Este artigo é dedicado a Lorenzo Ganzo Galarça,
Bárbara Parobé Mariano da Rocha e Karina Sassi,
cujos trabalhos inspiram esta escrita.
Esfinge
As jornadas de junho de 2013 são a esfinge da política brasileira contemporânea, ao menos para o campo da esquerda. Na virada de 2017 para 2018, três artigos debruçaram-se sobre as grandes manifestações que antecederam os megaeventos esportivos, com o intuito de pensar a conjuntura atual. Da leitura desses artigos, realço o caráter de enigma atribuído às jornadas de junho. Seu sentido não é evidente, elas requerem interpretação. E se, por um lado, tal interpretação é crucial para definir o posicionamento do intérprete, por outro, as premissas de que parte a análise parecem delinear um acontecimento radicalmente distinto do que emerge de outras leituras. Decifra-me ou te devoro!
Em entrevista à Folha de S. Paulo, intitulada ‘Não sei se é o momento de unificar a esquerda’, diz Marcelo Freixo e publicada em 29/12/2017, o deputado estadual pelo PSOL/RJ afirma: “a esquerda até hoje não entendeu 2013. As portas que se abrem dizendo: queremos repactuar essa ideia de representatividade. A esquerda preferiu achar que aquilo era coisa da direita, o que não é verdade”. Ao longo da entrevista, Freixo não volta a ocupar-se das jornadas de junho. No entanto, ao mencioná-las na abertura do texto, o deputado parece procurar o tom de sua fala nas vozes que insistiam em dizer não se sentirem representadas pelo nosso sistema político. Isso fica particularmente evidente quando questionado sobre a possibilidade de unificação do campo da esquerda, sob a hegemonia do PT: “se quisessem recompor a esquerda, não andariam de braços dados com Renan Calheiros em Alagoas”.
Manifestantes em São Paulo em junho de 2013. Foto: reprodução.
A ideia de que a esquerda não entendeu as jornadas de junho retorna no artigo do jornalista Fernando Horta, intitulado O que não entendemos direito ainda sobre 2013?, publicado em 30/12/2017 – portanto, no dia posterior à publicação da entrevista de Freixo à Folha de S. Paulo –, no site de notícias GGN. Horta observa que, em março de 2013, o governo da presidente Dilma Rousseff possuía 79% de aprovação e as variáveis econômicas e sociais do país estavam sob controle: “parecia claro que o governo Dilma se mantinha em um vôo de cruzeiro em direção à reeleição”, escreve o jornalista. A fim de barrar essa tendência, teria se produzido “[…] um discurso quase esquizofrênico sobre o Brasil, falseando a realidade e induzindo a revolta social”. No que concerne a seus agentes, Horta comenta: “enquanto a direita se aliava aos interesses internacionais e atacava a economia, os grupos de ‘oposição à esquerda’ viam na possibilidade do desgaste de Dilma uma estrada para o seu próprio crescimento. O ‘Não vai ter Copa’ era uma evidente tentativa de criar uma ruptura interna no apoio da presidenta”. Nessa perspectiva, as jornadas de junho de 2013 seriam manifestações locais, cujas pautas diriam respeito a municípios e estados, mas que teriam sido manipuladas, sob a forma de “protestos sem partido”, contra o governo petista.
Em A insistência em classificar 2013 como abre-alas para a direita, publicado pelo sociólogo Rudá Guedes Ricci no Facebook, em 3/1/2018, o interminável da interpretação das jornadas de junho – de que este artigo é só um novo capítulo – dá mais uma volta. Ricci contesta a tese de Fernando Horta: “trata-se de uma dificuldade (ou impossibilidade ideológica) de compreender uma mobilização que fugiu do controle e parâmetros petistas”. Para o sociólogo, as forças políticas que impulsionaram as manifestações de 2013 eram sobretudo de inspiração libertária: anarquistas e autonomistas. Além disso, vários sindicatos – inclusive filiados à CUT – teriam participado de sua organização. Para o autor, durante as manifestações de junho de 2013 apenas em São Paulo e Brasília a direita enfrentou, de forma organizada, as tendências de esquerda. Mediante a violenta repressão policial aos manifestantes, essas organizações encontraram terreno fértil para proliferar – e sabemos como essa história termina. Ricci sustenta que transformar em torno de quatro milhões de pessoas, distribuídas em aproximadamente 500 cidades, em inocentes úteis consiste em uma estratégia do petismo derrotado, no sentido de desconhecer a existência de outras tendências na esquerda brasileira, capazes de sintonizar com o clamor popular.
