“Sra. V.B. é uma mulher de quarenta e três anos. Ela é executiva em uma empresa high-tech, matemática de formação com pós-graduação em informática. Adorava os estudos, devorava os livros, fazia vários cursos. É admitida em uma empresa onde imediatamente é valorizada e trabalha na concepção de ferramentas informatizadas. Em seguida, passa a trabalhar no setor de estatística. Paralelamente ao seu trabalho, faz um curso no Institut d’Administration dês Entreprises (IAE); depois, atua no setor de recursos humanos de uma multinacional onde, bilíngüe faz uma carreira brilhante. Várias vezes é contatada por caçadores de talento para outros empregos mais atraentes, que recusa para não se afastar da família (é casada e tem três filhos). [1] Seu trabalho na empresa é diversificado. Ela conclui sucessivamente várias missões importantes, que lhe valem calorosas congratulações. Em 1997, assume a responsabilidade pelo setor de treinamentos da empresa. Seu salário é entre quatro mil e quinhentos e cinco mil euros por mês (em 2002). Em 1999, seu marido e ela decidem adotar uma criança. As responsabilidades familiares são pesadas e ela pede para trabalhar em tempo parcial (julho de 2000). Não podem recusar seu pedido, mas ele não é bem visto. Oito meses mais tarde, em fevereiro de 2001, ela trabalha em tempo parcial fazendo oitenta por cento da carga horária normal, que manterá até setembro de 2002. Nesse intervalo, seu superior hierárquico é demitido em decorrência de um conflito de rivalidade com um de seus colegas. É este quem permanece na empresa e herda o cargo. Ele parece querer, ao chegar a esse cargo, afastar as pessoas que mantinham boas relações com seu rival. A sra. V. fazia parte desse grupo. Os outros deveriam ir embora ou aceitar uma transferência. A partir do final de 2001, as responsabilidades da sra. V. são retiradas. Agora, ela deve submeter seu trabalho ao gerente de recursos humanos, de nível hierárquico igual ao seu. No organograma seguinte, deve submeter seu trabalho a um líder de equipe de nível hierárquico muito inferior ao seu. Atribuem-lhe, então, uma missão muito abaixo das suas competências, normalmente confiada a uma secretária. Ela é vítima de diversos pequenos trotes: pede-se, com urgência, que faça um dossiê (relatório). Ela trabalha nisso dia e noite e este é posto de lado sem sequer ser examinado. Convocam-na para uma reunião com hora marcada; fazem-na esperar uma hora e então lhe anunciam que a reunião foi adiada. E isso repetidas vezes. Em alguns meses, ela é rebaixada de função […] sucessivas vezes. Compreendendo não ter mais futuro nesse setor, ela procura saídas: um curso na ESSEC (Escola Superior de Ciências Econômicas e Comerciais, em francês) que, pouco tempo atrás, havia-lhe sido recomendado calorosamente para poder aceder a responsabilidades ainda maiores que quando estava em seu nível mais alto da empresa. Ela segue esse curso quase até o fim. Porém, estando desvalorizada pela empresa, dois dias antes de ir para o último módulo, quando as passagens e as reservas de hotel estavam adquiridas, sua viagem é vetada, o que a impede de validar seu diploma e mina todos os esforços realizados (setembro de 2002). Ela pede transferência para outro setor. Então, é obrigada a passar por testes de contratação reservados aos novatos e aos candidatos externos. Nesse ambiente, esse tratamento peculiar que lhe é imposto é ostensivamente humilhante, senão difamante. No entanto, ela se submete a isso sem protestar. Não contra-ataca, não se queixa, mas fica deprimida, em 2002, a ponto de ser obrigada a tirar uma licença-saúde, durante a qual recebe tratamento psiquiátrico ambulatorial. [2] No início de janeiro de 2003, retorna ao trabalho. Seu chefe a aconselha a pedir uma prorrogação de sua licença, pois não tem nenhuma tarefa para ela, que retorna quinze dias depois. Atribuem-lhe novamente a missão subalterna de secretariado que já havia assumido. Missão, é preciso salientar, que não tinha servido para nada [3] e a respeito da qual a empresa nada fez. [4] Oito dias depois (janeiro de 2003), suicida-se, jogando-se de cima de uma ponte situada próxima a empresa. Ela deixa uma carta pedindo à representante da comissão dos trabalhadores para torná-la pública após sua morte.”(DEJOURS, 2017, p.123-125)
