Meu trabalho envolve imagens; parte ou, de alguma forma, sempre volta a elas. E, como forma de manter em mente sua primazia em minha pesquisa poéticas, comecemos por uma delas.
Venho desenvolvendo um caderno como uma espécie de índice desorganizado, de manual ao contrário, de repositório de perguntas, de ideias e de trabalhos que partem todas de um centro comum: o livro Se um viajante numa noite de inverno, de Ítalo Calvino.
Se penso que devo escrever um livro, todos os problemas de como esse livro deve ser e como não deve ser me bloqueiam e me impedem de ir adiante. Se, ao contrário, penso que estou escrevendo uma biblioteca inteira, sinto-me imediatamente aliviado: sei que qualquer coisa que eu escreva será integrada, contradita, equilibrada, amplificada, sepultada nas centenas de volumes que me resta escrever. (CALVINO, 1990) [1]
Ter como projeto escrever não um livro, mas uma biblioteca inteira. O fracasso está desenhado.
No centro do texto de Calvino está o que podemos chamar de crise da representação: a falta de espaço para os tradicionais textos literários e lineares em um mundo fragmentado, múltiplo, acelerado. Hoje o romance estaria condenado ao tipo de leitura espinhosa de obras que se debruçam sobre si mesmas ao buscar saídas para a literatura, ou aos textos que repisam sobre passos já caminhados.
Calvino, em Se um viajante…, busca uma alternativa e cria um romance que é, ao mesmo tempo, uma experiência próxima das vanguardas literárias e um texto que transita fluidamente pelos gêneros tradicionais; uma reflexão sobre a escrita e uma homenagem ao prazer da literatura (em sua produção e em sua leitura). E faz isso nos colocando como protagonistas dentro do livro. O texto começa dirigindo-se diretamente a nós e ressaltando o fato de estarmos abrindo o novo livro de Italo Calvino, chamado Se um viajante numa noite de inverno, falando das expectativas que isso envolve. Então, o leitor (agora transformado em personagem, não mais o real, não mais o eu) passa a a ser narrado em terceira pessoa, começa a ler o livro dentro do livro, que conta uma história que se passa em uma estação de trem.
Nesse capítulo, homônimo ao romance de Calvino, o personagem principal precisa entregar uma mala sem saber para quem, onde ou por quê. Sabe apenas que, por meio de um encontro fortuito, vai dizer a senha e identificar o destinatário. Sua tarefa não é cumprida e a mala não encontra seu destino. Não por acaso, a senha é “Zenão de Eleia”[2]. O romance volta ao leitor (o personagem, não o real) quando o livro que ele estava lendo é interrompido por um problema de impressão: o texto só continha esse trecho, repetido por todo volume do livro, como se os fólios tivessem sido encadernados equivocadamente. A partir dali, a busca do leitor por continuar a leitura, se transforma em uma série de textos começados e não finalizados dentro do próprio livro, cada um contendo o seu próprio núcleo narrativo.
A primeira contradição
Começar. Foi você quem o disse, Leitora. Mas como determinar o momento exato em que começa uma história? Tudo começou desde sempre, a primeira linha da primeira página de todo romance remete a alguma coisa que já sucedeu fora do livro.[3]
Um dos fragmentos de um de meus trabalhos, chamado Pentimenti, é um projeto para um alvo de vidro. Coloquemos o livro no centro desse alvo; e é mirando esse centro que venho desenvolvendo uma série de trabalhos. Eles são pensados sempre aos pares: duas imagens que se opõem, que se contradizem, que se colocam em tensão. Então, a partir desses dois trabalhos, é gerado um novo par, com perguntas que se opõe ao seu par formador. O sistema está configurado.
Falemos sobre a primeira dupla de trabalhos: Vago é um caderno composto de uma série de aquarelas sobre a paisagem. Utilizando sempre a mesma grade, faço uma espécie de catalogação subjetiva das cores de meu entorno. Registro em cada desenho as coordenadas geográficas, a data e a hora de sua finalização. O trabalho envolve, para mim, perguntas sobre como o desenho pode ser abstração da paisagem, o registro de um percurso e a busca por tornar o instante mais espesso, além de exercitar o desenho como observação direta.