Ao expor esses três artigos, disparados na passagem para um ano de eleição presidencial, não pretendo esgotar o debate, apenas assinalar que, transcorridos cinco anos das jornadas de junho, elas parecem ainda pautar as discussões políticas. E mais: elas o fazem sob a forma de enigma, isto é, de algo a que precisamos constantemente retornar, com o intuito de recuperar uma espécie de sentido perdido, que consistiria na chave para a saída do campo da esquerda do estado de perplexidade, desorientação e paralisia em que se encontra, em função do violento retrocesso social e cultural, que sucedeu às grandes manifestações de junho de 2013. Encontrar os liames entre as jornadas de junho e esse retrocesso parece ser o esforço de quase todos os que escrevem sob esse tema, ao menos no campo da esquerda. Não é este o objetivo deste artigo. Aqui, o foco é apontar as possibilidades enunciativas abertas por aquele evento.
Manifestações durante as Jornadas de Junho em 2013 no Brasil. Foto: Mídia Ninja. Reprodução.
O que dizem outros psicanalistas sobre as jornadas de junho?
Em Proliferação das #hashtags: lógica da ciência, discurso e movimentos sociais contemporâneos, Fernanda Costa-Moura (2014) esmiúça o mecanismo das redes sociais – importante suporte dos movimentos sociais contemporâneos –, com o intuito de mostrar suas raízes na formalização do discurso da ciência. A partir disso, a autora questiona qual seria o lugar do sujeito em tais movimentos, na medida em que eles parecem pôr em questão a própria dimensão da representação, isto é, ameaçam “[…] romper com a mediação política” (p. 143). Comentando a observação de um repórter – “eles não usam cartazes…” (p. 145) –, Costa-Moura pergunta: “onde estava o discurso? As bandeiras? O carro de som com as palavras de ordem?” (p. 145). Nessa perspectiva, a “[…] ‘crise da representação’ não se limita a uma crise dos partidos e da política. Trata-se antes de uma crise mais ampla, que atinge também o campo do discurso […]” (p. 148). Mais precisamente, a crise da representação seria um efeito da disseminação do discurso da ciência:
A partir da ciência, o campo discursivo pode não ser mais o do significante – onde subsiste a presença do Outro, na forma do mistério da significação, do enigma, por exemplo, ou da metáfora –, e sim o da literalização, no qual pequenas letras intercambiáveis valem, e são definidas exclusivamente a partir da ordem de suas comutações. A formalização da linguagem que está na base da ciência produz esse esvaziamento da potência do significante para produzir equivocação, com a consequente dissolução dos laços articulados pelas diversas culturas que ligavam os significantes a determinados campos semânticos. E no roldão dessa degeneração (e virtual supressão) da diferença significante que poderia causar um sujeito a advir, o significante, tornado pura sintaxe, se condensa em letra.
Ganhando valência real, vale dizer: sua incidência torna-se compulsória, seu encadeamento, automático, prescindindo do sujeito para sustentar-se (p. 153).
Somos a rede social. Foto: reprodução.
Se a formalização da linguagem, operada pelo discurso da ciência, subjaz às redes sociais e estas consistem em um suporte crucial dos movimentos sociais contemporâneos, é possível propor que esses movimentos pressupõem um apagamento do sujeito? Não parece ser esta a posição da autora:
[…] encontraremos talvez na multiplicação das #hashtags convocando e suportando tantos movimentos sociais contemporâneos, este habitante de um desuniverso do discurso criado pela tecnociência; e a própria prática linguageira dos jovens na web configurando um modo de inserção que não se detém em analisar, discutir, decodificar a vida social, e sim de sobrecodificar, produzir, multiplicar, amontoar linguagens. E deixar-se atravessar por elas (p. 156).
Cartaz saímos do facebook. Foto: reprodução.
As jornadas de junho como possibilidade de subversão das virtualidades dessubjetivantes do discurso da ciência: isso me representa.
