
“Doutor, tira essa coisa de dentro de mim? Me salva”.
Betty Bernardo Fuks1
No final de agosto o jornal El País publicou uma entrevista com o Coordenador, no Brasil, da Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors For Choice – GDC)2. Ex-diretor do Serviço de Atenção às Vítimas de Violência Sexual do Hospital-Maternidade Vila Nova Cachoeirinho, em São Paulo, o Dr. Cristião Rosas fez declarações que representam um testemunho ético de como enfrentar a tragédia dos abusos sexuais e morais às meninas, adolescentes e mulheres brasileiras. Do princípio ao fim da entrevista, nota-se o anseio do médico em conjugar a clareza do que percebe – a situação de desespero e de desamparo das grávidas que sofreram estupro – e a complexidade do tema do aborto legal em nosso país. Entretanto, o mais comovente da entrevista é a narrativa de seu encontro com uma pré-adolescente grávida.
A menina tinha apenas 12 anos de idade quando dois homens a estupram e ela engravida. Sua história de vida resume o destino de muitas crianças submetidas a toda sorte de humilhação moral e de abusos sexuais, num país que perdeu a ética da responsabilidade pela alteridade. Chegando ao hospital a jovem agarra o médico pelo braço e enuncia a mais profunda e dolorosa verdade de sua existência: “doutor, tira essa coisa de dentro de mim? Me salva”. Sob a forma de uma pergunta ela expõe a impossibilidade de imaginarizar um bebê no ventre; condição primeira para que uma mulher venha a desejar levar a gravidez a termo, mesmo nos momentos em que encontra a ambivalência diante da decisão de ter um filho. “Me salva”, um apelo ao Outro para arrancá-la do desamparo oriundo do trauma que a colocou refém de um gozo que excede todas as possibilidades de ligação de si consigo mesma e com a alteridade.
As palavras de desespero da paciente provocaram no ginecologista obstetra, de formação protestante presbiteriana, um processo efetivo de transformação. Submergido num conflito ético entre fé e vida, toma a decisão de fazer parte de um programa de atendimento emergencial às mulheres e meninas vítimas de estupros onde se capacitou tecnicamente para exercer procedimentos de interrupção da gravidez, nos casos concedidos pela lei brasileira.
Me pergunto o que poderia ter levado um ginecologista com tal formação religiosa, à escolha de trabalhar e definir estratégias de atendimento às vítimas de estupros decididas a abortar. Penso que muito provavelmente ele tenha sido movido pela fé no diálogo que nos une aos outros pela linguagem, lugar em que se descobre o Outro em sua dimensão de alteridade radical, fora do especular.
Para pôr à prova minha intuição, quero recorrer à leitura do versículo bíblico sobre a luta de Jacó com o Anjo da morte realizada por Maurice Blanchot. Após essa luta, observa o filósofo, “Jacó reencontra seu irmão Esaú e lhe diz: “Eu vi o seu rosto como se vê o rosto de Deus”. E adverte que o que há de notável nessa fala, é que Jacó diz: ““Eu te vejo como se vê Deus”. Isso confirma a maravilha da presença humana, essa Presença Outra que é Outrem, não menos inacessível, separada e distante que o próprio Invisível; o que confirma igualmente o que há de terrível nesse encontro cujo resultado só pode ser o reconhecimento ou a morte. Quem vê Deus corre o perigo de morrer. Quem encontra Outrem, apenas pode se dirigir a ele pela violência mortal ou pelo dom da palavra em seu acolhimento”3.
Depois do encontro com a menina que nas palavras do próprio médico “foi a maior professora de minha vida”, Dr. Rosas não teve mais dúvidas sobre a legitimidade da interrupção da gravidez quando se é vítima de estupro. Parodiando Blanchot, “Ele vê a menina, como se vê Deus”. Ao repórter, Dr. Rosas confessou: rezo todos os dias antes de dormir e ao acordar. Mas fé é algo individual, dentro de cada um”. Ou seja, fé é algo subjetivo e inalienável. Já a influência religiosa é de outra ordem “faz mal à saúde e põe a vida em risco”, afirma o médico.
