“Pela democracia sempre, ainda que ela esteja cabisbaixa e ultrajada” – Por Paulo Endo

Pela democracia sempre, ainda que ela esteja cabisbaixa e ultrajada[1]

Autor: Paulo Cesar Endo 

No último dia 31 de agosto teve termo um longo processo em que as articulações de grupos nacionais de direita obtiveram êxito. Há muito a ponderar, corrigir, melhorar na própria análise que as esquerdas nacionais terão de fazer daqui por diante.

A qualidade ordinária e vexatória de nosso parlamento, as hesitações de nossa suprema corte e a auto indulgência desastrosa dos senadores em tentar fazer de um golpe flagrante um libelo da democracia. Tudo bem brasileiro.

Mas há um futuro pela frente que exige novos esforços no sentido de aglutinar, ajuntar, restaurar um pensamento e uma ação que precisa ser, não apenas retomada, mas reinventada, porém de forma ponderada, cautelosa, inteligente e ciente dos próprios riscos que sempre correu e dos próprios princípios que terá de defender vorazmente. Tiros na cara, prisões arbitrárias, espancamentos a céu aberto e torturas cometidas pelos polícias militares, incompetentes e servis, já grassam pelo país.

Eles, pobres soldados, venderam sua dignidade e honra pelo privilégio de disparar uma arma. Hoje exultantes, são os seres rastejantes em qualquer democracia.

Dilma Roussef, no último dia 31, dignificou os que nela votaram e revelou nacionalmente o espírito das mulheres forjadas nas lutas clandestinas contra a tirania no país. Saiu inteira, ilesa, orgulhosa e, certamente, voltará. É uma política valiosa para sair de cena, e os próprios senadores golpistas, paradoxalmente, reconheceram isso.

O Brasil é um país que teve o leve sabor da democracia, mas ainda não foi capaz de sustentá-la, suportá-la, melhorá-la e levá-la adiante. A democracia muito jovem no Brasil, claudicava há tempos e andava de bengalas, devido às alianças que o Partido dos Trabalhadores considerara por bem fazer.

Chega o dia em que a incipiente democracia brasileira é golpeada de morte, por esses mesmos aliados que jamais foram amantes da democracia, mas sim de privilégios, benesses e a proximidade extraordinária com a possibilidade de desvio do erário público, que a função de senadores, deputados, ministros e vice-presidente lhes concede.

As forças que depuseram a primeira presidente da república continuarão em alerta, como cães em guarda, atentos para que qualquer suspeita ou movimentação significativa seja abafada pelo governo indireto, que foi recém-empossado sem que tenha recebido um único voto.

A violência policial já está nas ruas ferindo gravemente manifestantes pacíficos. E eles, policiais, serão como sempre a mera bucha de canhão à destilar os ódios dos privilegiados e daqueles que acreditam ser, munidos com suas bombas de gás, balas de borracha, ódios e debilidade narcísica que eles só podem soerguer a golpes de cassetete.

Porém, cresce o número de pessoas e grupos que não querem e não vão aceitar isso passivamente e a coisa pode ficar muito grave. A pouca democracia que tivemos se restaura nos corpos expostos e em luta dos jovens que são a imensa maioria nas manifestações no Brasil e no mundo.

O que vivemos é um descalabro sem precedentes, coisa que não víamos desde de 1964, mas não merece o desencanto. Nesse momento propício têm início um novo movimento que não pode e não deve mais se preocupar ou se esgotar em manter o partido dos trabalhadores no poder.

Os objetivos devem ser bem outros, mais ambiciosos, mais largos.

Agora é preciso criar novos projetos de poder, denunciar a ilegitimidade do poder vigente e, sobretudo, combater os atentados e ataques constantes às estruturas, grupos e pessoas que defendem corajosamente a democracia e que, hoje, são milhões repartidos entre centenas de milhares de organizações, grupos e movimentos sociais pelo Brasil. A democracia deixa um gosto de quero mais e essa será a sua maior herança desses últimos 12 anos.

Um novo caminho deve se abrir agora porque a derrota de hoje, significou vitória lá atrás e, certamente ensejará novas vitórias adiante.

Os psicanalistas terão algo a dizer, mas também a fazer, desfazer, refazer porque o Brasil, que nunca se consagrou como nação democrática, ainda respira os ares de ditaduras renitentes e práticas abusivas do passado. As lutas não são apenas discursivas, mas espaciais, materiais e viscerais. Espaço, patrimônio e corpo são os palcos das contendas atuais.

Provas disso abundam e estão estampadas há décadas nos altos índices de letalidade do jovens pobres e negros, na prática corriqueira de violência contra as mulheres, nos altos índices de violência contra homossexuais, nas violências escandalosas praticadas pelas policias militares e civis contra manifestantes à esquerda, pobres, índios e quilombolas que somam milhares todos os anos.

Práticas que jamais cederam no suposto país cordial e gentil que ainda se quer propalar lá fora. Cordialidade cínica que os senadores fizeram questão de distribuir entre si, em extensas rasgações de seda, repletas de muco e libidinização primária durante a votação do impeachment.

O Brasil segue ocupando o lugar de um dos países com a pior distribuição de renda do planeta a despeito dos programas sociais dos governos passados que, doravante, deverão ser fortemente atacados.

Não bastará aos psicanalistas e a ninguém mais apenas dizer. A passagem ao ato é o que consagrará os grandes intérpretes da vida pública brasileira, hoje, alquebrada.