Em A psicanálise, o Estado e as grandes manifestações de rua, Oswaldo França Neto (2014) pensa as jornadas de junho – e os movimentos sociais contemporâneos –, a partir da tese de Alan Badiou de que “[…] o século que nos precede, o século XX, foi marcado pela crença na possibilidade de criação do Estado absoluto, totalitário, capaz de se tornar, ele próprio, o exercício deste excesso que insiste em transbordar” (p. 354). Em contrapartida, nosso tempo seria marcado por uma tentativa de evitar a irrupção desse excesso: “[…] o excesso, então, passa a ser chamado por vários nomes, como terrorismo, vandalismo, favelado, jovem em conflito com a lei […]” (p. 354-5). Se, especialmente na primeira metade do século XX, fomos dominados por uma paixão pelo real, no fim daquele século e início deste seríamos assaltados pelo temor de sua emergência.
Nessa perspectiva, as grandes manifestações de rua, que sacudiram o mundo nos anos recentes, consistiriam em um movimento de resistência à tendência ao Um, isto é, à unificação totalizante que visa eliminar os excessos. Dito de outro modo, elas fariam contraponto às racionalidades de controle e segurança, que nos governam:
Nesse movimento dialético entre o necessário e o impossível, cabe a essas insurgências públicas, marcadas pelo imponderável, presentificar o excesso constitutivo que, a duras penas, o Estado, com sua bem organizada estrutura (instituições públicas, partidos, aparatos policiais, etc), se esmera em tentar fazer inexistir (p. 356).
Porém, elas resistiriam ao Um também em outro sentido, visto serem irredutíveis às significações unívocas: nas jornadas de junho, “[…] os enunciados não cansavam de proliferar, resistindo a qualquer tipo de redução de sentidos” (p. 356).
Além disso, elas permitiriam resgatar, como contraponto ao individualismo contemporâneo, a noção de comunidade. Todavia, esta não se definiria pela referência ao Um. A partir do conceito identificação, tal como proposto por Freud, em Psicologia das massas e análise do eu, o autor sugere: “na identificação, em Freud, não produzimos elementos idênticos a si, capazes de produzir comunidades fechadas ou completas, mas tão somente sujeitos divididos em si mesmos quanto a sua identidade” (p. 359). Nesse sentido, o aforismo freudiano onde isso era, devo advir remete ao neutro e ao indeterminado, isto é, à emergência de um sujeito singular como efeito criativo de um encontro com o real. Nas grandes manifestações de rua de nosso tempo, “passamos de uma solução externa, oriunda do Um que regularia todo o excesso, para um lançamento que, de forma imanente, colocaria o excesso em movimento” (p. 361-2).
Se a tarifa não baixar a cidade vai parar. São Paulo. Foto: reprodução.
Por uma vida sem catracas. Foto: reprodução.
Psicanálise e política
Por política, entendo a gestão da violência, por meio da palavra. Nessa perspectiva, é importante retomar a distinção conceitual entre agressividade e agressão, em psicanálise. A agressividade consiste em uma força diferenciadora, ela é condição da alteridade. Já a agressão é força de eliminação da diferença, ela produz apagamento subjetivo. No sentido de agressão, a violência é traumática[1]. Ela consiste em um excesso inassimilável, que opera no sentido da desagregação. Em contrapartida, Eros é força de ligação – psíquica e social –, é o que possibilita a formação de laço. Nesse sentido, Eros e Morte – tal como Freud propõe em Mal-estar na cultura – não são entidades metafísicas, mas consistem no nome mítico das tendências à formação e dissolução de laços. De tal modelo teórico, extrai-se uma conclusão incontornável: a psicanálise é comprometida com as associações livres – aquelas movidas pelo desejo e mediadas pela palavra –, isto é, tem na democracia seu horizonte[2].
Em O filicídio na teoria psicanalítica e seus (des)enlaces na cultura brasileira, de Samanta Antoniazzi – livro que tenho a alegria e a honra de assinar como coautor[3] –, lemos Totem e tabu à luz do conceito imanência entre civilização e barbárie, proposto por Walter Benjamin, em Sobre o conceito da história: na barbárie, ainda há criação de cultura; na cultura, ainda há produção de barbárie. Totem e tabu é construído por Freud em três tempos: totemismo, horda originária, parricídio. Propomos uma torção nessa temporalidade – pai da horda, parricídio, pai totêmico:
Nossa hipótese é de que a barbárie consiste em um tempo primordial, no qual o pai é tirânico e ao qual podemos retornar a qualquer momento, impulsionados pelo mais pulsional do pulsional. Em contrapartida, a civilização consiste em um tempo regido por um ideal ético-político, no qual o pai é simbólico e o qual é necessário relançar continuamente, inspirados pela força criadora de Eros. Nessa perspectiva, o tempo do parricídio é um tempo paradoxal, pois o assassinato do pai da horda consiste em um ato bárbaro, que se encontra nos fundamentos da civilização (Antoniazzi e Weinmann, 2018, p. 176-7).
