“Violência de governo, violência de justiça e, por fim, violência policial: o buraco é mais em cima” – Por Paulo Endo e Paulo Kohara

“Violência de governo, violência de justiça e, por fim, violência policial: o buraco é mais em cima” – Por Paulo Endo e Paulo Kohara

O Brasil não é um país qualquer. Em perspectiva comparativa, constitui um complexo de violência sem par no mundo.

Cada vez fica mais claro que o círculo vicioso da violência não tem parada, não cede, não é castrado por nenhuma instância ou instituição e nem por ninguém. Pouco a pouco consolida-se uma dinâmica peculiar e única onde a violência não apenas não diminui em seu conjunto, mas se enraíza e se instala dia após dia.

O Brasil é o país com o maior número absoluto de homicídios  (LINK), é o quinto país que mais violenta suas mulheres (LINK); é o campeão de violência contra homossexuais (LINK); é o terceiro país do mundo que mais mata suas crianças e adolescentes pobres  (LINK) e, obviamente, o país que possui a polícia que mais mata no mundo (LINK).

Uma das causas fundamentais desse complexo é bem simples e tem nome: impunidade. Entretanto, se a falta de punição institucional, social e psíquica grassa no país podemos dizer que seus efeitos, depois de desencadeados, são complexos.

Muitos brasileiros são lenientes com a violência, deixam que ela aconteça, consideram normal ou banal a solução ou fim de um conflito por meios violentos, dão de ombros para atrocidades cometidas todos os dias, sobretudo contra as populações vulneráveis. Isto, quando não operam diretamente a solução violenta a partir de seu entendimento particular de justiça social, tomando parte nos linchamentos diários que ocorrem no país.  (LINK)

Por consequência, ao que parece, para a boa parte dos brasileiros a violência policial é um bem necessário. E o apoio de grande parte das mídias nacionais, insuflando a população é inconteste. Obviamente porque nesse país jamais pudemos conviver com uma polícia capaz de pacificar a sociedade com métodos de policiamento adequados a sociedades democráticas. Sempre é bom repetir: o papel da polícia é salvar vidas e não matar pessoas.

Enquanto parte da sociedade apoia e se identifica com esse modelo abusivo e truculento, outros são cotidianamente ameaçados e atormentados pelo medo que as polícias, e os policiais, esparramam para manter seu direito exclusivo de praticar a violência, com a anuência e a estrutura que o Estado lhes investe.

As forças policiais, num país que tem a violência como paradigma, poderia e deveria servir como exemplo e operador de mudanças, coibindo, educando e impedindo que conflitos corriqueiros terminem com a morte de um dos contendores. Mas, muito ao contrário, a polícia é o exemplo negativo, uma insufladora de revolta e contrariedade, um símbolo de fracasso das forças públicas, e é a principal propagadora da violência que lhe caberia controlar.

Mas o buraco é mais em cima. Na cadeia de impunidade que se arrasta no Brasil perpetuando violências, os governantes têm papel central. Incentivam ou apoiam abertamente ações violentas contra pessoas, manifestantes, ambulantes e transeuntes; autorizam ou não coíbem o achaque, a prisão ilegal, a tortura e o encarceramento ilegal; vêm a público justificar ou minimizar as brutalidades cometidas por polícias sob sua responsabilidade. Na história das inúmeras violências cometidas pelas polícias militares em São Paulo, nunca um único governador foi responsabilizado.

De outo lado, o sistema de justiça criminal quando apura crimes cometidos por policiais reforça a letalidade da violência. Pouquíssimas punições ocorrem contra policiais que ferem pessoas, machucam manifestantes e abusam de autoridade contra civis desarmados. No Brasil, 90% dos casos com desfecho letal praticados pela polícia cuja causa é atribuída à ‘resistência seguida de morte’ são arquivados sem nem sequer serem levados à julgamento.

Relatórios sucessivos da Human Rights Watch, da Anistia Internacional e centenas de pesquisas vêm denunciando há décadas o descalabro das polícias que temos, bem como a corrupção e as práticas de tortura da polícia civil e a violência letal das polícias militares. Há mais de 14 anos Nigel Rodley, então relator da ONU sobre torturas, fez uma série de recomendações ao estado brasileiro. O resultado disso é que nada se modificou.

Sim, a desmilitarização da polícia é um passo importante, mas está muito longe de resolver o problema das polícias no país. Não só porque constitui uma estratégia de médio e longo prazo, constantemente travada no congresso nacional, mas principalmente porque se o militarismo é forma privilegiada de manifestação da violência pelo estado brasileiro, não é sua causa.