Penso que não poderia haver nada melhor do que essa entrevista para nortear nossa leitura do episódio que gerou uma comoção nacional na população e em médicos militantes pela saúde e direitos das mulheres estupradas, abusadas e maltratadas. Me refiro ao calvário da menina do Espírito Santo que desde os seis anos de idade vinha sendo estuprada pelo tio até que, aos 10 engravida. Esse cenário de horror se estendeu rapidamente à negativa do Hospital Público da capital capixaba em realizar o aborto, apesar dos riscos que uma gravidez representa na infância. As desculpas do hospital – falta de preparo técnico – só confirmam o quanto o Brasil está longe de se alinhar à garantia da ONU de “direitos humanos das mulheres e meninas que são parte integral e indivisível dos direitos humanos universais” (Conferência Mundial dos Direitos Humanos, 1993).
A gravidez avançada da menina arregimentou serviços médicos nacionais que prestam atendimento integral a pessoas em situação de violência sexual, incluindo aborto previsto por lei. Através dessa rede, foi decidida a transferência da paciente para um outro Estado, o que implicou a retirada da paciente de sua cidade natal para viajar, pela primeira vez na vida, de avião em plena pandemia do Covid-19. Nesse contexto, o país se viu inundado por um tsunami de intolerância e ódio às mulheres. Grupos de religiosos fanáticos, os terrivelmente cristãos, que se dizem pró-vida (neopetecostalistas em sua grande maioria), aliaram-se ao grupo de defensores extremistas do governo federal que têm na pessoa que desvelou a identidade da menina na internet uma estrela a seguir.
Não é por mero acaso que a violência contra uma menina de 10 anos, em situação de sofrimento inenarrável, tenha sido arregimentada por grupos político-religiosos. No Ocidente, desde a Santa Inquisição, a tradição de atribuir à mulher toda a sorte de mal ainda prevalece. As bruxas, mulheres a quem se supunha terem pacto com o diabo durante a Idade Média, pagavam por seus “delitos” com a própria vida. Hoje, em pleno século XXI, no Brasil, “inquisidores sem fogueira” acusam médicos e profissionais da saúde de assassinos. A cena patética comandada por deputados da bancada evangélica que xingavam não apenas os médicos como também a pequena grávida, foi um verdadeiro show de horrores, nas palavras da médica Helena da Silva Paro do Núcleo de Atuação Integral às vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas).
Horrores propagados por deputados-pastores que não apenas ditam o norte de suas igrejas e dominam seus crentes, como investem pesadamente na evangelização do povo brasileiro, apesar do Estado laico em que vivemos não comportar tal prática. Justamente, a evangelização nada mais é do que uma das figuras do discurso religioso. Este consiste em “rebaixar o valor da vida e deformar de modo delirante a imagem do mundo real, tarefas que têm como postulado a intimidação da inteligência.”4. As instituições religiosas, em sua grande maioria, valem-se da fragilidade do homem diante de seu próprio desamparo para fortalecer suas bases políticas. Unificam os fiéis em torno de uma verdade única, desprezam toda e qualquer expressão subjetiva e impedem o equilíbrio necessário entre o desejo do sujeito e as reivindicações do grupo social. Nisso reside o perigo do abandono de uma experiência religiosa significativa, em favor dos sistemas organizados que ressuscitam e corporificam, de uma maneira ou de outra, a figura do tirano.
No Brasil, a exigência de que mulheres e meninas se submetam à pressão dos fundamentalistas religiosos vem sendo abraçada pelo Ministério da Saúde, cujo ministro, militar de carreira sem formação médica, parece desconhecer a importância do trabalho de obstetras ginecologistas, pediatras, psicanalistas, psicólogos, assistentes sociais, antropólogos e operadores do Direito dentro do Sistema Único de Saúde. Diante da crise provocada pelo destino do caso da menina capixaba, tomou a decisão de baixar uma portaria violenta, a portaria 2.282/2020, que condiciona o cuidado em saúde à denúncia da violência sofrida à polícia, à revelia da vontade da criança ou da mulher que sofreu estupro. Será que o ministro não sabe que as meninas e jovens entram em pânico diante da possibilidade de delatar o agressor? O que se constata na prática é que a grande maioria delas recusa tal prerrogativa, seja para proteger terceiros, pai, mãe, irmãos, que diante de uma delação correm o risco de assassinatos; seja por vergonha alheia – quando a denúncia recai sobre o próprio pai, irmão, avô ou outros parentes próximos.