Verás que um filho teu não foge à luta. Foto: reprodução.
Note-se que é somente após a instauração da lei simbólica – em outras palavras, a posteriori – que o tempo do pai da horda é passível de ser designado barbárie. Além disso, o tempo do parricídio é o permutador entre civilização e barbárie:
O tempo do parricídio – compreendido em seu sentido forte, isto é, tempo do assassinato do pai da horda, mas também tempo da interdição do ato parricida – é o da passagem da barbárie à civilização. Porém, ele também consiste no ponto de retorno da civilização à barbárie (p. 180).
Nesse sentido, a cultura sustenta-se no desejo parricida, que mantém vazio o lugar paterno: “na medida em que o mais pulsional do pulsional tende a restaurar o tempo do Urvater [pai primordial], o parricídio tem de ser constantemente atoalizado […]” (p. 179)[4].
Não foge à luta. Foto: reprodução.
Em Mal-estar na atualidade, Birman sugere que Totem e tabu consiste no mito não de fundação da cultura, no sentido universal, mas de fundação da cultura moderna. Totem e tabu alude à morte de Deus – ato instaurador da Modernidade[5]. Nesse sentido, qual o lugar da psicanálise na Modernidade? Inspirado na leitura de As palavras e as coisas, de Foucault, e Diferença e repetição, de Deleuze, abordo esse problema por meio da proposição de dois lugares discursivos: o kantiano e o hegeliano[6]. Na vertente kantiana da Modernidade, o sujeito transcendental é pura condição de possibilidade, não tem substância, não pode ser conhecido, somente pode ser pensado. Na hegeliana, a unificação dos registros empírico e transcendental produz um sujeito absoluto, universal, transcendente: o Homem. É a esta vertente das Luzes, que as subjetividades minoritárias se opõem. Em contrapartida, o sujeito transcendental kantiano consiste em um lugar vazio, espaço das trocas simbólicas, condição da constituição de sujeitos singulares. Dito em conceitos psicanalíticos: é crucial distinguir o pai (simbólico) de suas encarnações imaginárias. Uma coisa é o lugar, outra é seu eventual ocupante. Quando o pai imaginário fixa-se ao simbólico, ele devém real – e há que se (re)matá-lo. É nesse sentido, me parece, que a democracia moderna é filha das Luzes – e condição de possibilidade da psicanálise.
Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud parte da definição de massa de intelectuais europeus do fim do século XIX e início do XX para, posteriormente, introduzir uma diferença: sua análise privilegia o vínculo da massa com seu líder. Diante do líder, a massa está em uma posição masoquista. Ao deslocar a análise para o campo das instituições, Freud refere-se ao líder como um substituto paterno. Não há, aqui, uma importante distinção metapsicológica? À luz de Totem e tabu, podemos dizer que, na massa, o pai é despótico, como na horda primitiva, e, em uma instituição, o pai é simbólico, como na organização totêmica? Se aceitamos tal distinção, podemos articular essa concepção com o conceito imanência entre civilização e barbárie, proposto por Benjamin (1994). Se, por um lado, podemos diferenciar civilização e barbárie como modos de constituição de coletivos em torno de um pai, respectivamente, simbólico ou tirânico, por outro, podemos dizer, com o filósofo judeu-alemão, que “nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie” (p. 225). Nesse sentido, ao analista da cultura não cabe assumir uma posição maniqueísta – civilização ou barbárie –, mas apontar tendências.