Este caso ocorreu com uma trabalhadora na França e é relatado por Christophe Dejours em livro organizado por ele mesmo, intitulado Psicodinâmica do Trabalho: casos clínicos, mas poderia ser a história de qualquer trabalhador ou trabalhadora daqui do Brasil ou de outro país do mundo. O suicídio é um fenômeno universal, presente na história da humanidade sendo tratado das mais diferentes formas dependendo da cultura vigente, bem como do período histórico em questão nos quais o suicida está inserido, variando desde admiração, hostilidade, punição, irracionalismo ou mesmo superstição. Na contemporaneidade, o suicídio é visto como uma questão de saúde pública mundial, devido ao seu crescimento exacerbado nos últimos anos, principalmente entre os jovens, despertando por isto, olhares de diversas áreas do conhecimento. Os dados estatísticos neste caso, ou no caso daqueles relacionados especificamente ao trabalho são irrelevantes, pois concordamos com Dejours e Bègue (2010), os quais afirmam que um único suicídio, no local de trabalho afeta todos os trabalhadores uma vez que exprime a profunda degradação do social do trabalho, portanto merece que nos debrucemos na tentativa de compreensão. No que diz respeito aos suicídios e tentativas de suicídio, especificamente relacionados ao trabalho, Dejours e Bègue (2010) afirmam que eles apareceram a
partir dos anos 1990 em países ocidentais. Entretanto, é apenas a partir do ano de 2007, na França, que o problema passou a ser divulgado no espaço público por jornalistas que cobriram a série de suicídios ocorridos nas sedes de empresas como Renault, Peugeot e Électricité de France. Sociedades como a brasileira, em que vemos a superexploração do trabalhador, a qual decorre principalmente da precarização estrutural do trabalho, amplamente disseminada, configurando uma nova morfologia do trabalho (mutações), conforme Antunes (2014) produz efeitos sobre aqueles que trabalham. Sendo assim, acreditamos que as relevantes transformações ocorridas nas relações entre capital e trabalho, que produzem efeitos nas relações sociais, promovem o surgimento deste tipo inteiramente novo de sofrimento no trabalho (DEJOURS, 2017) – o suicídio ou as tentativas de suicídio no local de trabalho. Tais configurações acarretam conseqüências para a saúde do trabalhador, visto a centralidade do trabalho na vida dos sujeitos, bem como de seu papel como formador de identidade. A construção de identidade, segundo Merlo (2013, 2014), estaria relacionada ao reconhecimento da qualidade do serviço realizado, proveniente das avaliações de julgamento efetuadas por atores com os quais aquele que trabalha encontra-se constantemente em interação. Os sucessivos reconhecimentos propiciam a transformação do sujeito pelo olhar do outro, da sociedade, que demonstram seu progresso na vida. Com relação à centralidade do trabalho, Merlo (2014) enfatiza que esta, é determinante no que se refere à produção de saúde e doença no âmbito do trabalho, na medida em que a organização do trabalho deixa ou não lugar para exprimir o “[…] sofrimento, cooperação e reconhecimento […]” (PEREZ, p. 176, 2014). Diante da disseminação da Cultura do Management, na qual é preciso ser eficaz e produtivo todo o tempo, para sobreviver e que vê a competição como algo natural, ao qual o trabalhador deve se adaptar. Segundo Gaulejac (2007), a Cultura do Management é uma máquina de produção e o homem está a serviço dela, ou seja, ele é visto como uma engrenagem, uma parte da máquina, um objeto. Cada ser humano é medido de acordo com critérios financeiros, de acordo com a rentabilidade que é capaz de gerar. Pergunto-me: neste lugar, quais as possibilidades de saúde e adoecimento/sofrimento?