Alguém olha pelas janelas toldadas do bar, abre a porta de vidro, e no interior o ar é nevoento, como se visto através de olhos míopes ou irritados por algum cisco. São as páginas do livro que estão embaçadas como os vidros das janelas de um velho trem; sobre as frases paira uma nuvem de fumaça.[4]
Essa passagem do texto de Calvino relaciona-se diretamente com a ideia por trás de Vago: o trabalho como uma espécie de vitral embaçado através do qual se vê uma paisagem.
Preciso é uma série de 1001 desenhos de uma folha de Ginkgo biloba – popularmente conhecida como “nogueira do Japão”. É um exercício sobre as possibilidades do olhar, sobre as possibilidades de abordagens gráficas de um mesmo assunto, uma reflexão sobre o desenho como esforço, como tarefa, como estratégia de repetição e de sobrevivência
Passando de novo sob a nogueira-do-japão, eu disse ao senhor Okeda que, na contemplação da chuva de folhas, o fato fundamental não era tanto a percepção de cada uma das folhas, mas sim a distância entre uma folha e outra, o ar vazio que as separava. O que me parecia ter entendido era isto: a ausência de sensações em grande parte do campo perceptivo é a condição necessária para que a sensibilidade se concentre espacial e temporalmente, assim como na música o silêncio de fundo é necessário para que sobre ele se destaquem as notas. [5]
Esses dois trabalhos partem de ideias em constante aproximação e afastamento.
Afastamentos e aproximações
Podemos falar de algumas aproximações. Procedimentos restritos: a grade, o retângulo, a observação direta em Vago; a restrição a apenas uma imagem que dá origem a 1001 desenhos em Preciso. Eles envolvem sempre a ideia de não finito: em Vago, pelo caráter interminável do percurso – sem começo ou fim, apenas duração -, pela grade que pode ser sempre continuada; em Preciso, por conta da uma busca por exercitar possibilidades gráficas inesgotáveis, pelo próprio número de 1001 desenhos – como na coleção de contos árabes de As Mil e Uma Noites. Cada um dos trabalhos parte de uma proposição simples, de um sistema que, após colocado em movimento, pode permanecer em inércia: a grade e a catalogação subjetiva de cores em Vago; os dois desenhos sobrepostos, um que parte de um traçado e o outro de observação em Preciso.
Alguns afastamentos. Enquanto Vago é um deslocamento físico, Preciso é um deslocamento perceptivo e intelectual. Vago é um exercício de não-figuração, Preciso, de figuração. Essas oposições e categorizações, se olhadas detidamente, podem ser invertidas. O que nos leva a falar sobre contradição e antinomia.
Contradição e antinomia
Segundo Fredric Jameson (1997)[6], antinomia e contradição podem ser definidas como: a antinomia tende à resolução, já que é composta por dois termos radicalmente incompatíveis; a contradição é feita de parcialidades e aspectos, em que os termos são parcialmente incompatíveis e tem mais a ver com uma configuração, com um estado de coisas que se coloca em suspenso, em tensão. Vivemos, talvez, sob uma época do reinado da primeira. Porém, o campo da arte, do pensamento, da reflexão, ainda são os lugares onde podemos exercitar a segunda.
Podemos aproximar esse entendimento de contradição da ideia de neutro, de Maurice Blanchot (2010)[7] como algo que poderíamos, por um lado, entender como “nem isso, nem aquilo”, como uma escolha ativa e consciente por nenhum dos dois lados, mas podemos entender também como o “isso e aquilo”, como a violência de movimentos contraditórios que não se apaziguam enquanto – aqui falando de arte – o trabalho mantém seu status de trabalho, enquanto ainda está em funcionamento e não foi cooptado ou desmontado por forças externas (do capital, do mercado, da crítica positivista, etc).
O neutro é o desconhecido, mas o desconhecido que não é nem objeto nem sujeito e, principalmente, não é o desconhecido no sentido do “ainda não conhecido” ou do “impossível de conhecer”, É o desconhecido – na arte, na poesia, no pensamento, apresentado como desconhecido e não como desvelado; indicado, mas não revelado. O desconhecido se mantém em uma relação neutra, nem revelado pela luz, nem ocultado pela escuridão. Nem lucidez, nem alucinação. O fora absoluto-exterior como o ponto mais íntimo de um trabalho, o extremo limite do espaço como o lugar onde o autor/artista deve se manter para que em algum momento, tudo comece.