Não uso a palavra tendência aleatoriamente. Sabemos que é uma das traduções possíveis do termo alemão Trieb. Talvez seja o momento de lembrar que Psicologia das massas e análise do eu foi publicado no ano posterior ao lançamento de Além do princípio de prazer e de indicar o estranho parentesco entre essas duas obras. Freud inicia Psicologia das massas e análise do eu com um comentário sobre as massas, no qual realça seu enlace imediato (não mediado, simbolicamente) com um líder; logo depois, analisa as instituições, nas quais sublinha a importância do laço com um substituto paterno. Ao leitor familiarizado com o texto freudiano, não passa batido que a palavra “substituto” indica um lugar vazio, passível de ocupações múltiplas e contingentes. Assim ocorre, por exemplo, com o conceito “formações substitutivas”, em Psicopatologia da vida cotidiana. E é também nesse sentido que o fundador da psicanálise refere-se ao demônio como um substituto paterno, em Uma neurose demoníaca do século XVII. Ao passar das massas para as instituições, Freud parece indicar uma tendência, que não merece outro nome se não o de criação de cultura – ou, se preferirmos, civilizatória. Porém, em um sinistro movimento de construção do texto, Freud retoma o tema das massas, em um capítulo tardio, intitulado “A massa e a horda primitiva”. Estaria o instaurador do discurso analítico aludindo a outra tendência, que opera no sentido de restaurar um estado anterior – no caso, a barbárie? Freud escreve isso um ano antes da Marcha sobre Roma, que leva Mussolini ao poder na Itália.
Em Psicologia das massas e análise do eu, encontramos uma teoria do retrocesso político. O mais pulsional do pulsional – a tendência a restaurar um estado anterior – assombra, permanentemente, o projeto democrático moderno. Freud não compartilha do otimismo das Luzes, no que concerne à potência da razão. No entanto, o fundador da psicanálise não deixa de assumir uma posição ético-política. Em Por que a guerra?, reconhece como inexorável a tendência de retorno à barbárie, mas aposta no trabalho incessante de tecer os fios que compõem a cultura. Paradoxo freudiano: a tendência à desintegração do laço social torna possível sua reinvenção.
Violência institucionalizada
O Brasil é um país construído sobre o genocídio das nações indígenas e quase quatro séculos de escravização de povos africanos. É uma sociedade na qual, no não tão longínquo ano de 1980, a legítima defesa da honra ainda fundamentava a absolvição de um homem (Doca Street) que matara sua mulher (Ângela Diniz). É uma nação na qual uma pessoa LGBT é assassinada a cada 25 horas[7]. É um Estado que mima suas elites e extermina seus desamparados. No documento Você matou meu filho, publicado pela Anistia Internacional, em 2015, lemos: “das 1.275 vítimas de homicídio decorrente de intervenção policial entre 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro, 99,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinham entre 15 e 29 anos de idade” (p. 5). Homens negros jovens e pobres são o alvo preferencial de nossa polícia; alguém ainda acredita que somos uma democracia racial?
Uma violência digna do nome barbárie permeia o tecido social brasileiro, desde seus primórdios. No entanto, não me situo entre os que entendem as relações entre civilização e barbárie em termos dicotômicos ou maniqueístas. Em sintonia com o filósofo Walter Benjamin, em seu artigo Sobre o conceito da História, penso que as relações entre barbárie e civilização são tensas. Entre elas, há diferença e oposição tanto quanto interpenetração e mútuo pertencimento. Se, por um lado, uma violência estrutural ameaça, permanentemente, decompor o laço social em nosso país e lançar-nos na barbárie – e não são poucos os indícios desse processo, no Brasil contemporâneo –, por outro, a força criativa de Eros é o que permite a elaboração de cultura, isto é, o que possibilita que o processo civilizador brasileiro siga seu curso.
Ação policial contra protesto. Foto: reprodução.
No fim dos anos 1970, uma onda de desejo de democracia fertilizou a cultura brasileira. Sindicatos, ecologistas (tipo melancia: verde por fora e vermelho por dentro), feministas, homossexuais – “João ama Pedro, e daí?”, dizia um panfleto da época –, movimento negro, artistas, dentre outros segmentos sociais, ocupavam a cena pública, após um período de obscurantismo. Em sintonia com Leila Diniz e Fernando Gabeira, os corpos tornaram-se mais livres. Não muito depois, criou-se o SUS. E a Constituição de 1988 assegurou direitos que hoje, mais ainda do que antes, reconhecemos como fundamentais. E quis o destino que essa onda desejante fecundasse também nossa democracia representativa, gerando nela um partido nascido das bases da sociedade. Ao longo do tempo, vimos esse partido realizar alianças estranhas e adotar métodos de governabilidade sinistros, mas éramos pragmáticos: nunca antes na história desse país houve algo semelhante, em termos de inclusão social. Até que esse partido decide construir estádios de futebol, em vez de escolas e postos de saúde, a fim de consolidar um projeto de poder. Algo se rompe, na esfera da representação.