Surge novamente o questionamento: como fica a saúde mental do trabalhador que é considerado um objeto, um número? Onde é preciso sempre ser “o melhor”? E ser o melhor é literalmente ser perfeito, ser o “número 1”, gerando uma competição infindável. Entra-se na lógica do “pode um” (SOUSA, 2017), do sucesso como obrigação, pois quem não é bem sucedido não é visto, é invisível, perde seu lugar. Mas como suportar a perda da humanidade decorrente daquela lógica, que implica a eliminação do semelhante? O que fazer com o sofrimento ético que emerge desta conjuntura, qual o destino deste? Ora, o fracasso é visto como falta de implicação, como uma falha do trabalhador em gerenciar seu trabalho, sua vida. Neste sentido, parar de progredir seria o equivalente à morte? Morte simbólica que poderia culminar à morte no real (partir ao ato)? Ou, a morte colocada em ato estaria relacionada a luta contra a perda da humanidade?
Tomando a afirmação de Sousa (2015), de que o sentido da utopia não é o de ir em direção à realidade, mas o de ir contra ela; não estariam os sujeitos contemporâneos que “escolhem” o suicídio como forma de socorro, impedidos de alguma forma, de visualizar a vida para além da realidade? Ou conforme afirma Bloch (2005), com os olhos encobertos pela fuligem de uma névoa obscura, que os impede de ter esperança? Que os deixa sem saída? Ou não conseguem ultrapassar a obscuridade do instante, como na Utopia de More? Ou ainda, não conseguem ver como saída, nada além de um ato tão radical quanto o de tirar a própria vida? Aqui talvez, buscando a Utopia no sentido corrente (compreendido no saber comum), de acabar com a dor dando um fim definitivo a ela.
Mas como fazer viver a Utopia de More, se esta deve ser pensada no singular, porém afirmada no coletivo e este se encontra cada vez mais enfraquecido? Isto porque hoje, no mundo do trabalho, dentre todos os seus paradoxos, ao mesmo tempo em que é preciso trabalhar em equipes, a concorrência e o individualismo são exacerbados, até mesmo incitados. Logo, qualquer componente de uma equipe, também é concorrente do trabalhador. Se até algum tempo atrás, afirmam Dejours e Bègue (2010), quando um trabalhador sofria de um mal-estar que ficava evidente diante de seus pares, após os primeiros momentos de deboche, os sentimentos de solidariedade emergiam, o sujeito era amparado e protegido. O que podemos perceber no contemporâneo é que essas condutas de solidariedade que faziam função de prevenir descompensações foram banidas da rotina e cultura do trabalho. Tal conjuntura demonstra conforme Dejours e Bègue (2010) uma profunda desestruturação dos coletivos. Disto decorre um sentimento intenso de solidão e desamparo por parte dos trabalhadores. A solidão é sentida em meio a uma comunidade, a comunidade do trabalho, a qual na maioria das vezes é comunidade só no nome, encontrando-se imersa em uma desestruturação de suas relações sociais no trabalho. Então me pergunto como resgatar essas relações? Como construir uma utopia do trabalho? Seria esta a via a ser pensada como forma de entender os suicídios ou tentativas de suicídio no local de trabalho? Uma pergunta mais radical: este deve ser evitado? Ou é o modo de organização do trabalho que deve ser discutido? Se este for o caso, as organizações estão dispostas a efetuar modificações em benefício da saúde do trabalhador? Se a resposta for negativa, como mobilizá-la, a fim de que compreendam a necessidade de olhar para os sujeitos trabalhadores? Em outras palavras, é possível provocar furos no mundo do trabalho, que é uma repetição de nossa vida, de nossos modos de subjetivação, a fim de que a esperança e a utopia permaneçam vivas?