Desenho como e como desenho
Entendo o trabalho como desenho dos espaços, das distâncias, do que está entre, do não dito: desenho das passagens entre cores em cada etapa de Vago e, depois, entre os próprios desenhos; desenho dos espaços entre as possibilidades do olhar em Preciso.
Falo aqui da arte, e especialmente do desenho (já que me é mais próximo), como prática ideacional, em que pensamento-em-ação e ação-como-pensamento são duas facetas simultâneas de uma mesma prática (GARNER, 2008)[8]. Desenho como verbo conjugado no gerúndio – pensando – e não particípio – pensado. Desenhar seria navegar no espaço operador “e”, “isso e isso”, “aquilo e isso”, a conexão de objetos e objetos, de espaços e espaços, de assunto e objeto, de objeto e espaço, conhecido e desconhecido, para exercitar o poder tornar-se possível.
É daí, creio, que deriva a potência do desenho e sua importância em minha pesquisa: o desenho como campo adequado para pôr em atrito ideias conflitantes, para discutir o que é vago em minha prática – no sentido de vacância, de ambiguidade e de rarefação – para pensar na arte como iminência.
Colocando-se em oposição a esse par, surge o próximo par de trabalhos.
Uma distância intransponível
Pentimenti é uma investigação do Paradoxo de Zenão através do desenho: uma flecha, para atingir seu alvo, precisa antes percorrer a metade do caminho entre o arco e seu destino; para alcançar a metade do caminho, ela precisa antes percorrer a metade da metade e, assim, ao infinito, em uma eterna divisão que a faria parar no ar e cair aos pés do atirador. O trabalho toma a forma de um arquivo de anotações e desenhos, como registro de estratégias para entender o paradoxo: estudos matemáticos, proposições de trabalhos artísticos, estudos filosóficos. Assim como a flecha não chega ao alvo, minha tentativa de esgotar as abordagens do problema nunca chega ao êxito. O trabalho coloca em tensão a ideia de desenho como rascunho e como produto final, como registro de um processo, como um campo de anotação e de catalogação.
É a ideia de fracasso como pressuposto do processo. Durante minha pesquisa poética, à medida que o destino se aproxima, a distância final a ser percorrida se divide infinitamente e a tensão entre pergunta inicial e resposta nunca se resolve. É desse devaneio, ou do valor de verdade dessa fantasia no confronto com um certo “princípio de realidade” que vejo o valor do impulso artístico para meu trabalho. A fantasia utópica obtém seu sucesso não por conseguir ultrapassar esse princípio de realidade, ou enganá-lo, mas justamente pelo que ele revela desse princípio, por demonstrar o que somos incapazes de desejar. É por conta disso que o fracasso está contido na Utopia, ele é sua vocação. É a imaginação utópica que nos faz ver o que não podemos imaginar, porém, nos dá a ver não por sua matéria, mas sim por seus buracos, através de suas faltas. Diz Jameson
[…] portanto, esse é o sentido em que a vocação da Utopia é o fracasso; o seu valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em torno das nossas mentes, nos limites invisíveis que nos permite detectar, por mera indução, no atoleiro das nossas imaginações no modo de produção, a lama da época presente que se gruda nos sapatos da Utopia alada, imaginando que isso é a própria força da gravidade. […] o texto utópico realmente nos dá a vívida lição daquilo que não podemos imaginar: só que não o faz pela imaginação concreta, mas sim por meio dos buracos no texto, que são a nossa própria incapacidade de ver além da época e de suas conclusões ideológicas. (p. 85)[9]Voltemos ao livro e ao personagem que precisa entregar a mala e reconhecer seu companheiro através da senha “Zenão de Eleia”. Entendo isso como uma metáfora poderosa sobre meu fazer artístico: a arte como algo que se carrega sem necessariamente saber o porquê, qual matéria ela contém ou qual exatamente é seu conteúdo. O “eu” artista – assim como o personagem da história – impelido pela necessidade de cumprir uma tarefa sem ter total compreensão de seu propósito sem nunca ter a possibilidade de obter êxito nessa empreitada, a não ser por aproximações.
