O que a esquerda teria a aprender com a recusa de Jean Wyllys e o carnaval brasileiro de 2019 – Por Paulo Endo

 

Em 2019, Jean Wyllys anunciou que desistiria de seu próximo mandato após ter sido eleito para mais 4 anos como deputado federal.

A notícia chocou o Brasil e o mundo. Jean sempre foi um dos mais ativos e combativos deputados federais dos últimos anos. Se manifestou inúmeras vezes contra as barbáries propostas pelo atual presidente da república quando este ainda era, como ele, deputado federal.

É o autor da notória e inesquecível cusparada no deputado federal, hoje presidente, após ter sido inúmeras vezes ofendido pelo mesmo durante seu mandato e no ambiente da câmara dos deputados.

Essa cusparada premonitória, que ocorreu no momento em que se encenava o impeachment da presidente eleita Dilma Rousseff, tornou-se o símbolo de que não havia mais palavras para reagir à barbárie e o escândalo que se anunciava no país. Não era mais possível o argumento, o pensamento, a ponderação e o futuro estava completamente comprometido. Indicava que as violências e o discurso que as apoia tomariam conta do país e que, dali para diante, não bastasse o desastre da gestão Temer, tudo poderia ficar muito pior.

O atual presidente, que tem dúvidas sobre determinados termos e práticas sexuais, poderia extrair daí algum esclarecimento sobre o que foi uma mini golden shower naquele momento em que a câmara dos deputados, digamos assim, se comportava de modo pornográfico.

Bem, fato é que a violência prometida e praticada pelo presidente e os seus, ao assumirem cargos de grande importância no legislativo e no executivo, evidenciou o que todos suspeitavam: a escandalosa forma de governar que não se resumiria às bravatas de campanha, mas que continuaria ocupando o enorme hiato, o enorme buraco criado pela ausência completa de políticas sociais do novo governo, como frisou Paulo Henrique Fernandes em um programa no Le Monde Diplomatique em que estivemos juntos. (https://www.youtube.com/watch?v=Ngzbvvmc0b8).

Mais, viria à tona ainda no primeiro mês de governo suspeitas seríssimas sobre o envolvimento de um dos filhos do presidente com as milícias cariocas e sua ligação direta com um dos milicianos suspeitos de envolvimento no assassinato de Marielle Franco.

Em meio a essas flagrantes exposições sobre os interesses do presidente e de sua prole Jean Wyllys decide não assumir seu mandato, preocupado com a sua vida e de sua família. Relembra conselho dado por José Mujica para justificar em parte sua decisão: “Rapaz se cuide, os mártires não são heróis.”.

Essa frase, vindo de quem veio, revelaria uma diferenciação semântica que nos interessa refletir. Todos sabemos que uma democracia se põe em pé quando os heróis não são mais necessários, vidas não estão constantemente em risco e as instituições assumem o lugar dos indivíduos e se colocam à frente, para proteger os ataques à democracia vigente.

A criação da institucionalidade democrática não depende de Jean Wyllys, mas do conjunto da sociedade brasileira que, por sua força e contundência, enquanto movimento força a criação das instituições democráticas, participam delas e as defendem.

Um movimento social merece esse nome quando trabalha e luta para a criação de uma institucionalidade que ainda não existe, mas está sendo gestada, pensada, proposta no seio dos próprios movimentos que a reivindicam. Como diz Jacques Rancière, a política se define quando de algum modo a pauta da igualdade se coloca. Nesse momento, a política explicita assimetrias, denuncia mecanismos submersos e publiciza e dá nome ao que, do ponto de vista das relações de denominação, teria até então ficado encoberto para perpetuar desigualdades.

A decisão de Jean Wyllys se converte então num ato político por excelência. Ao desistir de seu cargo político ele evidencia um dos aspectos que está em jogo no cenário brasileiro: um representante eleito não pode e não quer exercer seu mandato na câmara dos deputados enquanto estiver sendo ameaçado de morte por forças que negativam o exercício da política e a aviltam.

Sendo assim, se as instituições brasileiras permitem que isso ocorra, como permitiram durante os sucessivos mandatos do atual presidente que incitava crimes publicamente, toda a institucionalidade democrática, incluindo o parlamento, está em cheque pelas forças que detestam a democracia e farão tudo para destruí-la.

O presidente eleito posta em seu twitter no mesmo dia em que Jean Wyllys anuncia sua recusa: ‘Grande dia’. Provavelmente estava feliz porque quando ameaçou banir os vermelhos do país era em algo assim que imaginava.

O que para a nação e para a democracia é um péssimo dia, para o presidente é um grande e memorável dia. Sem mesuras o presidente é flagrado, como inúmeras outras vezes em sua história, zombando e atacando o regime que o colocou no poder. Essa manifestação incauta e desnecessária, obviamente, também destaca o presidente como um dos principais suspeitos no caso de alguma coisa a acontecer a Jean Wyllys e à sua família.

Mas a recusa de Jean Wyllys cria também um novo fato político que coloca no centro da cena o medo. Ele age como exemplo de que o medo no Brasil é uma realidade incontornável. O país está se travando pelas ameaças e pelas inúmeras violências que recrudescem pelo país todo e que açoita um povo já exaurido pelas violências que secularmente sofre.