Isso não me representa!
As jornadas de junho de 2013 frequentemente são apontadas como o marco zero de um retrocesso político e cultural. Não apenas as viúvas da ditadura de 1964 saem do armário; uma política de linguagem, marcada pelo maniqueísmo, pela univocidade do sentido e por uma lógica identitária (a diferença irrompe como ameaça) salta para o primeiro plano. “Coxinhas x petralhas” seria a versão nacional do “choque de civilizações”, da “luta do bem contra o mal”, posterior à destruição do World Trade Center – ato inaugural do século XXI? Escutaríamos, aqui, ecos da novilíngua, de 1984? É possível. No entanto, realço outra tendência. Situar as jornadas de junho como marco instaurador do endurecimento discursivo não é, em si mesmo, um efeito desse endurecimento? Em nossa experiência de sujeitos enlaçados ao significante Brasil, não somos capazes de extrair outros sentidos daqueles acontecimentos, que abram brechas na tendência à fascistização discursiva?
Não. Foto: reprodução.
As jornadas de junho contêm, em si, o antídoto para a tendência ao endurecimento discursivo. Se tomamos a frase “isso não me representa!” como analisador das manifestações de 2013, podemos dizer que, por um lado, ela aponta para a anomia – ausência de discursos que possibilitem negociarmos nossas diferenças, na esfera pública –, mas, por outro, ela ainda se inscreve na ordem do discurso. “Isso não me representa!” nos lembra que a esfera da representação é um lugar fundamentalmente vazio, ainda que passível de ocupações múltiplas e contingentes. Precisamente o “não”, em “isso não me representa!”, permite a inscrição de um sujeito no laço social, na medida em que opera um corte entre a função simbólica da representação e suas encarnações imaginárias. “Isso não me representa!”, em sua articulação discursiva, atualiza o assassinato do pai da horda, isto é, reafirma a morte de Deus como fundamento do laço democrático moderno. Como psicanalista, sou movido pelo desejo de escutar o que ainda ecoa das grandes manifestações de junho de 2013.
Referências
Antoniazzi, S.; Weinmann, A. (2018). O filicídio na teoria psicanalítica e seus (des)enlaces na cultura brasileira. Porto Alegre: Criação Humana.
Balloussier, A. (2017, dezembro 29). ‘Não sei se é o momento de unificar a esquerda, não’, diz Marcelo Freixo. Folha de S. Paulo (online). Recuperado em 11 fevereiro, 2018, de: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/12/1946626-nao-sei-se-e-o-momento-de-unificar-a-esquerda-nao-diz-marcelo-freixo.shtml.
Benjamin, W. (1994). Sobre o conceito da História. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense.
Birman, J. (2005). Mal-estar na atualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Cardoso, U. (2013). A pertinência pública do ato psicanalítico: a relação de solidariedade entre o sujeito do inconsciente e o sujeito da esfera pública. Curitiba: Giruá.
Costa-Moura, F. (2014). Proliferação das #hashtags: lógica da ciência, discurso e movimentos sociais contemporâneos. Ágora, 17, 141-158.
Figueiredo, L. C. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta.
França Neto, O. (2014). A psicanálise, o Estado e as grandes manifestações de rua. Tempo Psicanalítico, 46(2), 351-364.
Gondar, J. (2012). Ferenczi como pensador político. Cadernos de Psicanálise, 34(27), 193-210.
Horta, F. (2017, dezembro 30). O que não entendemos direito ainda sobre 2013? GGN: o jornal de todos os Brasis (online). Recuperado em 11 fevereiro, 2018, de: https://jornalggn.com.br/blog/fernando-horta/o-que-nao-entendemos-direito-ainda-sobre-2013-por-fernando-horta.
Orwell, G. (2009). 1984. São Paulo: Companhia das Letras.