Notas
[1]Algo inaceitável na cultura do trabalho contemporâneo, onde os trabalhadores precisam estar sempre à serviço da empresa, para demonstrar engajamento. [2]A depressão/adoecimento, no caso da Sra. V. pode ser compreendida como um pedido de socorro, em outras palavras, a doença como sintoma de uma organização doente a qual leva a trabalhadora a adoecer. [3] Podemos nos perguntar neste ponto do relato: estaria a serviço de fazer com que a Sra V. pedisse demissão? Mostrar sua incompetência? Fazer com que desistisse? [4] Ou temos um exemplo de assédio moral como ferramenta de gestão?Referências
ANTUNES, Ricardo. Desenhando a nova morfologia do trabalho e suas principais manifestações. In: MERLO, A. R. C.; BOTTEGA, C. G.; PEREZ, K. V. (Orgs.). Atenção à saúde mental do trabalhador: sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho. Porto Alegre: Evangraf, p. 30- 51, 2014.
BLOCH, Ernst. O Principio Esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2005.
DEJOURS, Christophe; BÈGUE, Florence. Suicídio e trabalho: o que fazer. Trad. Franck Soudant. Brasília: Paralelo 15, 2010.
DEJOURS, Christophe. Novas formas de servidão e suicídio. In: DEJOURS, C. Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos. Porto Alegre: Dublinense, 2017.
GAULEJAC, Vincent de. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. Trad. Ivo Storniolo. Aparecida/SP: Ideias & Letras, 2007.
MERLO, Álvaro Roberto Crespo. Sofrimento silenciado, patologia da solidão e suicídio no trabalho: a questão da atenção à saúde. In: MERLO, A. R. C.; MENDES, A. M.; MORAES, R. D. (Orgs.). O sujeito no trabalho: entre a saúde e a patologia. Curitiba: Juruá Editora, 2013.
MERLO, Álvaro Roberto Crespo. Sofrimento psíquico e atenção à saúde mental. In: MERLO, A. R. C.; BOTTEGA, C. G.; PEREZ, K. V. (Orgs.). Atenção à saúde mental do trabalhador: sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho. Porto Alegre: Evangraf, p.12- 29, 2014.
PEREZ, Karine Vanessa. Clínica do trabalho no contexto sindical: uma proposta de cuidado em saúde mental. In: MERLO, A. R. C.; BOTTEGA, C. G.; PEREZ, K. V. (Orgs.). Atenção à saúde mental do trabalhador: sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho. Porto Alegre: Evangraf, p.175-188, 2014.
Sousa, Edson Luiz André de. Por Uma Cultura da Utopia. E-topia: Revista Electrónica de Estudos sobre a Utopia, n.º 12 (2011). ISSN 1645-958X. Disponível em: <http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id05id164&sum=sim> Acesso em: 03 Dez. 2017.
SOUSA, Edson Luiz André de. Panteras e Escorpiões: veneno e utopia. Agulha I. 2017. Disponível em: <http://psicanalisedemocracia.com.br/2018/02/panteras-e-escorpioes-veneno-eutopia-agulha-i-edson-luiz-andre-de-sousa/> Acesso em: 09 Fev. 2017.
Elisangela Carpenedo de Mattos – Mestra e Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Integrante do Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho PPGPSI/UFRGS. Pesquisadora na área de Saúde do Trabalhador.
Trabalho apresentado originalmente no seminário Agulhas para desativar bombas: utopias artísticas e políticas da imagem, realizado pelo Laboratório de Pesquisa em Psicanálise Arte Política (LAPPAP/UFRGS), em dezembro de 2017 no Instituto de Psicologia/UFRGS.