Difícil entender linearmente o que se perpetua no Brasil. Por isso o país doente precisa ser constantemente reinterpretado na institucionalidade de seu cinismo, de sua perversão, de sua psicose.

Cenas dantescas e surreais fizeram espetáculo nesse longo processo de usurpação. E, invariavelmente, as atrocidades se justificavam pelo “exercício pleno do estado democrático de direito”.

Mas vejam que o “estado democrático de direito brasileiro” não suporta uma única manifestação de rua para ser vexatoriamente ridicularizado por soldados rasos com arma na mão.

Na Avenida Paulista, reduto da antiga elite cafeeira e da atual elite financeira, temos assistido o que ocorre todos os dias nas periferias das cidades brasileiras, e é aí que as manifestações, estrategicamente, demonstram sua genialidade.

Guerra na Avenida Paulista de um lado e de outro a serenidade de Renan Calheiros, as lágrimas de Janaína Paschoal, o voto “justo” de Cristovam Buarque, a placidez magnânima do ministro Lewandovski distribuindo fartos elogios aos senadores que, diante dos seus, e de milhões de outros olhos, rasgavam 54 milhões de votos.

Poderíamos, quem sabe, agradecer o bem que eles fizeram aos nosso netos.

Vamos aplaudir o cinismo emotivo dos que se sensibilizam pela dor do desafortunado, apenas para gozar com benefício de sangrar mais fundo aquele que acaba de golpear. Todos com alma de torturadores. Todos com tendência à fraude, todos covardes que não saíram de suas fraldas e ocupam o púlpito do parlamento pra mostrar sua carinha triste e os olhinhos marejados.

Quem viu Janaína Paschoal endemoniada no Largo São Francisco, na manifestação pós-eleição do impeachment pela câmara dos deputados, mal podia acreditar em sua fofura e lágrimas no dia da votação do senado.

É preciso denunciar os fofos, eles carregam o ódio em sua pelúcias.

Nossas mazelas não nasceram hoje, mas prometem ser uma sina para o futuro caso as forças que hoje ocupam o poder se estabeleçam e comandem o país duradouramente.

Dia 31/08 teve fim um ciclo democrático, caberá a nós sabermos se ele se erguerá logo adiante. Mas o mais importante, creio, é que determinadas lutas do passado devem ser imediatamente retomadas.

Aos que lutaram pela democracia no país devem montar em sua sela uma vez mais para, uma vez mais, cavalgarem rumo à invenção da democracia que queremos; como fizeram e fizemos os muitos que contribuíram decisivamente para conquista-la, incluída aí a própria presidente impedida.

Democracia exige imaginação e inventividade, mas também sentido histórico. Vencemos uma vez, poderemos fazê-lo uma vez mais e a cada derrota, creio, se planta uma aspiração de tipo novo, não pela vitória, mas pela transmissão que o desejo e o prazer de democracia de alguns deixou enraizado no coração dos que não viveram o golpe civil militar de outrora, mas entendem perfeitamente o que é um golpe branco, liderado pelas elites nacionais, quando se deparam com ele hoje.

Centenas de milhares de jovens frutificam nas ocupações, movimentos sociais e ongs. Eles voltam às ruas hoje. De coragem e discernimento extraordinário já estão aí interferindo decisivamente nos rumos das política, ocupando praças, ruas e escolas e denunciando os ataques à democracia a cada vez que deparam com um. Eles votarão nas próximas eleições e se candidatarão às eleições futuras.

Há muitos com quem somar, há muitos com quem sonhar e a quem dar as mãos.

De nossa parte, creio que nos últimos anos a psicanálise brasileira se transformou, dobrou-se às exigências de interpretação do Brasil paradoxal. Com isso muito se produziu no Brasil entre psicanalistas que quiseram e ousaram fazê-lo no início, e outros que se somaram ao longo do tempo. Hoje é inconteste que novos intérpretes do Brasil surgiram a partir da psicanálise.

Grupos inteiros se dedicam a pensar, publicar, pesquisar sobre o tema. Foi ultrapassado definitivamente a hesitação diante dos descalabros que não nascem nos consultórios, mas os invadem, bem como à vida e às instituições nacionais, psicanalíticas ou não.

Se há um traço original na psicanálise brasileira, que tanto se amparou e se ampara na psicanálise europeia e argentina, é sua decisão de pensar a política mobilizando a metapsicologia que Freud nos legou. Decisão que já ultrapassa sua 3a década entre psicanalistas de nosso país.

O legado Amilcar Lobo foi recusado e ultrapassado por boa parte dos psicanalistas que hoje exercem a psicanálise no Brasil e hoje, figura nos anais da história da algumas instituições de psicanálise, mas não é a história toda da psicanálise no brasileira.

Com isso creio que também nós, psicanalistas brasileiros, estamos mais bem preparados para o que virá. Capazes de sermos reagentes diante dos empedernidos, cínicos e sintomáticos discursos produzidos industrialmente pela grande e medíocre mídia, hoje, alvo de chacota dos ótimos jornalistas estrangeiros. Elas representam as elites vitoriosas, porém ofendidas e amedrontadas, diante dos acenos de inconformismo que ora se organizam em todos os lugares e no mar de gente que inunda o coração de todos que caminham, lado a lado, em cada uma das manifestações que hoje se propõem a defender a democracia.

A disputa pelo futuro se encontra agora, como sempre, em nossas mãos. Ainda que, como toda planta que viceja, precisará nascer ao rés do chão.

[1] Este texto foi originalmente publicado no site PsiBr em 08/09/2016 (link)