Ricci, R. (2018, janeiro 3). A insistência em classificar 2013 como abre-alas para a direita. Facebook (online). Recuperado em 11 fevereiro, 2018, de: https://www.facebook.com/ruda.ricci/posts/10155489139336843.
Você matou meu filho! Homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. (2015). Rio de Janeiro: Anistia Internacional.
Weinmann, A. (2014). Infância: um dos nomes da não razão. Brasília: Editora da UNB.
Weinmann, A; Medeiros, R; Mano, G. (2017). Deus está morto. Viva o autômato! Estudos e Pesquisas em Psicologia, 17(1), 225-237.
Notas
[1] Sobre esse tema, recomendo a leitura de Ferenczi como pensador político, de Jô Gondar.
[2] Uma belíssima reflexão sobre esse tema, em diálogo com a filosofia política de Hannah Arendt, encontra-se em A pertinência pública do ato psicanalítico: a relação de solidariedade entre o sujeito do inconsciente e o sujeito da esfera pública, de Ubirajara Cardoso.
[3] E a honra pode ser imerecida, mas a alegria nunca o é, já dizia Barthes, em A aula.
[4] A leitura do conceito pulsão de morte, implícita nos comentários acima, inspira-se na crítica endereçada por Luís Claudio Figueiredo, em Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi, às leituras dualistas da segunda teoria freudiana das pulsões – Eros e Morte. Ela parte do conceito freudiano fusão pulsional.
[5] Sobre esse tema, remeto ao artigo Deus está morto. Viva o autômato!, de Weinmann, Medeiros e Mano.
[6] Como não sou filósofo, peço que o leitor leia esses comentários com cautela. Uma análise mais detida desses lugares discursivos é realizada em Infância: um dos nomes da não razão, de minha autoria.
[7] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-05/dia-de-combate-homofobia-sera-marcado-por-debates-em-salvador.
Referências de imagens (por Psicanalistas pela Democracia)
Ação policial contra protesto. Foto: reprodução. Disponível em https://marxismo21.org/junho-2013-2/ . Acesso em 30/08/2018
Manifestações durante as Jornadas de Junho em 2013 no Brasil. Foto: Mídia Ninja. Reprodução. Cinco anos depois, o que ficou das jornadas de junho? Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2018/06/15/cinco-anos-depois-o-que-ficou-das-jornadas-de-junho/ . Acesso em 30/08/2018.
Manifestantes em São Paulo em junho de 2013. Foto: reprodução. Arquivo: aos amigos de esquerda que estão confusos neste momento. Disponível em https://movimentorevista.com.br/2018/06/arquivo-aos-amigos-ativistas-de-esquerda-que-estao-confusos-neste-momento/ Acesso em 30/08/2018.
Não. Foto: reprodução. Disponível em https://brasil.elpais.com/brasil/2015/01/15/opinion/1421362752_961392.html . Acesso em 30/08/18.
Não foge à luta. Foto: reprodução. Disponível em https://ensaiosdegenero.wordpress.com/2015/04/30/jornadas-de-junho-ou-15-de-marco/ . Acesso em 30/08/2018.
Por uma vida sem catracas. Foto: reprodução. Disponível em http://www.ebc.com.br/cidadania/2014/06/protestos-completam-um-ano-e-violencia-policial-se-repete . Acesso em 30/08/2018.
Saímos do facebook. Foto: reprodução. Disponível em http://tectriadebrasil.com.br/blog/o-poder-das-midias-sociais-nas-manifestacoes-populares/ . Acesso em 30/08/2018.
Se a tarifa não baixar a cidade vai parar. São Paulo. Foto: reprodução. Disponível em https://praquetantodrama.wordpress.com/2013/06/12/se-a-passagem-nao-baixar-sao-paulo-vai-parar/ Acesso em 30/08/2018.
Somos a rede social. Foto: reprodução. Disponível em https://jornalggn.com.br/noticia/o-saldo-dos-protestos-de-junho-e-das-urnas-por-assis-ribeiro . Acesso em 30/08/18
Verás que um filho teu não foge à luta. Foto: reprodução. Disponível em https://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/com-heranca-de-protestos-e-polarizacao-jornadas-de-junho-completam-tres-anos-3pobz6f2u6wo3vcql7c6bsgn1/ . Acesso em 30/08/18.
Amadeu de Oliveira Weinmann é psicanalista e professor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura da UFRGS.