Jean Wyllys com sua atitude interpreta e propõe que todos os ameaçados devem vir a público denunciar as ameaças sofridas; todos os amedrontados devem trazer à tona seus medos e dar a eles conotação política; todos os que hoje se sentem incapazes de exercer a política devido à ameaças constantes revelem quais são as ameaças e quais são os possíveis ameaçadores.

Ele eleva ao primeiro plano a seguinte palavra de ordem: “Não queremos, não podemos e não aceitamos viver sob o medo em nossa própria casa e em nosso país.” O medo pode e deve assumir o primeiro plano num país de perseguidos, machucados e ameaçados, porque jamais deve ser tolerado e admitido que cidadãos de uma suposta democracia vivam amedrontados apenas por exercer o direito à palavra, à opinião e à divergência.

O medo hoje é um fato político que deve ser tratado na cena e na arena política e não no ambiente oculto,  constrangido e privado. Lições de Jean Wyllys.

O carnaval histórico de 2019

Pudemos ver ecos disso no carnaval de 2019. Nesse ano esperávamos um carnaval mais quebrado, mais melancólico, mais amuado. Teriam os brasileiros energia e ânimo para foliar após o resultado das eleições de 2018? Haveria festa diante do luto vivido por milhões de brasileiros diante do escândalo das últimas eleições? A resposta veio nas ruas  e na realização de um dos carnavais mais auspiciosos e vigorosos que pude assistir e testemunhar. Nela a recusa aos Bolsonaro foi praticamente unânime. Centenas de milhares de pessoas gritando pelo país todo em praticamente todos os blocos: “Ei Bolsonaro vai tomar no cú!” Ou entoando: ‘Doutor eu não me engano, o Bolsonaro é miliciano’, ou ainda ‘ai,ai,ai Bolsonaro é o carai!’ além de inúmeras faixas, cartazes, marchinhas, coreografias, carros alegóricos, manifestações de artistas nos palcos e trios por todo o Brasil.

Ao mesmo tempo em que a polícia agia para proibir blocos contra Bolsonaro em Belo Horizonte, ou agia de modo irresponsável incitando a violência no largo da Batata em São Paulo, ou algemando foliões em Salvador, um grito uníssono atravessava uma das maiores festas populares do planeta.

O carnaval avançou e superou os corriqueiros abusos policiais, os moralismos hipócritas, a religiosidade retrógrada. Mais e mais blocos assumiam-se contra Bolsonaro, e a consagração do extraordinário desfile da mangueira foi a cereja do bolo que fechava os quatro dias de carnaval. Praticamente tudo o que o novo governo representa foi criticado durante o desfile da escola, porém com graça, cores, humor, delicadeza e musicalidade.

A festa popular mais importante do país entoou alto e forte a oposição que hoje existe entre o governo fardado de verde oliva e a miríade de cores que pintavam as ruas do país enquanto explodiam em criatividade para revelar, entre as brasileiras e os brasileiros, uma comunhão em torno de valores e sonhos que transformaria o carnaval de 2019 numa das mais belas cenas de estetização da política, num sentido oposto aos milhares de soldados perfilados e desfilando armas de conhecidas cenas de regimes fascistas, nazistas e ditatoriais.

Não há maneira de falar mais alto do que consagrando às festas a sua potência política. Se, de uma lado, pudemos ter aqui e ali a polícia, parte das igrejas e os militares propugnando sua moralidade verborrágica e sem alegria contra o carnaval; de outro, o espetáculo da diversidade ocupava as ruas do país para demonstrar com uma clareza indubitável o Brasil que somos, queremos e sonhamos.

Há um aviso eloquente ao novo governo: para destruir esse país seria preciso destruir o carnaval e, com ele, provavelmente,  o Brasil e os brasileiros.

O presidente eleito, como vimos, está tentando.

Em 1921, Freud indicaria, na contramão de teóricos conservadores como Gustave Le Bon e Gabriel Tarde o que constituiriam modos exemplares de organização em massa: a igreja e o exército. Parte significativa da igreja conservadora e os fardados fazem parte do apoio dado ao atual governo. O que diria Freud sobre um Brasil festeiro cujo governo comanda, pela telinha dos celulares, milhões de hipnotizados que ainda apoiam formas violentas, truculentas e retrógradas do vigilantismo, do moralismo e da generalização irresponsável, produzindo dicotomias, disputas e incitando violências entre os nacionais?

Contra a igreja e o exército: a alegria, a criatividade, a festa e a ocupação das ruas que ocorreram nesse carnaval como resultados de intenso trabalho de muitos, realizados durante todo o ano.

Conceito, estratégia e preparação também foram imprescindíveis no trabalho das escolas e blocos e carnavalescos em todo o país. Um grito com tamanho estrondo não se deixou contaminar pelas violências, não raro, acentuadas pelas forças de segurança.

Poderíamos e deveríamos extrair inspiração e lições essenciais para a organização necessária das esquerdas no futuro imediato e, certamente, relembraremos por muito tempo, o ano em que a alegria de nossa maior festa foi séria, repleta de esperanças, imaginação e inspiradora dos caminhos a seguir lutando, dançando, cantando e mais cientes do Brasil que precisaremos defender.

Sim a alegria é subversiva e quem não dança que segure suas 3 crianças!