E o que dizer de uma portaria que força uma grávida atestar sua discordância ou concordância em visualizar o feto, senão que trata-se de uma forma de fazer pressão subliminar contrária à decisão tomada de interrupção da gravidez5? Judicializar no lugar de promover amparo imediato! Um retrocesso. Uma forma ignóbil de punir, ainda mais, a mulher, menina ou adulta, portadora de uma dor psíquica que talvez nunca mais se dissipe.
Em matéria de decisões desastrosas, o Ministério da Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos não fica para trás. A ministra Damares Alves nomeou recentemente para direção do Departamento de Promoção da Dignidade da Mulher uma advogada declaradamente contrária ao aborto em caso de estupro. Essa parece ser a resposta que a ministra encontra para enunciar veladamente sua posição desfavorável ao aborto previsto por lei. Colocar num posto de confiança do Ministério das Mulheres alguém que quer manter mulheres, meninas e jovens presas ao resultado de um estupro, à gravidez; retirar o direito de escolha e evangelizar todas elas, isto é, catequizá-las a aceitar os desígnios do divino diante da violência do estuprador, é um despautério. A escolha da referida advogada é uma garantia de que o grito de socorro vindo do Outro traumatizado pela violência seja abafado. Ao contrário da menina que encontrou no Dr. Rosas uma escuta, um gesto de amparo ao seu desespero, muitas outras mulheres têm o destino de permanecer no vazio, enlouquecidas de dor.
Nós psicanalista temos muito a dizer, pela própria experiência, ao Ministério da Saúde e ao das Mulheres, Família e Direitos Humanos sobre a prática de violência sexual, em sua grande maioria contra crianças de até 13 anos de idade, no Brasil. Costuma-se reconhecer que a criança é o futuro de um país. Certamente, se convocada, a psicanálise tem muito a contribuir à prevenção de abuso infanto-juvenil e ao tratamento de traumas sexuais, traumatismos que invariavelmente provocam uma confusão psíquica profunda entre dor e prazer, excitação e desprazer com consequências extremamente graves.
Mas ao que tudo indica nenhum dos dois órgãos públicos querem, pelo visto, saber da psicanálise ou de qualquer outro saber e, muito menos, das contribuições do movimento feminista às questões relativas aos problemas relacionais de gênero e à violência sexual. Preferem o dogmatismo religioso ou a interferência da polícia na tomada de decisões políticas de como responder à sociedade brasileira sobre a desigualdade histórica entre homens e mulheres; o abuso sexual, o estrupo e as evidências do desejo de ódio e destruição entre os homens do qual nos fala Freud na Carta a Einstein. Escolhem não admitir que o ódio à mulher, como lemos em O tabu da virgindade6, é estrutural; o que implica na necessidade de desenvolver uma eterna vigilância sobre.
Evidentemente que se os referidos ministros quisessem escutar algo diferente do que pensam, talvez pudessem abraçar a decisão ética de combater a violência contra as mulheres defendendo-as, através da educação laica e difusão da cultura, de uma sociedade marcada por roubar o direito de meninas e adolescentes à vida e por silenciar a palavra feminina.
1 Psicanalista. Docente do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ).
2 Jornal El País (edição Brasil). 30 de agosto de 2020.
3 Maurice Blanchot. L’entretien infini: Paris: Galimard, 1986, p. 157.
4 Sigmund Freud, El malestar en la cultura, Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1976. P.111.
5 Sobre o pânico de acusar o estuprador e as consequências dramáticas que podem ocorrer diante da possibilidade da grávida ser induzida a se submeter a exames que mostram a imagem do feto, ver o artigo de Helena B. M. da Silva Paro, “Três mulheres, um direito”. Revista Piauí. 2 de setembro de 2020.
6 Sigmund Freud, O Tabu da virgindade (1918). Obras completas de S. Freud. Amorrotu editores. 1976.