se trata de uma competição cada vez mais iníqua e desleal, da qual o neoliberalismo se serve para continuar governando soberano, e, além disso, fomentar ainda mais a ideia paradoxal de que a solução para o desemprego é consumir mais e mais cursos. A ideia de que é possível ter um título, um certificado, ou qualquer outro objeto que preencha a falta de saber, que garanta emprego, etc., é o fetiche neoliberal por excelência!
Um fetiche que os desempregados, resto cada vez mais volumoso da competição, dão um triste e evidente testemunho de sua ineficácia. Modo outro de dizer que na ponta da cenoura que o capitalismo utiliza para comandar a manada ao infinito e além está escrito, em letras bem miudinhas, quase invisíveis: não há garantias pós consumo. Mas, coitados de nós, são letras bem pequeninas. Como nas bulas de remédios muito ruins, se as vemos, não consumimos. Simples assim. E o nome disso é a-li-e-na-ção. Esse ingrediente que Dufour aponta como ingrediente principal na arte de reduzir as cabeças, para torná-las cada vez menos pensantes e menos reflexivas. Sim, o consumo também é de palavras de ordem: “Seja!”, “Faça!”, “Compre!”, “Pague!”.
Por isso, quando o artigo de um colega evoca a tradição, nos chamando a atenção para os pilares fundantes da psicanálise, e a importância de não os perdermos de vista, ele não está evocando, muito menos determinando que não se pode rever enquadres teórico-metodológicos da formação psicanalítica[6]. Está apontando que as marcas desta tradição, inscritas na História da Psicanálise desde o seu surgimento, trazem consigo balizamentos éticos e políticos que, se desprezados ou postos à revelia, carregarão consigo a descaracterização da psicanálise que tem, como todo e qualquer campo do saber, contornos próprios. Um exemplo paradigmático: em 1926, em meio a um acalorado debate sobre a autorização do estudo e da prática da psicanálise aos não médicos (chamados naquele momento de “leigos”), Freud escreve um valioso texto se posicionando explicitamente contra o monopólio da psicanálise pela medicina, tanto no que dizia respeito ao monopólio da prática clínica, quanto de sua transmissão[7]. Sim, caro leitor, entendeste corretamente: Freud, médico, advogou a favor da prática e do ensino da psicanálise aos não médicos. Não sei você, mas eu não vejo um posicionamento mais ética e politicamente valioso do que este. Logo, o argumento de que há uma tradição ética e política da psicanálise, a ser mantida e zelada é pertinente sim. E mais: é este argumento que não deixa a psicanálise, na medida do possível, ser capturada pela lógica pobre e perversa do consumo pelo consumo. É este argumento que faz um dique – como pode – diante dos discursos que tentam fazer dela um instrumento de mercantilização da formação dos profissionais de saúde mental, o que, inevitavelmente, termina por mercantilizar a própria saúde mental. Quem de nós ainda não ouviu a voz do Capital ao pé do ouvido, dizendo: “Quem pode pagar, tem, quem não pode…”.
Em conclusão, retomo minha crítica ao míope argumento, de que o posicionamento contrário à criação de um bacharelado autorizado pelo MEC, teria como mote o ressentimento da perda do monopólio da formação psicanalítica. E retomo porque este argumento não enxerga o fato, por demais óbvio, de que as inúmeras instituições de psicanálise pelo Brasil afora já são, por si sós, uma pluralidade que impossibilita o monopólio da formação unicamente por esta ou aquela instituição. Melhor seria, a meu ver, olharmos bem mais acima, como nos alertaram, desesperados, os personagens cientistas do inquietante e lúcido filme “Don’t look up” (“Não olhe para cima”). Outra forma interessante de dizer o mesmo, é trazendo aqui as palavras com as quais Lacan encerra o seu Seminário sobre a Ética da Psicanálise[8]. Ele encerra dizendo que o mais importante não é saber se o homem é bom ou mau originalmente. O importante é saber em que resultará o livro depois que o homem tiver comido todo ele.
[1] Rosana Coelho. Psicanalista. Pós-doutora em Psicanálise Clínica e Cultura/UFRGS. Doutora em Psicanálise Clínica e Pesquisa/UERJ. Professora em cursos de Graduação e Pós-graduação em Psicologia. Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise e diretora do Núcleo Porto Alegre.
[2] DUFOUR, D-R. A arte de reduzir as cabeças – sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005.
[3] DREYFUS, H.L. & RABINOW, P. Michel Foucault – uma trajetória filosófica. Tradução de Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
[4] Mais uma vez recorro a DUFOUR que sublinha de forma cristalina o feliz, lucrativo e duradouro casamento entre o neoliberalismo e a religião. DUFOUR, D-R. O divino mercado. Conferência realizada no Circulo Psicanalítico do Rio de Janeiro em 08/08/2009. Acesso em http://cprj.com.br/imagenscadernos/caderno23_pdf/09-O%20DIVINO%20MERCADO_DANY-ROBERT%20DUFOUR.pdf
[5] O texto da colega Denise Maurano toca com clareza neste ponto também. O texto poderá ser lido no site da Aller Editora a partir do dia 18/01.
[6] Refiro-me ao certeiro texto do colega Marco Antônio Coutinho Jorge publicado no dia 10/01/2022 no jornal Folha de São Paulo. In: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2022/01/bacharelado-em-psicanalise-e-aberracao.shtml
[7] FREUD, S. (1926). A questão da análise leiga. Obras Completas. Standard Edition. Volume XX. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1986.
[8] LACAN, J. (1959-1960) O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.