O monopólio do uso da força no Brasil preserva heranças de Estado absolutista, cortesão, no qual seu uso, se tornou-se mais cruel e eficaz e nunca deixou de servir a um pequeno grupo de detentores do poder. Se são policiais militares os algozes de agressões e homicídios cotidianos, são instituições e autoridades civis que lhes autorizam e impelem as ações.

A contaminação institucional que envolve governantes, promotores, juízes, delegados e policiais faz com que muitas vezes eles funcionem como uma mesma peça. Cinco dos últimos sete secretários de Estado da Segurança Pública e quatro dos últimos cinco secretários da Justiça vieram do Ministério Público Estadual. O quinto secretário da Justiça da lista era desembargador.

Já na seara da apuração dos crimes, diz Daniela Skromov do Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de SP, “Existe uma cultura do compadrio muito forte no sistema de Justiça”. Segundo ela, trata-se de uma série de relações pessoais e profissionais, que acabam comprometendo, muitas vezes, a isenção das partes.

“Policiais militares fazem a escolta de juízes e promotores. Os promotores por sua vez, precisam da investigação da policia para realizar o seu trabalho”, afirma a defensora. E continua: “Raríssimas vezes o juiz pede outro promotor. Juízes, promotores e defensores convivem diariamente entre si. Já ouvi de juízes: ‘Nossa, já tive uma briga séria com aquele promotor, agora não posso me indispor com ele, convivo todo dia com ele.’”  (LINK)

A proximidade e a interdependência dos atores atentam contra a apuração isenta e o bom funcionamento do sistema de justiça criminal em inúmeros casos. Imbricação nefasta entre operadores do direito e membros do sistema de segurança, acompanhada por um cínico discurso de impessoalidade institucional que se esforça em apagar os rastros do compadrio e em preservar a impunidade e o poder.

Mas quando o poder está seguro nem sempre se preocupa em não deixar rastros. Esse foi o caso do promotor Rogério Zagallo que, em 2013, publicou em seu twitter os seguintes dizeres enquanto estava preso no trânsito devido a uma manifestação do Movimento Passe Livre: “alguém pode avisar a Tropa de Choque que essa região faz parte do meu Tribunal do Júri e que se eles matarem esses filhos da puta eu arquivarei o inquérito policial”. Uma irregularidade confessa e pública de um promotor reincidente que gerou apenas uma suspensão de 15 dias ao promotor. Um promotor com esses princípios pode trabalhar promovendo a justiça? Sim, no Brasil, pode. (LINK)

Um promotor de justiça conclama publicamente a violência policial, a impunidade aberta e recebe uma suspensão branda para, logo depois, voltar ao trabalho promovendo a justiça e a pacificação social.

Esse padrão incestuoso em que o sistema de segurança e o sistema de justiça se auto-protegem deixa a sociedade civil vulnerável, insegura e muito desconfiada. As polícias no Brasil estão, portanto, blindadas por um espírito de corpo que enfraquece as acusações e investigações sobre os atos criminosos que porventura venha a praticar. Mas não é só isso. Se o sistema de justiça, devido a sua configuração, não é capaz de conter o poder punitivo do estado, o que temos não é uma falência da polícia ou do sistema público de segurança e sim uma falência do Estado Democrático de Direito.

Para além da discussão sobre o modo de operar da polícia é urgente que se exijam das instituições e das autoridades brasileiras ações imediatas que:

1) permitam responsabilizar governadores dos respectivos estados pela violência que suas polícias praticam nas ruas das cidades – o que lhes forçaria a um controle mais efetivo de suas polícias.

2) investiguem danos e responsabilidades dos operadores do sistema de justiça criminal decorrentes de lentidão e leniência em processos contra policiais militares e civis.

O uso político da violência, que a enraíza dia após dia no país, é simples porque ela não precisa ser treinada nem estimulada, basta que seja autorizada. Enquanto não forem quebrados os pactos de compadrio e mútua proteção presentes entres os sistemas de segurança e o sistema de justiça as pessoas desarmadas estarão sempre correndo perigo diante daqueles que supostamente deveriam garantir a paz social e a preservação vida das pessoas. Se esperamos um impacto direto sobre a ação violenta das polícias, antes de reeducá-la é necessário interditá-la. Mas para fazer isso, é preciso repetir, o buraco é mais em cima. Sem isso seremos sempre o país onde massacres, chacinas, linchamentos e abusos serão efeitos plausíveis de uma doença sem cura. Sem isso seremos sempre um imenso e necrófilo Carandiru. Lugar onde massacres são considerados apenas atos de legítima defesa. (LINK)

Paulo Endo: Professor do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades e do Instituto de Psicologia da USP. É um dos coordenadores do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do Instituto de Estudos Avançados da USP.

Paulo Kohara: Mestre e Doutorando pelo Instituto de Psicologia da USP; psicólogo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.