Identificar uma fronteira ou chegar em um limite, eis aí uma ideia de fracasso. Chegar no limite da imaginação, da capacidade de entendimento de um problema, das possibilidades de produção materiais. Ainda assim, encontrar o limite é empurrar o entendimento do problema à frente, mesmo que na ordem do infinitesimal. Por isso,
[…] quando identificamos uma fronteira ou limite […] ainda assim modificamos aquela situação limitada, a situação ou a experiência de limites absolutos, mesmo que levemente, ao delinear a situação como um todo dentro de si mesmo e transformando agora o limite em parte daquilo que ele mesmo tinha até então limitado e portanto, tornando-o por sua vez sujeito à modificação. (p. 14)[10]Podemos pensar o processo utópico como um desejo de desejar, como um conjunto de narrativas sem precedentes.
E começo aqui e meço aqui este começo…
A repetição tem papel fundamental nesse desejo de desejar. Vivemos em uma tensão constante entre o infinito e o indefinido (CALVINO, 1990)[11]. O infinito, já que inconcebível por nós, torna-se aterrador e, como resposta contentamo-nos com o indefinido, iludindo-nos que esse é ilimitado. O limitado – o sistema, a série, a análise combinatória – pode aparecer justamente como uma resposta humana possível para lidar com a ideia de infinito.
Veio-me a idéia de escrever um romance feito só de começos de romances. O protagonista poderia ser um Leitor que é continuamente interrompido. O Leitor adquire o novo romance A do autor Z. Mas é um exemplar defeituoso, e ele não consegue ir além do início… O leitor volta à livraria para trocar o volume…[12]
O sistema retorna
A utilização de um sistema em minha prática é uma forma de criar uma inércia para o trabalho que, uma vez colocado em movimento, tende a seguir em produção. É uma forma de dar vazão a iniciativas paralógicas, menos conscientes, a que o próprio fazer produza mais energia para sua execução.
Como eu escreveria bem se não existisse! Se entre a folha branca e a efervescência das palavras e das histórias que tomam forma e se desvanecem sem que ninguém as escreva não se interpusesse o incômodo tabique que é minha pessoa! O estilo, o gosto, a filosofia, a subjetividade, a formação cultural, a experiência de vida, a psicologia, o talento, os truques do ofício: todos os elementos que tornam reconhecível como meu aquilo que escrevo me parecem uma jaula que limita minhas possibilidades. Se eu fosse apenas uma mão decepada que empunha a pena e escreve… Mas o que moveria essa mão? A multidão anônima? O espírito dos tempos? O inconsciente coletivo? Não sei. Não quereria anular a mim mesmo para tornar-me o porta-voz de alguma coisa definida. Só o faria para transmitir o escrevível que espera para ser escrito, o narrável que ninguém narra.[13]
E onde isso continua? Existe um ponto de chegada? Onde ele termina? Onde continua o desenrolar desse trabalho?
[…] talvez tenha sido engolido pelo abismo aberto na brusca interrupção do romance.[14]
[1] CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. E-book. Paginação irregular
[2] Zenão de Eleia, filósofo pré-socrático que tinha como método a elaboração de paradoxos, atendo-se principalmente a pensar sobre o movimento. Foi o autor do que viria a ser chamado de Paradoxo de Zenão. Voltaremos a esse paradoxo na sequência do presente texto.
[3] CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. E-book. Paginação irregular
[4] CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. E-book. Paginação irregular
[5] CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. E-book. Paginação irregular
[6] JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Editora Ática, 1997.
[7] BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita 3: a ausência de livro, o neutro, o fragmentário. São Paulo: Escuta, 2010.
[8] GARNER, Steve (org). Writing on drawing:essays on drawing practice and research. Chicago: Intellect Books, 2008
[9] JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Editora Ática, 1997.
[10] JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Editora Ática, 1997.
[11] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
[12] CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. E-book. Paginação irregular
[13] CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. E-book. Paginação irregular
[14] CALVINO, Italo. Se um viajante numa noite de inverno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. E-book. Paginação irregular
*https://www.google.com.br/search?rlz=1C1AWFC_enBR764BR764&tbm=isch&sa=1&ei=28C-WuPEOIbywATQpLfwBg&q=marcelo+armesto+vago&oq=marcelo+armesto+vago&gs_l=psy-ab.3…24418.25514.0.25804.5.5.0.0.0.0.199.572.0j4.4.0….0…1c.1.64.psy-ab..1.1.199…0i24k1.0.-FZDiKPoiZg#imgrc=tYzA4PLU5RtjoM:
Autor: Marcelo Armesto dos Santos é artista visual.
Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem realizado em dezembro de 2017, pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte e Política /UFRGS, PPG Psicanálise: Clínica e Cultura/UFRGS.